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4 DISCURSOS SOBRE A IDENTIDADE DOS SUJEITOS TRANS: UM SUJEITO

4.3 OS DISCURSOS SOBRE A IDENTIDADE DOS SUJEITOS TRANS EM NOTÍCIAS

4.3.2 O conteúdo temático dos enunciados

O conteúdo temático de um determinado enunciado varia em função do propósito do autor e do auditório pretendido, além das suas situações de produção. Para Bakhtin/Volochínov (2014[1929]), o tema de uma dada enunciação ultrapassa as formas linguísticas que a compõem e incorporam também os elementos extraverbais da situação. Segundo Acosta Pereira (2008, p. 99), o horizonte temático de uma notícia é caracterizado pela “contemporaneidade, efemeridade e proximidade tempo-espacial dos fatos e dos acontecimentos a serem noticiados”. O conteúdo temático principal encontrado no conjunto de notícias é em relação ao nome social, uma das grandes demandas da população trans. O nome social é discursivizado nas notícias a partir da promulgação do Decreto Nº 8.727 e é tematizado por diferentes vieses dentre os enunciados selecionados. Cabe ressaltar que, o uso do nome social é uma reivindicação do movimento trans, uma vez que os sujeitos trans querem e devem ser tratados de acordo com o seu gênero social, com o reconhecimento da sua identidade de gênero nos ambientes de convívio social. É importante lembrar que o nome

social, é entendido como uma gambiarra legal (BENTO, 2012) e funciona como um recurso paliativo para que os sujeitos trans possam ser chamados pelo nome social e reconhecidos socialmente como mulheres e homens trans apesar do seu registro civil. O ideal, para esses sujeitos, é o reconhecimento da identidade de gênero das pessoas trans em forma de lei61, o que viabilizaria a alteração dos registros civis (nome e gênero) de acordo com a identidade de gênero de cada um. Atualmente, essa medida só acontece mediante ordem judicial, o que faz com que pessoas trans em situação de vulnerabilidade econômica, que não tenham recursos para arcar com as despesas jurídicas, sejam impedidas de buscar essa saída.

A seguir, apresentamos um quadro indicando de que modo o nome social é tematizado em cada notícia, com um fragmento do texto para fins de exemplificação.

Quadro 2 – Conteúdo temático das notícias

Notícia conteúdo temático Regularidade do Excerto da notícia

N1

“Transexuais e travestis poderão usar nome social no serviço público federal”

Nome social explicado a partir do Decreto Nº 8.727

A presidente Dilma Rousseff assinou nesta quinta-feira (28) um decreto que autoriza a população LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e

transexuais) a utilizar o chamado “nome social” nos órgãos do serviço público federal, como ministérios, universidades federais e empresas estatais

N2

Dilma assina decreto que permite transexuais usarem nome social em órgãos federais”

Nome social explicado a partir do Decreto Nº 8.727

A presidente Dilma Rousseff assinou nesta quinta-feira (28) decreto que permite transexuais e travestis usarem seu nome social em todos os órgãos públicos, autarquias e empresas estatais federais.

N3

“Deputados de dez partidos querem vetar nome social de travestis no serviço público”

Direito ao nome social questionado

Menos de um mês após ser decretado pela presidente afastada Dilma Rousseff (PT), o uso do nome

social de travestis e transexuais nos

órgãos da administração pública direta e indireta é questionado por parlamentares.

61 Em 2013, o deputado federal Jean Wyllys (PSOL) e a deputada federal Erika Kokay (PT)

desenvolveram o Projeto de Lei (PL) 5002/201361, propondo a aprovação da Lei João Nery61 ou Lei de

Identidade de Gênero. Essa PL visa alterar o artigo 58 da Lei de Registros (Lei 6.015/1973), dando liberdade aos sujeitos trans para serem tratadas de acordo com sua identidade de gênero, inclusive pela retificação registral da certidão de nascimento e do registro civil. A PL 5002/2013 foi inspirada por lei similar, em vigor na Argentina (Ley 26.743). A lei argentina é considerada a mais avançada do mundo, aprovada por ampla maioria da na Câmara dos Deputados do país e com unanimidade pelo Senado, e está em vigor desde 2012.

N4

"Deputados de 10 partidos tentam vetar nome social de travestis no serviço público”

Direito ao nome social questionado

Deputados de dez partidos apresentaram nesta quarta-feira (18) um projeto para

suspender o direito de transexuais e travestis a usarem seu nome social nos

órgãos públicos do governo federal.

N5

“No AP, travestis e transexuais podem usar nome social para serviços de saúde”

Divulgação do direito ao uso do nome social

Uso do nome social é garantido com base no decreto 8.727/16, do Governo Federal. ONG entregou portaria em hospitais e postos de saúde de Macapá

N6

UFGD respeita decreto e adota nome social para travestis e transexuais”

Implementação do uso do nome social

A UFGD (Universidade Federal da Grande Dourados) decidiu optar pelo

uso do nome social por estudantes de

Graduação e Pós-graduação da instituição. N7 “Mulher transexual é impedida de embarcar em aeroporto de SC ao usar nome social” Impedimento do uso do nome social

Uma mulher transexual foi impedida

de embarcar no Aeroporto Lauro

Carneiro de Loyola, em Joinville, na manhã de quinta-feira (16), porque o

nome social que constava na passagem aérea era diferente do nome presente nos documentos de identificação.

N8

“Jovem trans é impedida de abrir crediário em loja com nome social: 'Humilhada', diz"

Impedimento do uso do nome social

Uma mulher trans de São Carlos (SP) foi impedida de abrir um crediário utilizando seu nome social em uma

loja de departamentos da cidade. Mesmo apresentando o RG, Leona Zanforlin não conseguiu dar continuidade ao procedimento.

N9

“Deputado goiano compara nome social a “apelido” e pede direito igual para héteros”

Direito ao nome social questionado

O deputado federal goiano João Campos (PRB), que é autor do projeto polêmico sobre a “cura gay”, quer

sustar o decreto que concede a travestis e transexuais o direito de serem identificados pelo nome social

nas entidades da administração pública federal.

N10

“Mulher travesti discute com juíza e promotor para ter nome social respeitado em audiência no ES"

Não reconhecimento do nome social

Um trecho do artigo 6º do decreto presidencial 8.727, de abril de 2016, diz que “a pessoa travesti ou transexual poderá requerer, a qualquer tempo, a inclusão de seu nome social em documentos oficiais”. Mesmo assim, a

mulher travesti Deborah Sabará conta que precisou entrar em um debate com uma juíza e um promotor para que seu nome social constasse em um documento oficial

durante uma audiência judicial no Espírito Santo.

Fonte: A autora (2017).

Como pode ser verificado no quadro, nas notícias 1 e 2, o nome social é explicado especialmente em função do Decreto Nº 8.727, que autoriza o uso do nome social por pessoas trans em órgãos públicos federais. Os enunciados tratam sobretudo do decreto, adentrando no tema do nome social a fim de contextualizar e explicar o documento.

Já nas notícias 3 e 4, o nome social e o Decreto Nº 8.727 são tematizados de um modo diferente. Após a promulgação do decreto, houve uma grande reação no campo político, em que 29 deputados protocolaram o Projeto de Decreto Legislativo (PDC) 395/2016. O PDC é o tema central dessas notícias, que buscam explicar o contexto de publicação desse documento, recorrendo, portanto, à questão do nome social e do referido decreto. Cabe mencionar que os deputados que assinaram a PDC utilizaram argumentos jurídicos e legais visando justificar a intenção de sustar o Decreto Nº 8.727, porém, se levarmos em conta o fato de que grande parte dos deputados que assinaram o PDC fazem parte da Frente Parlamentar Evangélica, a chamada bancada evangélica, incluindo o deputado João Campos (PRB), autor do PDC e ex- presidente da bancada no Congresso, é possível tecer ponderações acerca das reais motivações para a tentativa de sustar o decreto assinado por Dilma Rousseff. A bancada religiosa se articula, no âmbito político, contra temas como igualdade racial, igualdade de gênero, casamento e união homoafetiva, descriminalização e legalização do aborto, além da criminalização da violência contra a comunidade LGBTI. A postura da bancada frente a esses temas, dentre vários outros, aponta para a demarcação de um posicionamento ideológico desse grupo, ancorado em justificativas de teor religioso e indo contra diversas das medidas tomadas pelos governos Lula-Dilma, que buscaram diminuir a violência contra esses grupos e gerando visibilidade.

Nas notícias 5 e 6, temos novamente o nome social e o Decreto Nº 8.727 sendo tematizados, mais precisamente a partir do uso do nome social. Na notícia 5, especificamente, há apontamentos sobre o uso do nome social nos serviços de saúde e menção à Portaria 1.820 de 200962, que dispõe sobre os direitos e deveres dos usuários da saúde. Nessa portaria, há indicação expressa de que todos os cidadãos têm direito a um atendimento acolhedor e respeitoso no Sistema Único de Saúde, independentemente de idade, raça, cor, etnia, religião, orientação sexual, identidade de gênero, condições econômicas ou sociais, estado de saúde, de anomalia, patologia ou deficiência. Já na notícia 6, há o caso da Universidade Federal da

62 Portaria do Ministério da Saúde publicada em 14 de agosto de 2009, disponível em:

Grande Dourados, em Mato Grosso do Sul, que reenuncia o decreto e a questão do nome social ao noticiar a regulamentação do uso do nome social na universidade, por meio de resolução interna, publicada em dezembro de 2016.

O nome social e o Decreto Nº 8.727 também são temas das notícias 7, 8, 9 e 10. Porém, nesses casos, são tematizados a partir de um outro ponto de vista. Nas notícias 7 e 8, há relato de situações em que houve impedimento do uso do nome social por pessoas trans em um aeroporto e em uma loja de departamentos. Nesses casos, temos a voz do sujeito trans narrando a importância do nome social e as consequências de sua não utilização. A voz da pessoa trans é também apresentada/reenunciada na notícia 10, que, assim como a notícia 9, apontam situações em que houve questionamento da identidade trans e do nome social, por parte de um deputado federal, João Campos (PRB) – autor da PDC 395/2016 – que compara o nome social a apelido na notícia 9, e por parte de uma juíza em uma audiência na 1ª Vara Criminal de Vitória (ES), segundo relato da conselheira estadual de Direitos Humanos, mulher travesti, na notícia 10.

Sendo assim, o levantamento prévio das principais temáticas observadas nos enunciados analisados é um dos primeiros passos para adentrarmos mais profundamente na análise dos enunciados. Dito isso, seguimos para a próxima seção, em que discutimos o horizonte valorativo dos enunciados.