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3 PERCURSO METODOLÓGICO DA PESQUISA

3.3 PARÂMETROS DE ANÁLISE

Na perspectiva bakhtiniana, o percurso metodológico para análise da linguagem deve considerar tanto o estudo das formas da língua, bem como das situações de interação,

41 Os portais de notícias G1 e UOL notícia estão em sexto e sétimo lugar, respectivamente, na lista dos

sites mais acessados do Brasil. Essa lista foi desenvolvida pela Alexa Internet Inc., um serviço de internet da empresa Amazon, que mede a quantidade de usuários que acessa uma determinada página. Lista “Top Sites in Brazil” disponível no link: http://www.alexa.com/topsites/countries/BR (Acessado em 12 Mar. 2017).

42 É importante destacar que as notícias selecionadas possuem campo de comentários, em que há

espaço para interação direta com os interlocutores, porém, esses dados não compõem o escopo desta pesquisa e não serão analisados.

considerando as condições sociais em que se realizam quanto a investigação dos enunciados ligados à situação de interação. Considerando, portanto, o conjunto de dados gerados e o marco teórico e metodológico assumido, propomos como parâmetros analíticos43 as noções de

dimensão extraverbal/social do enunciado, ideologia oficial e ideologia do cotidiano, relações dialógicas, discurso bivocal, reacentuação e enquadramento discursivo e reação resposta-ativa, propostos pelo Círculo de Bakhtin e que são discutidos a seguir.

Para Cunha (2009), nas pesquisas que têm como objeto de estudo enunciados advindos da mídia, não basta fazer análise de conteúdo, mas “estudar o funcionamento dos discursos da mídia, mais especialmente, como os acontecimentos são criados, representados, a partir da análise da escolha das palavras e do processo de retomada de outros discursos” (CUNHA, 2009, p. 24). Para a autora, é necessário ainda tomar como nível de análise a circulação de enunciados, buscando a compreensão das relações dialógicas e históricas existentes entre eles. Bakhtin (2015[1963]) entende o discurso como a língua em sua forma concreta e viva, além disso, entende que a vida da palavra existe na sua transição entre diferentes indivíduos, contextos, gerações e grupos sociais. Essa produção e circulação de discursos faz com que cada enunciado seja único e com que cada nova enunciação reflita características específicas do falante e seu contexto. Como afirma Bakhtin (2015[1979], p. 265): "todo enunciado (...) é individual e por isso pode refletir a individualidade do falante (ou de quem escreve), isto é, pode ter estilo individual". Isso significa que uma mesma fala – com a mesma estrutura linguística – ao ser dita por sujeitos de diferentes realidades e em diferentes momentos, passa por um processo de reacentuação. Segundo Bakhtin (2014[1929]), sem acentuação apreciativa, não há palavra.

Isso posto, seguimos para a concepção de dimensão extraverbal/social de um enunciado. Para o autor, a palavra carrega não apenas o seu contexto imediato, mas os diversos outros contextos com que dialoga. Esse diálogo tem a capacidade de assumir realidades outras, questionando-as e problematizando-as. Ainda sobre a relação entre discurso e seu contexto, a situação extraverbal da palavra, Volochínov (2013[1930]) afirma:

A palavra na vida, com toda evidência, não se centra em si mesma. Surge da situação extraverbal da vida e conserva com ela o vínculo mais estreito. E mais, a vida completa diretamente da palavra, que não pode ser separada da vida sem que perca seu sentido. (VOLOCHÍNOV, 2013[1930], p. 77)

43 Cabe ressaltar que esses parâmetros não foram estabelecidos a priori, durante o processo de seleção

Volochínov (2013[1930]) afirma ainda que a enunciação se manifesta por dois aspectos: a realização verbal em si e os conhecimentos subentendidos e compartilhados pelos interlocutores, o que significa que a situação – contexto extraverbal – é um integrante semântico necessário da enunciação.

Por tratarmos, ainda, neste trabalho, com dados de fontes diversas – textos jurídico- governamentais e jornalísticos – cabe fazermos menção aos diferentes campos ideológicos que integram a “vida” desses enunciados em tela. Para tal, tomamos por referência a discussão bakhtiniana sobre as concepções de ideologia oficial e por ideologia do cotidiano. Para Bakhtin (2014[1929]), nenhum acontecimento pode acontecer de maneira individual, sendo os processos de interação sociais parte essencial da construção dos sentidos. Esse intercâmbio discursivo é determinado pelas condições sociais, de produção e políticas do contexto de enunciação – toda essa estrutura é permeada por ideologias.

A ideologia oficial (superestrutura), dominante e com conteúdo relativamente estável, pode ser representada pelos sistemas ideológicos dominantes como a ciência, a religião, o sistema de leis, enquanto a ideologia do cotidiano (infraestrutura), por outro lado, se constitui nos contextos de produção interior e exterior da palavra viva (BAKHTIN, 2014[1929]). Esses dois sistemas se relacionam de maneira dialógica, sendo que os discursos oficiais se cristalizam progressivamente com base nos discursos do cotidiano44, onde encontram sua realidade viva, como afirma Bakhtin (2014[1929], p. 123):

Os sistemas ideológicos constituídos da moral social, da ciência, da arte e da religião cristalizam-se a partir da ideologia do cotidiano, exercem por sua vez sobre esta, em retorno, uma forte influência e dão assim normalmente o tom a essa ideologia. Mas, ao mesmo tempo, esses produtos ideológicos constituídos conservam constantemente um elo orgânico vivo com a ideologia do cotidiano.

Considerando, portanto, que um discurso dialógico é aquele cujas relações extralinguísticas não podem ser desassociadas do campo do discurso, entendemos que a linguagem se mantém viva enquanto existir na comunicação dialógica daqueles que a utilizam (BAKHTIN, 2015[1963]). Assim, passamos à compreensão de que "as relações dialógicas podem penetrar no âmago do enunciado, inclusive no íntimo de uma palavra isolada se nela se chocam dialogicamente duas vozes" (BAKHTIN, 2015[1963], p. 211). Esse choque entre

44 Um exemplo disso, como discutido anteriormente, é a própria sanção da lei 8.727 de 28 de abril de

2016, que compõe o objeto deste estudo e parte de discussões de base – no âmbito das ideologias não oficias/do cotidiano sobre os direitos de grupos marginalizados como os do LGBT, que vão por meio de luta e movimentos de resistência pressionando a ideologia oficial até se tornar ela própria oficial.

duas vozes dentro de um mesmo enunciado pode ser chamado de discurso bivocal – que surge sob as condições dialógicas de comunicação e de vida da palavra. Os discursos de um indivíduo carregam sempre palavras de outros indivíduos, como afirma Bakhtin (2015[1963], p. 223): “as palavras do outro, introduzidas na nossa fala, são revestidas inevitavelmente de algo novo, da nossa compreensão e da nossa avaliação, isto é, tornam-se bivocais”.

Sendo assim, na perspectiva bakhtiniana, entendemos que todos os enunciados possuem bivocalidade, uma vez que: “Apesar das diferenças substanciais, todos esses fenômenos têm um traço comum: aqui a palavra tem duplo sentido, voltado para o objeto do discurso como palavra comum e para um outro discurso, para o discurso de um outro” (BAKHTIN, 2015[1963], p. 212, grifos do autor). Isso significa assumir que há uma dupla orientação do discurso, que faz com que sempre se considere o discurso do outro. A partir dessa noção, podemos discorrer sobre o que se entende, portanto, como reação resposta-

ativa.

Segundo Bakhtin,

o ouvinte, ao perceber e compreender o significado (linguístico) do discurso, ocupa simultaneamente em relação a ele uma ativa posição responsiva: concorda ou discorda dele (total ou parcialmente), completa-o, aplica-o, prepara-se para usá-lo, etc.; essa posição responsiva do ouvinte se forma ao longo de todo o processo de audição e compreensão desde o seu início, às vezes literalmente a partir da primeira palavra do falante (BAKHTIN, 2016[1952-1953], p. 24-25)

Assim, o falante, tendo consciência das relações que se estabelecem entre o seu enunciado com o enunciado dos outros, entende, portanto, que a compreensão de um enunciado é de natureza responsiva e prenhe de resposta, fazendo com que o ouvinte, torne-se também falante (BAKHTIN, 2016[1952-1953]).

Outrossim, a construção de um enunciado por parte de um sujeito leva em conta diversos fatores, desde a compreensão compartilhada entre os interlocutores, os contextos extraverbais, históricos e sociais de onde fala esse sujeito e as possíveis respostas do interlocutor que exerce influência na enunciação. Cabe relembrar, por fim, que um enunciado concreto vivo é único e individual e que carrega em si ideologias e discursos outros, elementos esses essenciais para sua constituição como uma unidade da cadeia comunicativa.

Feitas essas considerações acerca de noções importantes que orientam o presente estudo, passamos para o capítulo seguinte, com a análise propriamente dita, onde os conceitos supra explicitados são retomados e aprofundados, no decorrer do seu desenvolvimento.

4 DISCURSOS SOBRE A IDENTIDADE DOS SUJEITOS TRANS: UM SUJEITO DE