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2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

2.2 OS ESTUDOS IDENTITÁRIOS À LUZ DA LINGUÍSTICA APLICADA

Na área dos estudos linguísticos, precisamente no campo da Linguística Aplicada, há uma crescente preocupação com demandas sociais e um interesse cada vez maior por estudos interdisciplinares. Isso se dá uma vez que estudos estritamente linguísticos não conseguem dar conta da complexidade dos fatos envolvidos com a linguagem (MOITA LOPES, 2006). Além disso, há um interesse também político de que os estudos da área da linguagem englobem outros modos de viver e socializar. Nesse escopo dos estudos linguísticos – que perpassam os estudos das Ciências Sociais – surge o ensejo do estudo de questões relativas à identidade, como afirma Moita Lopes (2003, p. 19):

a temática das identidades surge em meio a uma concepção de linguagem como discurso, ou seja, uma concepção que coloca como central o fato de que todo uso da linguagem envolve ação humana em relação a alguém em um contexto interacional específico. Ou seja, todo uso da linguagem envolve alteridade e situacionalidade.

Sendo assim, é possível entender que as identidades, como também mencionado na seção anterior, se constituem a partir das relações entre os diferentes agentes sociais. Partindo da

concepção de subjetividade e alteridade pelo viés bakhtiniano, Roland (2003) afirma que as múltiplas identidades são articuladas nas situações de interação com o outro na vida social. Segundo a autora, essas relações não são autônomas, dependendo não somente dos interlocutores envolvidos, mas também do meio cultural a que pertencem, ou seja, aos modos de viver e agir, posicionamentos e valores dos sujeitos.

Na perspectiva da LA, a identidade é compreendida como um construto de natureza social – político, portanto – por isso é chamada de identidade social, “compreendida como construída em práticas discursivas, e que não tem relação com uma visão de identidade como parte da natureza da pessoa, ou seja, identidade pessoal, nem com sua essência nem com um si-mesmo unitário” (MOITA LOPES, 2003, p. 20). O que deve ser levado em conta nessa perspectiva, segundo Moita Lopes (2003), são os processos sociais que ocorrem no interior dos sujeitos e nos discursos em que se situam, não somente em suas subjetividades interiores. As práticas discursivas mencionadas pelo autor devem ser situadas histórica e socialmente, o que faz com que existam identidades sociais vistas, ao mesmo tempo, como legítimas e ilegítimas.

Entendendo, desse modo, a noção de identidade social como sendo construída discursivamente pelos sujeitos historicamente situados, é importante que a Linguística Aplicada assuma a importante tarefa de “criar inteligibilidades sobre modos de viver a vida social, com base em um arcabouço interdisciplinar que aborde as relações entre discurso e identidades sociais” (MOITA LOPES; FABRÍCIO, 2004, p. 12). A temática das identidades é recorrente tanto na LA e na academia, quanto na mídia, em função das mudanças sociais, históricas, culturais, políticas e tecnológicas por que passa o mundo (MOITA LOPES, 2003).

Apesar do grande interesse da LA pelos estudos identitários, é importante ressaltar que a linguística precisa se adaptar às mudanças propiciadas pela globalização e pela tecnologia e compreender que as identidades se constituem de modo instável. Sobre essa questão, Rajagopalan (2003, p. 71) afirma:

Entre os pesquisadores que se interessam pela questão da identidade, já não há mais quem, em sã consciência, acredite que as identidades se apresentam como prontas e acabadas. Pelo contrário, acredita-se, em larga escala, que as identidades estão, todas elas, em permanente estado de transformação, de ebulição. Elas estão sendo constantemente reconstruídas. Em qualquer momento dado, as identidades estão sendo adaptadas e adequadas às novas circunstâncias que vão surgindo. A única forma de definir uma identidade é em oposição a outras identidades em jogo.

A respeito dessa relação entre o eu e o outro como elemento constituinte da identidade de um sujeito, Moita Lopes (2006, p. 27) afirma ser a alteridade equivocadamente pensada por muitos estudiosos das ciências humanas a partir de uma racionalidade descorporificada, desconsiderando a heterogeneidade do sujeito e “o lado da fronteira em que se está localizado”.

A partir disso, é possível retomar o relevante papel do contexto dos sujeitos no processo de construção identitária. É por meio da interação, a partir dos usos da linguagem que os sujeitos se situam na vida social; essa interação não se dá precisamente com a entidade de um interlocutor, mas a partir de seus traços sócio-históricos, como por exemplo, ser mulher, ser branca, ser de classe média. Segundo Moita Lopes (2003, p. 19):

é impossível pensar o discurso sem focalizar os sujeitos envolvidos em um contexto de produção: todo discurso provém de alguém que tem suas marcas identitárias específicas que o localizam na vida social e que o posicionam no discurso de um modo singular assim como seus interlocutores.

É possível, portanto, pensar nas identidades dos sujeitos como podendo ser fragmentadas, múltiplas e contraditórias (MOITA LOPES, 2003), uma vez que aquilo que uma pessoa é – sua identidade social – se define nos discursos e por meio dos discursos que a circundam.

Compreendidos esses pontos a respeito da identidade social, é possível destacar o papel dos estudos no campo da Linguística Aplicada, especialmente considerando a inconstância e instabilidade das estruturas sociais viabilizadas pelas constantes mudanças tecnológicas. Esse papel, segundo Moita Lopes (2013a), é de constantes desafios tendo em vista a necessidade de o campo de pesquisa ser cada vez mais responsivo a essas mudanças, no chamado mundo digital. Nesse mundo, ainda há conflitos relativos às

dessencializações sociais de várias naturezas (linguísticas, identitárias etc.), excluídas das redes sociais e de tantos outros bens simbólicos e materiais e sem saber lidar com os desafios e mudanças de toda espécie que as cercam, cotidianamente, por meio, entre outros veículos, da mídia de massa (MOITA LOPES, 2013a, p. 19)

Por essas razões, faz-se necessário que a LA passe a discutir a natureza de sua própria investigação, pensando conjuntamente na construção do conhecimento e na política, considerando as possibilidades de viver e de reinvenção do futuro (MOITA LOPES, 2013b).

A inconstância dos atributos identitários faz com que haja uma compreensão da existência de uma instabilidade intrínseca na questão identitária na contemporaneidade, o que

pode ser atrelado ao que Moita Lopes e Fabrício (2004) entendem por vertigem em relação à identidade. Essa noção, segundo os autores, se relaciona com o mundo dos sentidos e sua irredutibilidade lógica, acarretando a noção de abismo, que:

advém de nossa compreensão teórica sobre a linguagem, não como solo seguro e firme ou estrutura sólida, mas como espaço labiríntico e movente. Tal aspecto de nossas práticas discursivas fica mais latente quando, ao nos confrontarmos com o outro “estrangeiro”, não reconhecemos fronteiras familiares de significados onde nos ancorar. (MOITA LOPES; FABRÍCIO, 2004, p. 14)

O confronto com o diferente, o contato com o outro, demanda um constante repensar da vida social e dos modos de viver, o que faz com que as compreensões estabilizadas de gênero, raça, classe social, sexualidade, nacionalidade, sejam repensadas. Esse questionamento faz emergir um interesse cada vez maior pelo debate e pesquisas sobre essas questões (MOITA LOPES, 2003), instigando cada vez mais pesquisadores a enveredarem por esse caminho.

Nesse percurso, a LA brasileira contemporânea tem ancorado com cada vez mais frequência estudos acerca das relações entre linguagem e gênero, sexualidade, raça etc (MOITA LOPES, 2013b). O campo dos estudos aplicados da linguagem gera inteligibilidades a esses temas “tabus” que muitas vezes são omitidos ou silenciados na mídia (MOITA LOPES, 2003).

Ainda sobre a identidade e a constituição do sujeito, Bhabha (2014) afirma que os sujeitos se constituem nos entre-lugares, na diferença. Ao discorrer sobre o processo de construção de identidades em contextos coloniais, Bhabha (2014) aponta a alteridade como condição fundamental, a partir de um desejo do sujeito em direção a um Outro externo a ele. De acordo com o autor, é necessário ir para além das narrativas originárias, como pode ser observado no excerto a seguir:

O que é teoricamente inovador e politicamente crucial é a necessidade de passar além das narrativas de subjetividades originárias e inicias e de focalizar aqueles momentos ou processos que são produzidos na articulação de diferenças culturais. Esses "entre-lugares" fornecem o terreno para a elaboração de estratégias de subjetivação – singular ou coletiva – que dão início a novos signos de identidade e postos inovadores de colaboração e contestação, no ato de definir a própria ideia de sociedade. (BHABHA, 2014, p.20)

Sendo assim, para a constituição das identidades é necessário deixar de lado as noções binárias e ir além. Para explicar esse processo, Bhabha (2014) utiliza-se da analogia do poço da escada, convidando o leitor a imaginar um poço de escada que separa dois pavimentos, cada um desses locais acima e abaixo representando as identidades fixas. Segundo Bhabha (2014), é no vão do poço da escada, nesse espaço limítrofe entre as identidades fixas, que surge a possibilidade de um “hibridismo cultural que acolhe a diferença sem uma hierarquia suposta ou imposta” (BHABHA, p. 23). O projeto crítico de Bhabha (2014) entende a construção de identidades como sendo ambígua e conflitante e compreende as posições dos sujeitos como “um processo de tradução e transferência de sentido. Cada objetivo é construído sobre o traço daquela perspectiva que ele rasura; cada objeto político é determinado em relação ao outro e deslocado no mesmo ato crítico” (BHABHA, 2014, p. 58). Feitas essas considerações a respeito da compreensão da identidade dos sujeitos como sendo fluida, movente e constituída a partir do local em que esse sujeito e seus interlocutores se situam, além da percepção da importância do papel da Linguística Aplicada para fomentar pesquisas e discussões sobre esses diferentes elementos identitários e sociais, cabe menção ao fato de que essa noção implica o surgimento de dizeres outros, podendo ocasionar conflitos e embates, como afirma Moita Lopes (2006, p. 132):

A compreensão de que as identidades sociais são múltiplas, heterogêneas, híbridas, dinâmicas e contraditórias (...) para explicar o modo como cada vez mais vivemos a vida social tem trazido à tona, por outro lado, propostas identitárias fundamentalistas que operam na preservação de projetos identitários homogêneos, bem talhados e cristalizados, oferecendo formas nas quais as pessoas podem se encaixar.

Sendo assim, entendemos que as mudanças podem gerar, como contrapartida, uma ascensão de movimentos conservadores, que propõem um encapsulamento de identidades a partir de certos padrões de normatividade. Isso aponta para a importância de um constante pensar a identidade e as subjetividades dos indivíduos por um viés crítico. A partir dessa discussão referente à identidade social e o espaço que ocupa no campo dos estudos aplicados da linguagem, passamos à próxima seção deste capítulo, em que serão rememorados alguns pontos teóricos importantes para o contexto desta pesquisa.