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4 DISCURSOS SOBRE A IDENTIDADE DOS SUJEITOS TRANS: UM SUJEITO

4.2 O GRANDE TEMA DA PESQUISA: O DECRETO Nº 8.727

4.2.1 O decreto na condição de gênero discursivo

Na perspectiva bakhtiniana, os chamados gêneros do discurso54 são entendidos como tipos relativamente estáveis de enunciados (BAKHTIN, 2011[1979]); são enunciados que representam materialmente situações específicas de interação, caminhando em direção a uma estabilidade (SILVEIRA et al, 2012). Em outras palavras, nesse escopo teórico, entende-se que a utilização da língua nas esferas de atividade humana se dá por meio de enunciados concretos e únicos, esses enunciados refletem as peculiaridades das esferas em que se inserem e as esferas, por sua vez, criam seus tipos relativamente estáveis de enunciados – os gêneros do discurso. Quando constituídos, os gêneros podem se modificar de acordo com as situações sociais e históricas a que estão vinculados, por isso sua estabilidade é relativa.

Segundo Rodrigues (2005), para o estudo de um determinado gênero do discurso (e, portanto, dos enunciados), é necessário voltar-se a ele a partir de alguns elementos fundamentais, sem dissociá-lo “das noções de interação verbal, comunicação discursiva,

língua, discurso, texto, enunciado e atividade humana, pois somente na relação com esses

conceitos pode-se apreender, sem reduzir, a noção de gêneros” (RODRIGUES, 2005, p. 154). Para a autora, apesar de haver gêneros mais estabilizados que podem ser identificados e reconhecidos por sua forma e estilo (dimensão verbal), a realidade é que não são esses atributos, por si, que os definem. Além disso, os gêneros devem ser compreendidos a partir da esfera de comunicação humana em que estão inseridos. Para Rodrigues (2005, p. 164), “o que constitui um gênero é a sua ligação com uma situação social de interação, e não as suas propriedades formais”. A autora afirma ainda que, segundo a perspectiva bakhtiniana, cada gênero particular está assentado em um cronotopo específico, que “inclui um horizonte espacial e temporal (qual esfera social, em que momento histórico, qual situação de interação), um horizonte temático e axiológico (qual o tema do gênero, qual a sua finalidade ideológico-discursiva) e uma concepção de autor e destinatário (RODRIGUES, 2005, p. 165).

54Poderíamos envidar esforços em observar a discursividade sobre os sujeitos trans somente a partir

da análise da materialidade estilística do enunciado sem nos atentarmos para a historicidade dos enunciados, ou seja, na sua condição de gênero em que os enunciados se tipificam. No entanto, entendemos que aspectos da regularidade de gênero atuam nos modos de dizer/de construir esse texto. Por isso, essa opção em discutir certas regularidades do gênero a partir de pesquisas acadêmicas sobre os gêneros discursivos (ACOSTA PEREIRA, 2008; 2012; RODRIGUES, 2005; SILVA, 2007).

Considerando que cada situação de interação pode dar origem a um determinado gênero do discurso, com regularidades específicas, e entendendo também que infinitas são as situações de interação, conclui-se que infinitos poderão ser os gêneros. Bakhtin (2011[1979]) organiza os gêneros como sendo gêneros primários ou secundários. Os gêneros primários têm relação com as esferas cotidianas e familiares da vida humana, como o cumprimento, o telefonema pessoal, uma conversa entre amigos; os gêneros secundários, por sua vez, se constituem a partir de interações sociais razoavelmente mais complexas, dentro de esferas mais formais como a esfera escolar, profissional, jurídica, podendo ser, por exemplo, o livro didático, o memorando, a lei etc. O que difere os gêneros primários dos secundários nessa perspectiva, segundo Silveira et al (2012, p. 55), não é sua maior ou menor complexidade, mas tem vínculo com “a diferença entre esferas discursivas da vida cotidiana e esferas formalizadas e sistematizadas, a qual, por sua vez, pauta-se na diferença entre ideologias do cotidiano e ideologia formalizada, grosso modo, ideologia oficial”. Essa diferenciação tem relação com o nosso objeto de pesquisa, conforme discutido na subseção 3.1, uma vez que a discursividade sobre a identidade de sujeitos trans se constitui numa relação dialógica, intrínseca e intensa entre ideologias cotidianas e ideologias oficiais.

A heterogeneidade dos gêneros do discurso e o fato de a estabilidade de seus enunciados ser relativa pode ter vínculo com o fato de que os gêneros não podem ser pensados para além de sua dimensão espacial e temporal. Ou seja, um gênero sempre possui um cronotopo, uma relação com seus aspectos sociais (espaço) e históricos (tempo) e justamente por essa razão, podem se modificar ou se constituir enquanto tipos relativamente estáveis de enunciados.

A esfera jurídica-governamental é uma esfera em que predomina a ideologia oficial e, portanto, a produção de enunciados de gêneros secundários, como as leis e os decretos, por exemplo. Esses gêneros, considerando determinações preestabelecidas por lei, no contexto brasileiro, devem seguir normas e modelizações mais regulares. Os gêneros secundários, na perspectiva bakhtiniana, são mais herméticos e menos suscetíveis a variações, uma vez que “surgem nas condições de um convívio cultural mais complexo e relativamente muito desenvolvido e organizado (predominantemente o escrito) – ficcional, científico, sociopolítico, etc” (BAKHTIN, 2016[1952-1953], p. 15).

Segundo o Manual de Redação da Presidência da República (BRASIL, 2002), a redação dos textos oficiais deve ser caracterizada pela impessoalidade, clareza, concisão, formalidade, uniformidade e uso do padrão culto de linguagem, características essas que têm

a ver com a noção bakhtiniana de estilo. Para Bakhtin (2016[1952-1953]), a estilística é um dos elementos principais da composição do enunciado, juntamente de seu conteúdo temático e construção composicional. Segundo o autor, "todo estilo está indissoluvelmente ligado ao enunciado e às formas típicas de enunciados, ou seja, aos gêneros do discurso" (BAKHTIN, 2016[1952-1953], p. 17). Sendo assim, os aspectos estilísticos do texto decreto, estabelecidos pela esfera de produção e circulação desse enunciado, vão ao encontro da determinação prevista em Constituição de que a administração pública – tanto municipal quanto estadual ou federal – deve seguir os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. O interesse pela publicidade e impessoalidade deve, então, nortear a preparação dos atos e comunicações oficiais. Além disso, pressupõe-se que os atos normativos – uma vez que elaborados à serviço da população – não devem ser redigidos de modo a tornar a compreensão obscura ou impossibilitada, sendo clareza e concisão características implicadas nesse processo (BRASIL, 2002). O teor regulamentar dos textos jurídicos exige que os atos normativos de toda natureza sejam elaborados com linguagem adequada e acessível, portanto, sem marcação de linguagem técnica.

Apesar de existir uma determinação de que os textos públicos sejam compreensíveis e acessíveis a toda a população, muitas vezes, isso não ocorre nas práticas interacionais. O uso excessivo de termos do campo do Direito (conhecido pelo neologismo popular juridiquês) comumentemente torna os textos jurídicos e oficiais de difícil compreensão para o cidadão, isso aponta para a existência de uma diferença entre aquilo que se estabelece como norma e o que de fato acontece em termos de linguagem dentro das atividades humanas nessa esfera específica. Vale ressaltar que a complexidade do discurso jurídico não é característica intrínseca a esse campo do conhecimento. Para Hespanha (2009), antes da modernização do Direito, notadamente até o início do século XVIII, as práticas jurídicas não possuíam caráter formalista e técnico semelhante ao que adota atualmente. Antes disso, a linguagem utilizada era mais simplificada; isso porque além de os profissionais do Direito (juízes, advogados, juristas) nem sempre possuírem formação técnica e letrada, as normas possuíam forte ligação com os costumes e tradições locais. Por outro lado, com o advento da Modernidade e o privilégio do positivismo no campo das ciências sociais, o Direito obteve status de ciência e, com isso, teve que se adaptar e assumir características e aspectos mais formais, o que se estendeu ao campo da linguagem, que passou a ser mais rebuscada e técnica (HESPANHA, 2009).

Atualmente, as normatizações e predeterminações comuns dos textos e gêneros pertencentes à esfera jurídico-governamental preveem formas de enunciação específicas. Isso faz com que, como já mencionado anteriormente, essa esfera ancore gêneros mais rígidos e menos plásticos, com menor probabilidade de mudanças. Desse modo, partindo das considerações tecidas até aqui sobre as especificidades estilísticas da linguagem jurídica, passamos para as especificações acerca do gênero decreto. A Presidência da República do Brasil desenvolveu um manual de redação que aponta diretrizes para elaboração de textos de determinados gêneros, indicando os elementos constituintes desses textos, o tipo de linguagem a ser utilizada e até a formatação e leiaute de seus textos, dentre os gêneros esmiuçados no manual, temos as indicações e explicações acerca do decreto.

De acordo com o Manual de redação da Presidência da República (BRASIL, 2002), e, em termos gerais,

Decretos são atos administrativos da competência exclusiva do Chefe do Executivo, destinados a prover situações gerais ou individuais, abstratamente previstas, de modo expresso ou implícito, na lei. Esta é a definição clássica, a qual, no entanto, é inaplicável aos decretos autônomos, tratados adiante.

O Manual prossegue dando breves definições dos tipos existentes de decretos, que podem ser singulares, quando contem regras singulares ou concretas – nomeação, aposentadoria, desapropriação –, podem ser decretos regulamentares, no caso dos atos normativos subordinados ou secundários e podem ser também autônomos, quando decorrem diretamente da Constituição, possuindo valor similar ao de uma lei ordinária.

O que difere primordialmente um decreto regulamentar – ou de execução – de um decreto autônomo – ou independente – é o fato de que aquele parte de um conteúdo normativo preexistente, regulamentando-o em forma de decreto; enquanto este legitima sua existência na Constituição, instituindo um direito novo. Partindo dessas prerrogativas, podemos afirmar que o Decreto Nº 8.727 é um decreto autônomo, entendido como um ato normativo com efeitos análogos ao de uma lei ordinária (BRASIL, 2002). Estruturalmente, os decretos são compostos por dois elementos básicos: “a ordem legislativa (preâmbulo e fecho) e a matéria legislada (texto ou corpo da lei)” (BRASIL, 2002), além disso, os decretos que possuem regras jurídicas de caráter geral e abstrato são numerados, e são sempre referendados pelo Ministro competente. Feitas essas considerações acerca do gênero decreto, passamos para a discussão sobre o Decreto Nº 8.727, na seção que se segue.