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Contexto de elaboração

No documento O JOGO DAS POSIÇÕES SOCIAIS: (páginas 182-188)

Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron

4.1 DESMONTAGEM DA BNCC: CONTEXTO E ESTRUTURA

4.1.2 Contexto de elaboração

Os dois eventos que precederam a publicação da primeira versão da BNCC nos quais a proposta se constituiu como pontos de debate foram: 2ª Conferência

Nacional pela Educação (Conae), organizada pelo Fórum Nacional de Educação (FNE) realizada entre 19 e 23 de novembro de 2014; I Seminário Interinstitucional para elaboração da Base Nacional Comum – BNC (primeira denominação do documento).

Desse seminário, emergiu a Portaria nº 592, de 17 de junho de 2015 que instituiu a Comissão de Especialistas para a Elaboração de Proposta da Base Nacional Comum Curricular. Essa comissão de profissionais, 116 no total, foi indicada pelo Conselho Nacional de Secretários de Educação (CONSED) e pela União Nacional dos Dirigentes de Educação (UNDIME). A figura 6 ilustra o processo de elaboração do texto base da primeira versão.

Figura 6

Fluxograma referente à construção da Base Nacional Comum.

Fonte: UNDIME (2015)

A primeira versão da BNCC foi disponibilizada no dia 16 de setembro de 2015, sendo que o debate sobre a implementação de uma base comum para a educação básica já tinha se estendido por todo o país. Outras diversas entidades promoveram encontros e estruturaram obras com o propósito de discutir a base, com destaque para a Associação Nacional de Políticas e Administração da Educação (ANPAE) e para a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPED). Os profissionais da educação básica tiveram contato com a versão preliminar do documento apenas durante o curto período de 2 a 15 de dezembro do mesmo ano, pontualmente chamado de Dia D da BNCC pelo Ministério da Educação.

A segunda versão da BNCC, em caráter preliminar, foi disponibilizada em 3 de maio de 2016. Entre os meses de junho a agosto do mesmo ano, em cada unidade federativa aconteceu um seminário com docentes e gestores para discutir sobre a segunda proposta do documento. Os seminários foram promovidos pelo CONSED e pela UNDIME.

Para essa versão intermediária, após a abertura para consulta pública, segundo o Ministério da Educação, cerca de 12 milhões de cidadãos opinaram e propuseram alterações no documento para a etapa da educação infantil e para o ensino fundamental e médio em todos os componentes curriculares. O trecho referente ao Ensino Médio foi suprimido em virtude das alterações provocadas pela Medida Provisória nº 746, de 22 de setembro de 2016, como afirmado pelo Ministério da Educação na nota a seguir:

durante o processo de elaboração da versão da BNCC encaminhada para apreciação do CNE em 6 de abril de 2017, a estrutura do Ensino Médio foi significativamente alterada por força da Medida Provisória nº 446, de 22 de setembro de 2016, posteriormente convertida na Lei nº 13.415, de 16 de fevereiro de 2017. Em virtude da magnitude dessa mudança, e tendo em vista não adiar a discussão e a aprovação da BNCC para a Educação Infantil e para o Ensino Fundamental, o Ministério da Educação decidiu postergar a elaboração – e posterior envio ao CNE – do documento relativo ao Ensino Médio, que se assentará sobre os mesmos princípios legais e pedagógicos inscritos neste documento, respeitando-se as especificidades dessa etapa e de seu alunado (BRASIL, 2017d, p. 23).

O ano de 2016 foi politicamente muito conturbado para o Brasil sobretudo em função do golpe que culminou no impeachment da Presidenta Dilma Rousseff no dia 31 de agosto. Após a concretização de um plano milimetricamente pensado para o

desmonte da democracia brasileira, Michel Temer assumiu a presidência da república e rapidamente sancionou a MP 746 que instituiu a política de fomento à implementação de escolas de Ensino Médio em tempo integral, alterou o texto da LDB e regulamentou outras providências denominadas conjuntamente de Reforma do Ensino Médio.

Em 16 de fevereiro de 2017 a MP 746 foi convertida na Lei 13.415 de 16 de fevereiro de 2017 que alterou a Lei 9.394/96 no sentido de viabilizar a continuidade dos trâmites de elaboração da BNCC do Ensino Médio. O artigo 3º da LDB passou a vigorar com o acréscimo do seguinte trecho: “a Base Nacional Comum Curricular definirá direitos e objetivos de aprendizagem do ensino médio, conforme diretrizes do Conselho Nacional de Educação [...]” (BRASIL, 2017b).

Ainda em agosto de 2016, a redação da terceira versão teve início com base na segunda versão sem contar com o trecho referente ao ensino médio. O documento teve sua redação concluída em abril de 2017 sendo encaminhado ao Conselho Nacional de Educação (CNE). A proposta se autodeclara como uma ação alinhada com organismos internacionais, como evidenciado nos fragmentos a seguir:

Ao definir essas competências, a BNCC reconhece que a “educação deve afirmar valores e estimular ações que contribuam para a transformação da sociedade, tornando-a mais humana, socialmente justa e, também, voltada para a preservação da natureza” (BRASIL, 2013), mostrando-se também alinhada à Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU) (BRASIL, 2017d, p. 8)

É esse também o enfoque adotado nas avaliações internacionais da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que coordena o Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa, na sigla em inglês), e da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco, na sigla em inglês), que instituiu o Laboratório Latino-americano de Avaliação da Qualidade da Educação para a América Latina (LLECE, na sigla em espanhol) (Ibidem, p. 13).

O CNE ficou responsável pelas deliberações que precedem à homologação por meio de elaboração de parecer e projeto de resolução. Dentre os conselheiros que integram as câmaras30 da Educação Básica e da Educação Superior, três se

30 O Conselho Nacional de Educação é composto pela Câmara de Educação Básica (CEB) e pela Câmara de Educação Superior (CES), totalizando 22 conselheiros, além de dois membros natos, os secretários da Educação Básica e da Educação Superior do MEC, os quais ocupam essa cadeira somente no período em que estão à frente das secretarias. O tempo de mandato dos conselheiros é de quatro anos, e do presidente de dois anos (BRASIL, 2020c).

posicionaram contrários à implementação da base. Sobre isso, Aguiar (2018, p. 8) sinalizou que

na medida que o MEC, sob nova administração, delineou sua política, começou a ficar claro que seriam tomadas medidas de políticas que, no limite, apresentam um forte viés privatista favorecendo interesses do mercado. Contudo, no CNE, formou-se um polo de resistência que, mesmo minoritário, tentou fazer um contraponto à verticalização política do MEC e àqueles objetivos que não se enquadram na perspectiva da gestão democrática. Foi nesse contexto que se efetivou o Pedido de Vistas ao Parecer e à Resolução da BNCC para que ficasse o registro histórico dos acontecimentos.

A oposição das conselheiras31 constituiu a resistência que nutriu a ampliação dos debates sobre as implicações de um documento de magnitude nacional. No entanto, o CNE deu sequência aos trâmites e aprovou a Resolução CNE/CP Nº 2, de 22 de dezembro de 2017 que resultou na homologação da BNCC por Mendonça Filho, Ministro da Educação em exercício na ocasião.

Em março do ano de 2018, transcorrido pouco tempo desde a homologação e dado seu caráter de obrigatoriedade, os profissionais da educação foram

“mobilizados” a compreender as possíveis formas de implementação. Em agosto do mesmo ano, foram criados comitês de debate compostos por professores, gestores e técnicos de todo o país com o propósito de revisar o documento e sugerir mudanças, só que dessa vez com relação ao trecho que abordava a etapa do ensino médio.

Desde o início do processo de concepção da BNCC em 2015 até 2018, o campo educacional teve suas tensões, que já eram numerosas e acirradas, ampliadas. Nesse embate entre agentes, uns mais poderosos do que outros, o que estava em jogo era, e evidentemente que ainda é, o poder de decisão sobre a vida de milhões de cidadãos.

De toda a dinâmica de estudos, consultas, alterações e tentativas de ampliação do debate à sociedade civil, muitas pesquisas foram produzidas e em grande parte delas um dos argumentos mais recorrentes diz respeito à falta de correspondência, seja entre as versões enviadas com sugestões de melhoria e as

31 Aurina Oliveira Santana, Malvina Tuttman e Márcia Angela Aguiar.

versões finais publicadas e mesmo, para além da desarmonia de arquivos, o desajuste entre documentos e a realidade sócio-histórica.

Também é possível pensar em ajustamento, já que se trata de um documento prescritivo. Não será a BNCC a materialização do controle social? E quanto aos trechos que remetem à autonomia, emancipação e liberdade? Outros questionamentos emergem quando o assunto é currículo, sobretudo quando o governo proponente apresenta tendências privatistas que são antigos fantasmas da educação brasileira, como foi no caso do governo interino de Temer. Nessa direção, Silva (2018, p. 45) destaca que

a primeira indagação diz respeito à sua “natureza”: mais prescritiva ou menos prescritiva? Uma listagem de objetivos sequenciados temporalmente, como acabou constando do Documento da BNCC é expressão de uma dimensão regulatória e restritiva e reforça a ideia de que se trata de algo que conduz a uma formação sob controle.

O movimento de redescoberta da democracia pós-golpe militar de 1964 fez a educação respirar e provar o sabor da liberdade. Em um jogo baseado na proposta de formação única, com teor de obrigatoriedade no sentido de forçar os jogadores a seguirem caminhos determinados previamente levanta suspeitas por parte daqueles que dispõem de um olhar crítico. É preciso ficar atento às rodadas para perceber quando somos de fato jogadores ou meras peças que se movimentam cegamente sob os mandos e desmandos de que está à frente do processo. Silva (2015, p. 375) também questiona se

é possível falar em um “currículo nacional” sem recair na ideia de uma determinação que desconsidera a realidade que insiste em ser não linear e desigual? Diante de todos os cuidados em se tomar a diferença como elemento central nas proposições sobre currículo, respeitando a multiplicidade de formas de se viver a infância e a juventude, a proposta de Base Nacional Comum Curricular vai justamente em sentido oposto ao entendimento de que enfrentar as desigualdades passa por respeitar e atentar para a diferença e diversidade de todos os tipos, desde a condição social até as diferenças étnico-raciais, de gênero, sexo etc. A padronização é contrária ao exercício da liberdade e da autonomia, seja das escolas, seja dos educadores, seja dos estudantes em definirem juntos o projeto formativo que alicerça a proposta curricular da escola.

Não se questiona o fato de o currículo ser um território de disputas. Afinal, em um jogo baseado na competição, quem tem o poder de determinar como serão e até onde irá cada classe de jogadores, tem nas mãos uma antecipação do resultado, a manutenção das posições sociais desiguais. Conforme o argumento de Oliveira

(2018, p. 57), “quando escolhemos o que entra nos currículos, escolhemos o que sai e esta decisão é política, favorece a alguns e prejudica outros”. O fato de as lutas sociais serem inerentes às políticas curriculares diz respeito à história de enfrentamentos entre as visões que presam pelo conhecimento enjaulado e as que defendem sua libertação.

No documento O JOGO DAS POSIÇÕES SOCIAIS: (páginas 182-188)