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2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

2.3 OS JÁ DITOS SOBRE SEXUALIDADE E GÊNERO SOCIAL

2.3.1 Sexo e sexualidade(s): historicidades

Contemporaneamente, tem se tornado uma prática cada vez comum a exposição das vidas privadas dos sujeitos na mídia, esse exercício, antes restrito aos ambientes íntimos, tem sido frequentemente instado e os discursos sobre a sexualidade e as práticas sexuais têm ocupado espaço nesses meios. Sendo assim, pensar na discursivização da sexualidade nos

ambientes online de interação pressupõe a compreensão da sexualidade como elemento constituinte da identidade do sujeito.

De acordo com Silva (2014, p. 13): “No seio dessa exposição [da sexualidade na mídia], falar sobre sexualidade tem se constituído num filão de diferentes veículos midiáticos, seja nos espaços da esfera digital, seja nas entrevistas de televisão, ou ainda nos programas que se voltam exclusivamente para o debate desta temática”. Essa tendência da mídia reflete um anseio coetâneo amparado pelo fascínio por mostrar-se ao olhar do outro, numa vivência delineada pela visibilidade, ocasionando o rompimento das fronteiras entre os âmbitos público e privado. As redes sociais funcionam como protótipos dessa externalização da esfera privada, especialmente no que tange a sexualidade, desde a criação de blogs com narrativas de experiências sobre o tema, até a gravação de vídeos pornográficos caseiros (SILVA, 2014, p. 15). Cabe ressaltar que é justamente nesses espaços virtuais de interação que se constituem as arenas discursivas que permitem que os sujeitos, ao manifestarem sua sexualidade e suas práticas sexuais, certo modo, constroem e modificam suas identidades perante o coletivo.

No caso dos integrantes da comunidade trans, os discursos sobre o sexo, a sexualidade e a identidade de gênero funcionam como modos de delineação identitária enquanto grupo. Os indivíduos passam a se perceber (e ao mesmo tempo são percebidos) como integrantes de um grupo social que vem se tornando progressivamente visível – essa sensação de pertencimento e compartilhamento de ideais e sentimentos, ocasiona um comprometimento subjetivo do indivíduo com o grupo. Esse falar sobre o sexo em manifestações públicas e também em redes sociais gera para esse grupo, portanto, mais visibilidade e permitem a fabricação de novas realidades, reconfigurações de gênero e (re)afirmação de identidades. (JESUS; ALVES, 2010).

Entretanto, a prática discursiva acerca do sexo e da sexualidade nem sempre foi incentivada ou, quiçá, permitida, ou pelo menos foi essa a hipótese historicamente instituída. Essa colocação do sexo em discurso funciona como um mecanismo de controle contemporâneo, em que “as normas regulatórias do ‘sexo’ trabalham de uma forma performativa para constituir a materialidade dos corpos e, mais especificamente, para materializar o sexo do corpo, para materializar a diferença sexual a serviço da consolidação do imperativo heterossexual” (LOURO, 2016, p. 154). A origem dessa atribuição dos discursos sobre o sexo aos mecanismos de controle são antigas, como analisa Michel

Foucault31 (2014) em sua obra História da sexualidade: a vontade de saber. Segundo o autor, por muito tempo houve uma aparente interdição no dizer sobre o sexo que mascarou a aparelhagem de controle que, na realidade, incentivou a confissão sobre o sexo por meio de instituições como a escola, igreja, o consultório médico etc.

Há o que Foucault (2014) denomina como “hipótese repressiva”, em que questiona a noção de encerramento da sexualidade por parte da sociedade burguesa vitoriana. Nessa concepção, até o século XVII havia uma familiaridade com o ilícito, em que eram “frouxos os códigos da grosseria, da obscenidade” (FOUCAULT, 2014, p.7) e que, posteriormente a isso, os dizeres sobre o sexo foram confinados aos âmbitos familiares e a prática sexual passou a ser vinculada apenas à reprodução. Com essa construção acerca da repressão do sexo, qualquer dizer sobre ele assumia um ar de transgressão deliberada. Sobre essa hipótese, a visão foucaultiana enxerga como ilusória a compreensão dessa interdição como elemento definitivo da história da sexualidade e, a partir de uma descrição dos diversos fenômenos de interdição-incentivo dos dizeres sobre o sexo, Foucault (2014) busca delinear sua compreensão de que o poder e o saber funcionam como elementos dos dispositivos de controle e de sujeição sociais.

Apesar da noção de que houve uma interdição do sexo no século XVII por parte das sociedades burguesas, nesse interim construiu-se uma multiplicidade de discursos concernentes ao sexo, o que aconteceu não foi a imposição do sexo ao mutismo, mas na verdade um incentivo ao falar constantemente sobre ele, como afirma Foucault (2014, p. 39): “o que é próprio das sociedades modernas não é terem condenado o sexo a permanecer na obscuridade, mas sim o terem-se devotado a falar dele sempre, valorizando-o como o segredo”. Ao desbancar a hipótese repressiva, Foucault (2014) explicita que houve uma explosão discursiva sobre o sexo, porém, isso não significa que o falar sobre o sexo e a sexualidade tenha sido uma prática aberta e isenta de restrições, uma vez que a sociedade impunha espaços e situações para esses dizeres. A partir disso, o autor faz suas considerações

31 Como dito antes, a presente pesquisa se ancora nos estudos do Círculo de Bakhtin para análise dos

enunciados. No entanto, trazemos também estudos outros que se mostram relevantes para discussão proposta. Aproximar estudos bakhtinianos e foucaultianos não é uma tarefa fácil, tendo em vista as semelhanças e distanciamentos teóricos. Sobre a possibilidade desse diálogo (Bakhtin e Foucault), Severo (2013) pondera que a variabilidade e densidade de temas dessas duas ancoragens epistemológicas inviabilizam qualquer fechamento, por outro lado, as reflexões desses filósofos se enquadram em uma região fronteiriça. Trazemos as reflexões de Michel Foucault (2014) para o debate, tendo em vista que a temática sexualidade, sobretudo os modos como as práticas sexuais foram discursivizadas e normatizadas no decorrer da historicidade, foram analisadas em profundidade em suas reflexões, sendo, pois, uma obra seminal nas discussões contemporâneas sobre sexualidade, gênero e identidade de gênero.

sobre essa proliferação discursiva em torno da sexualidade, que se materializou na forma confessional cristã e também no âmbito do conhecimento científico.

No século XVIII, o dispositivo da sexualidade se modificou, e os sujeitos eram incentivados a construírem verdades sobre si mesmos por meio dos seus discursos sobre o sexo, especialmente pela prática da confissão. Nesse contexto, o sexo passou a ser visto como objeto de verdade e a confissão passou a funcionar como um ritual discursivo, como afirma Foucault (2014, p. 69):

Ora, a confissão é um ritual de discurso onde o sujeito que fala coincide com o sujeito do enunciado; é, também, um ritual que se desenrola numa relação de poder, pois não se confessa sem a presença ao menos virtual de um parceiro, que não é simplesmente o interlocutor, mas a instância que requer a confissão, impõe-na, avalia-a e intervém para julgar, punir, perdoar, consolar, reconciliar; um ritual onde a verdade é autenticada pelos obstáculos e as resistências que teve de suprimir para poder manifestar-se, enfim, um ritual onde a enunciação em si, independentemente de suas consequências externas, produz em quem a articula modificações intrínsecas: inocenta-o, resgata-o, purifica-o, livra-o de suas faltas, libera-o, promete-lhe a salvação.

Sendo assim, os indivíduos deveriam relatar minunciosamente suas práticas sexuais, como forma de se livrarem de seus pensamentos impuros, na busca pelo perdão divino.

Cabe mencionar que, até meados da segunda metade do século XVIII, como assevera Bento (2008), não eram também consideradas as diferenças anatômicas visíveis entre os sexos, “até que se tornou politicamente importante diferenciar homens e mulheres, mediante uso do discurso científico” (BENTO, 2008, p. 25). Na transição do século XVIII para o XIX, segundo Foucault (2014), houve uma explosão de discursos sobre a sexualidade, primeiramente no que se refere à monogamia heterossexual, além do surgimento de vontades de saber a respeito da sexualidade das crianças, dos loucos e dos “invertidos”. Sendo assim, criaram-se discursos pejorativos sobre a masturbação infantil, com o intuito de repreendê-la, por meio de um discurso médico e pedagógico que condenava essa prática. Fenômeno similar ocorreu com as práticas sexuais dos tidos como pervertidos sexuais, especificamente os homossexuais e demais sujeitos cujas manifestações da sexualidade eram consideradas “desviantes”. Houve, assim, o surgimento de uma série de dizeres sobre a sexualidade, especialmente por parte de instituições como a igreja, a psiquiatria, o direito e a sexologia. Foucault (2014) descreve esses discursos, apontando para o fato de que, foi a partir deles se criaram e multiplicaram as categorizações sobre os “tipos” de sexualidade.

Um segundo fator que fomentou a proliferação de discursos sobre o sexo, nesse momento, foi o surgimento da noção de população como um problema econômico e político, quando nasceu “uma incitação política, econômica, técnica a falar do sexo. E não tanto sob a forma de uma teoria geral da sexualidade, mas sob forma de análise, de contabilidade, de classificação e de especificação, através de pesquisas quantitativas ou causais” (FOUCAULT, 2014, p. 26), sendo assim, o sexo passou a ser uma forma de crescimento das forças de controle coletivas e individuais, uma vez que a conduta sexual da população passou a ser de interesse político e econômico. Falar sobre sexo e a sexualidade se tornou, portanto, uma preocupação da classe dominante,

Através da pedagogia, da medicina e da economia, fazia do sexo não somente uma questão leiga, mas negócio de Estado; ainda melhor, uma questão em que todo o corpo social e quase cada um de seus indivíduos eram convocados a porem-se em vigilância (FOUCAULT, 2014, p. 126)

Assim, “o sexo é tido como o elemento a partir do qual se pretende exercer um controle sobre as populações, de forma a garantir que elas vivam bem” (SILVA, 2014, p. 17), por meio do controle da natalidade, uma preocupação com a saúde sexual da mulher, o celibato, a precocidade das práticas sexuais etc. Sobre esse fenômeno, Butler (2016, p. 154) afirma:

Assim, o "sexo" é um ideal regulatório cuja materialização é imposta: esta materialização ocorre (ou deixa de ocorrer) através de certas práticas altamente reguladas. Em outras palavras, o “sexo” é um construto ideal que é forçosamente materializado através do tempo. Ele não é um simples fato ou a condição estática de um corpo, mas um processo pelo qual as normas regulatórias materializam o “sexo” e produzem essa materialização através de uma reiteração forçada destas normas. O fato de que nossa reiteração seja necessária é um sinal de que a materialização não é nunca totalmente completa, que os corpos não se conformam, nunca, completamente, às normas pelas quais sua materialização é imposta. Na verdade, são as instabilidades, as possibilidades de rematerialização, abertas por esse processo, que marcam um domínio no qual a força da lei regulatória pode se voltar contra ela mesma para gerar rearticulações que colocam em questão a força hegemônica daquela mesma lei reguladora.

Sendo assim, cabe enfatizar ainda a relevância, para Foucault (2014), de se pensar a sexualidade segundo as técnicas de poder contemporâneas a ela, além do vínculo que se tece entre o sexo e a identidade, afirmando ser a partir daquele que se dá o acesso a esta (FOUCAULT, 2014, p. 169).

Feitas essas considerações, cabe uma reflexão acerca da ilusória sensação de liberdade do dizer associada às práticas discursivas acerca do sexo e da sexualidade nos textos contemporâneos. Esse incentivo à narração das práticas sexuais e da (re)afirmação das identidades dos sujeitos a partir desses discursos, que pode ser vista, por um lado, como um marco discursivo importante para as diferentes comunidades – especialmente a comunidade LGBTI que usa essa possibilidade com vistas a gerar visibilidade ao grupo em termos de conquistas e direitos sociais, como o caso do uso do nome social – pode ser compreendida, por outro lado, como o resultado dos mecanismos de controle social a que a sociedade é (e vem sendo historicamente) submetida. A partir das ponderações foucaultianas, Butler (2015) elabora seus estudos sobre o gênero social como performance, buscando desvincular a ideia do gênero atrelado somente aos atributos biológicos do indivíduo.

Para Butler (2016, p. 153),

A diferença sexual é frequentemente evocada como uma questão referente a diferenças materiais. A diferença sexual, entretanto, não é, nunca, simplesmente, uma função de diferenças materiais que não sejam, de alguma forma, simultaneamente marcadas e formadas por práticas discursivas.

A autora, ao fazer essa asserção, enfatiza as propriedades discursivas da constituição dos gêneros. Sendo assim, passamos à noção da performatividade vinculada ao gênero, criada por Butler (2015), que pensa o gênero como sendo performativo. Em outras palavras, o gênero é compreendido como o resultado de uma sequência de atos – materializados discursivamente – que constituem as identidades dos sujeitos. Nesse prisma, o gênero é sempre um fazer, não uma condição preexistente ao próprio sujeito. O que frequentemente acontece, porém, é a imposição de um ideal regulatório de gênero, forçando e condicionando os discursos sobre os gêneros.

Para Butler (2016), o “sexo” é uma edificação idealizada que é, forçadamente, materializada ao longo do tempo e as normas que regulam essa compreensão de “sexo” operam de forma performativa, com o intuito de determinar a materialidade sexual dos corpos, por meio da ênfase de suas diferenças materiais, consolidando o que Butler chama de imperativo heterossexual. Essas imposições criam a impressão equivocada de que não há possibilidade de rompimento das “imposições biológicas” dos gêneros – constituído pelo sistema de associações binário que vincula o masculino-pênis-homem por um lado e o feminino-vagina-mulher, por outro. Em suas considerações acerca da teoria de Butler, Salih (2015, p. 94) afirma que o gênero “não acontece de uma vez por todas quando nascemos, mas

é uma sequência de atos repetidos que se enrijece até adquirir a aparência de algo que esteve ali o tempo todo”. Na perspectiva de Butler (2015), portanto, o gênero é a estilização do corpo, uma repetição de atos dentro de uma estrutura reguladora rígida, sendo assim, a cristalização das performances que caracterizam o gênero de um sujeito, são sempre entrecruzadas por elementos outros, muitas vezes também reguladores e impositivos. Por isso, nessa visão, tornou-se difícil a tarefa de separar a noção de gênero dos seus cruzamentos políticos e culturais que a produzem e mantém, como afirma a autora:

Se esse "é" uma mulher, isso certamente não é tudo o que esse alguém é; o termo não logra ser exaustivo, não porque os traços predefinidos de gênero da "pessoa" transcendam a parafernalha específica de seu gênero, mas porque o gênero nem sempre se constituiu de maneira coerente ou consistente nos diferentes contextos históricos, e porque o gênero estabelece intersecções com modalidade raciais, classistas, étnicas, sexuais e regionais de identidades discursivamente constituídas (BUTLER, 2015, p. 21)

Ademais, cabe neste momento apontarmos a relação existente entre gênero e linguagem. Para Butler (2015), a identidade de gênero, ou seja, o gênero com o qual um sujeito se identifica independentemente de suas características fisiológicas, se constrói e é constituída por meio da linguagem, indicando que não há uma identidade de gênero que a preceda. Ao afirmar que “não há identidade de gênero por trás das expressões de gênero; a identidade é performativamente constituída pelas próprias ‘expressões’ que supostamente são seus resultados” (BUTLER, 2015, p. 25), a autora pondera que, no contexto discursivo do que chama de metafísica da substância, o gênero aparenta ser performativo e parte integrante da identidade que pretende ser. Sobre as ponderações de Butler acerca da relação entre gênero, performatividade e linguagem, Salih (2015, p. 91) assevera:

As identidades de gênero são construídas e constituídas pela linguagem, o que significa que não há identidade de gênero que preceda a linguagem. Se quiséssemos, poderíamos dizer: não é que uma identidade “faça” o discurso ou a linguagem, mas é precisamente o contrário – a linguagem e o discurso é que “fazem” o gênero. Não existe um “eu” fora da linguagem, uma vez que a identidade é uma prática significante, e os sujeitos culturalmente inteligíveis são efeitos e não causas dos discursos que ocultam sua atividade (GT32, p.

145). É nesse sentido que a identidade de gênero é performativa.

32 Salih (2015) usa a abreviação GT para se referir à obra Gender Trouble, referenciada nesta pesquisa

Nesse debate, Butler (2015) rejeita a hipótese de que exista um núcleo pré-linguístico anterior ao gênero, uma vez que o gênero é entendido como um efeito, como afirma Salih (2015, p. 92): “os atos de gênero não são executados [performed] pelos sujeitos, mas que eles constituem performativamente um sujeito que é o efeito do discurso e não a sua causa”. Além disso, cabe ênfase no fato de que, para Butler (2015, p. 30), a linguagem define e funda um campo imaginável do gênero:

Os limites da análise discursiva do gênero pressupõem e definem por antecipação as possibilidades das configurações imagináveis e realizáveis do gênero na cultura. Isso não quer dizer que toda e qualquer possibilidade de gênero seja facultada, mas que as fronteiras analíticas sugerem os limites de uma experiência discursivamente condicionada.

Feitas essas considerações acerca do gênero social e sobre a sua possibilidade de constituição por meio da linguagem e de atos performativos, passamos para a seção subsequente, em que se discute a questão da identidade de gênero bem como suas possibilidades de manifestação e, em especial, a transgeneridade, foco dessa pesquisa.