• Nenhum resultado encontrado

AS REGRAS DO JOGO – NOMOS

No documento O JOGO DAS POSIÇÕES SOCIAIS: (páginas 139-143)

Com efeito, para que sejam favorecidos os mais favorecidos e desfavorecidos os mais

3.2 AS REGRAS DO JOGO – NOMOS

Até então, todos os eventos resultaram na consolidação de posições prévias num campo ainda por nascer. Passados mais de cinco séculos, as posições seguem pouco alteradas, ao passo que os agentes com os quais se concentra a maior parte do poder são majoritariamente do sexo masculino, brancos e cristãos.

Evidentemente que não se nega as implicações das relações de força num sentido físico e psicológico. No entanto, a tendência pela conservação da sociedade como locus tipicamente desigual é lida como um paradoxo da doxa, ao compreender que

“o fato de que a ordem do mundo tal qual é, com seus sentidos únicos e seus sentidos proibidos, no sentido próprio ou no sentido figurado, suas obrigações e suas sanções” (BOURDIEU, 1998, p. 11) resultado da naturalização das posições desiguais para a construção “de consenso sobre o dissenso” (MICELI, 2003, p. 72).

Estruturas estruturantes atuaram e ainda o fazem na definição prévia das posições do Campo Educacional Brasileiro ao mesmo tempo que o modo de ser e agir relacionado à posição ocupada foi/é internalizado. Feito isso exterioriza-se o que fora incorporado para fortalecer o espaço social enquanto lugar da conservação. Em outras palavras, o campo abriga as estruturas que dão origem ao habitus e este retroalimenta o campo (BOURDIEU, 2015a).

Sob um ponto de vista congruente, Elias e Scotson (2000) expõem o processo de estigmatização dos outsiders pelos estabelecidos. Em primeira

instância acontece a marginalização da pobreza. Em seguida ocorre o desígnio das características nucleares dos dominados por parte dos dominantes. A terceira etapa é enxergar o pobre como sujo. Por último é não reconhecer a condição humana dos oprimidos.

Visto de forma mais detalhada compreende-se que logo de início ocorre a manutenção da pobreza como forma de controle de massa. Trata-se do primeiro estigma, que tem origem no monopólio das posições sociais, do poder, de formas diversas de prestígio e da concentração de renda e demais vantagens materiais. A eficiência do processo pode ser medida pela grande adesão ao pensamento de que a pobreza decorre de características inferiores inatas ao sujeito (ELIAS; SCOTSON, 2000).

O segundo estigma se refere à ação de designar aos grupos que se quer excluídos aspectos típicos da vida anárquica, algo que inclui a forte inclinação para a criminalidade articuladas à desestruturação familiar e social como um todo. Aliado às privações materiais e culturais ou mesmo pela justaposição de ambas, bem como o descaso por parte do Estado, a situação desigual é reforçada ao mesmo tempo que os dominados são marginalizados de tudo e todos (ELIAS; SCOTSON, 2000).

Exemplo de tal situação refere-se ao posicionamento do atual Ministro da Educação quando emitiu opinião sobre jovens homossexuais, caracterizando-os como provenientes de famílias desestruturadas. Essa é uma postura corrente relacionada a representantes do governo Bolsonaro na tentativa de exclusão de direitos de grupos como os homossexuais, dentre outros.

O terceiro e quarto estigmas referem-se respectivamente à concepção de que os pobres possuem hábitos inadequados de limpeza/higiene e a não classificação dos dominados como humanos de fato (associação à vida selvagem) (ELIAS;

SCOTSON, 2000).

Todos esses estigmas contribuem para a ratificação das diferentes posições sociais com forte associação à distribuição da cultura legítima nas instituições escolares. O projeto de segregação racial foi um sucesso no sistema educacional brasileiro, no qual as melhores posições foram reservadas à elite branca como herança da perversidade invisível e desejada. Pode-se dizer que

o predomínio da ideologia dominante (a ideologia da classe dominante), que se caracteriza, no plano ideológico, pelo fato de que a reprodução das relações de produção "triunfa" sobre sua transformação (obstaculiza-a, a lenifica ou a suprime, nos diferentes casos), corresponde menos a manter idêntica cada "região" ideológica, isoladamente considerada, do que a reproduzir as relações de desigualdade-subordinação entre essas regiões (com seus "objetos" e as práticas em que eles se inscrevem) (PÊCHEUX, 1996, p. 145).

Nesse caso, o capitalismo enquanto ideologia da classe dominante – doxa – se associou com a sistema formal de ensino para garantir sua perpetuação. No caso do Brasil, durante o ciclo expansivo da economia correlacionado à consolidação do capitalismo industrial entre os anos de 1933 a 1980 (SUZIGAN, 2000), a educação passou por etapas importantes ao firmamento do modo de produção capitalista no país como por exemplo o Estado Novo de 1937 a 1945, também conhecido como Terceira República Brasileira. A chamada Era Vargas constituiu-se de um “governo centralizado e ditatorial com fortes influências de doutrinas totalitárias vigentes na Europa (nazismo e fascismo)” (ARANHA, 2006, p. 295). O período foi marcado pela industrialização e pelo redirecionamento da educação para atender às demandas emergentes do mercado de trabalho.

A violência simbólica age em favor da doxa correspondente. As relações de poder são sempre dialéticas e tendem para a perpetuação da dominação. Algumas dessas relações de poder, no que tange ao processo de edificação do campo educacional brasileiro (CEB), se constituíram para a imposição da visão de mundo necessária a fundação do campo. O poder em jogo é essencialmente simbólico e compreendido como

[...] poder de construir o dado pela enunciação, de fazer ver e fazer crer, de confirmar ou transformar a visão do mundo e , deste modo, a ação sobre o mundo, portanto o mundo; poder quase mágico que permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou econômica), graças ao efeito específico de mobilização, só se exerce se for reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitrário (BOURDIEU, 2011, p. 11).

A princípio, no contexto prévio à emergência do CEB a dominação manteve vínculo estreito com a violência física e psicológica. No entanto, o fortalecimento dos movimentos sociais, sobretudo daqueles relacionados às reinvindicações negras e indígenas, favoreceu dialeticamente a migração das táticas de convencimento para o terreno simbólico. Outro fator diz respeito à criação de um novo estilo de vida,

baseado na individualidade, na concorrência, no apelo ao consumo e na vida acelerada.

Foi preciso estabelecer essas características como pré-requisitos à edificação do CEB. Estranhamente, é como se uma máquina de produção em série tivesse sido construída depois de seu produto. Neste estava inscrita a lógica de funcionamento da máquina que nem ao menos existia. Os “defeitos de fábrica” são combatidos sistematicamente, mas estão sempre presentes e constituem a mínima possibilidade de transformação da ordem fundante.

Nesse sentido, a incorporação de um conjunto de crenças pré-reflexivas, mediante interiorização da exterioridade – opus operatum – e a exteriorização da interioridade – modus operandi – representam a dialética fundante do habitus e do campo, que no contexto da educação brasileira está relacionado às estratégias de coerção simbólica dos agentes para que estes assumissem tacitamente os ideais dos grupos dominantes – nascedouro dóxico do campo educacional brasileiro – no que se refere à cultura legítima e o arbitrário cultural que subjaz a necessidade de sua reprodução.

Mediante a criação de relações da doxa com a vida cotidiana a ponto da primeira ser reconhecida como crença espontânea, opinião ou tudo aquilo que dispensa justificativas por pertencer à tradição, os conhecimentos provindos e provedores das elites foram classificados como necessários, legítimos e superiores a outras formas de conhecimento. Uma vez que a experiência cotidiana estivesse entrelaçada com a doxa, a educação seria incumbida da montagem de um estado de automatismo fundante do campo. Isto posto, a dialética passa a se exprimir na invisibilidade, em toda a luz que ofusca sem ser notada. Nas palavras do sociólogo francês, a prática educativa denominada de ação pedagógica

é objetivamente uma violência simbólica, num primeiro sentido, enquanto que as relações de força entre os grupos ou as classes constitutivas dê uma formação social estão na base do poder arbitrário que é a condição da instauração de uma relação de comunicação pedagógica, isto é, da imposição e da inculcação de um arbitrário cultural segundo um modo arbitrário de imposição é de inculcação (educação) (BOURDIEU;

PASSERON, 2014, p. 27).

A pedagogia implícita sob a perspectiva bourdieusiana corresponde a um ato de violência simbólica à medida que força o agente a seguir caminhos por vontade

própria que não lhe é própria. A violência simbólica está para a doxa em P. Bourdieu assim como as formas simbólicas estão para a ideologia em J. B. Thompson. O sociólogo norte-americano conceitua a ideologia “em termos das maneiras como o sentido, mobilizado pelas formas simbólicas, serve para estabelecer e sustentar relações de dominação” (THOMPSON, 2011, p. 79). Estas são estabelecidas por meio da criação ativa instituição de relações de dominação e sustentadas – no sentido da manutenção e reprodução – mediante “um contínuo processo de produção e recepção de formas simbólicas” (ibidem).

As teorias sociais críticas de ambas as sociologias – bourdieusiana e thompsoniana – apresentam congruências que apontam para o plano simbólico como elemento preponderante na criação, manutenção e reprodução da estrutura social. O consenso entre as perspectivas teórico-metodológicas fortalece a noção de que a educação se associa fortemente – de modo dialético – à legitimação e transformação do status quo, embora essa primeira seja mais vigorante.

Os quadros 7 e 8 a seguir propõem um paralelo entre os pensamentos dos sociólogos sobre o modo geral de funcionamento da ideologia e da doxa com suas respectivas estratégias de construção simbólica. A correspondência é evidente, ainda que alguns termos se diferenciem. A presença dos modos gerais e das estratégias correlatas na educação formal nos permite enxergar que a “cultura escolar é a cultura dominante dissimulada” (NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2002, p. 32).

Quadro 7

Modos de operação da ideologia

MODOS GERAIS ESTRATÉGIAS TÍPICAS DE CONSTRUÇÃO

No documento O JOGO DAS POSIÇÕES SOCIAIS: (páginas 139-143)