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CONTEXTO ESCOLAR E VIOLÊNCIAS

A discussão sobre violência na sociedade é importante porque é um fenômeno que se desdobra no ambiente da instituição escolar. Os primeiros estudos a respeito do assunto, a palavra “violência” era utilizada para caracterizar homicídios, roubos, uso de armas, associados muitos mais ao bandido do que ao aluno, e os conflitos vivenciados no meio escolar eram encarados, tão somente, como atos de indisciplina. Não se falava em violência na escola, mas sim em indisciplina escolar. D’Antola (1989), Etrela (1994), Foucault (1987), Vasconcelos (1992) todos utilizavam o termo indisciplina19 para referir-se aos conflitos no contexto escolar. No final da década de 90, passamos a constatar uma proliferação de estudos sobre a violência, principalmente os relacionados ao contexto escolar, tendo em vista a relevância que o tema tem assumido na sociedade. Percebemos que a utilização do termo “violência” passa a ser empregado para os conflitos que a escola vem enfrentando (Candau, et al.,1999; Nascimento,1999; Peralva,1997; Cárdia,1997; Guimarães,1996). Observamos uma falta de consenso a respeito do conceito, pois, quase sempre, é resultante da perspectiva com que cada autor aborda o tema.

Na literatura existente sobre violência, o que se encontra é uma variedade enorme de definições a respeito do tema. A palavra é utilizada para denominar os mais diversos atos e a noção que se tem da mesma é, por princípio, ambígua. Pois bem, podemos concluir que não existe uma única violência, mas uma multiplicidade de manifestações de atos violentos, cujas significações são analisadas dentro do contexto social e histórico em que ocorrem, sendo assim é possível considerarmos a objetividade e subjetividade da violência; motivos esses que nos levam a mencionar “violências” e não “violência”. Cabe relembrarmos também, o fato de que uma sociedade “decreta ser violência e, muitas vezes, o que um grupo crê ser violência não é considerado por outro” (Waiselfisz, 1998, p.145).

19 O termo “indisciplina” é relacionado intimamente ao conceito de “disciplina” e tende a ser definido pela negação

ou privação desta, ou pela desordem proveniente da quebra de regras estabelecidas. Indisciplina refere-se, portanto, ao “procedimento, ato ou dito, contrário à disciplina”. Sendo assim, indisciplinado é aquele que se “insurge contra a

As diferentes acepções do termo violência e a sua abrangência não nos permitem distinguir uma situação de violência de outra, muito menos um ato de indisciplina de um ato de violência, o que nos leva a inferir que existem elementos comuns entre ambos e o marco conceitual que os separa é tênue. Afinal, seria possível falar de uma sem citar a outra? Onde a indisciplina acaba e a violência começa?

Para falarmos de indisciplina teremos que mencionar o que entendemos por disciplina. As premissas de uma sociologia da violência escolar foram colocadas por Émile Durkheim. Portanto, abordaremos a questão da disciplina no âmbito da socialização, recorrendo a esse clássico da Sociologia da Educação.

A idéia comum e corrente para a compreensão da indisciplina é de que ela é a ausência da disciplina. Durkheim (1925) põe a necessidade da disciplina escolar para a construção de uma personalidade social, na qual o indivíduo se submete às regras da Moral. A criança, aos olhos do autor, é um ser marcado pela ausência porque lhe faltam qualidades morais, consideração aos interesses dos outros, isto é, faltam-lhe condutas recomendadas para a convivência social. Por meio da regularidade e da autoridade, os limites são definidos para as crianças. E, para completar o processo, as punições e as recompensas garantem o respeito às regras.

Não devemos nos esquecer de que a escola e a sociedade estão passando hoje por uma crise relacionada à socialização, e elas têm enfrentado dificuldades na transmissão das normas e dos valores gerais. A sala de aula é o espaço onde vigoram novos modelos de relações entre professores e alunos, em que tudo pode ser passível de discussão, onde a hierarquia fica menos visível, onde os alunos têm o direito de opinar, é uma nova realidade. O termo indisciplina, entretanto, não pode se restringir apenas à indicação de negação, privação da disciplina ou à compreensão de desordem, de descontrole, de falta de regras. A indisciplina pode, também, ser entendida como resistência, ousadia e inconformismo. Mas mesmo nesse sentido positivo, a indisciplina incomoda, porque a escola não está preparada, de fato, para conviver com cenas em que o professor não tem mais o controle total e em que cada aluno tem o seu querer.

A escola tem se defrontado com condutas de alunos consideradas violentas, que deixam a escola surpresa, desconcertada e sem rumos. Quando se vê diante de situações dessa natureza adota medidas repressivas, chegando, muito comumente, à expulsão do “infrator”. Expulsando ela não soluciona, apenas se livra do problema e acaba

Não existe apenas um ponto de vista absoluto sobre determinado fenômeno, mas há o ponto de vista de observadores. Ao se analisar a violência do ponto de vista do adulto, tende-se a enquadrá-la no rol dos delitos, da má ação, do que requer punição. Em contrapartida, se nos ativermos apenas ao olhar do aluno, isso pode significar a isenção da responsabilidade de seus atos, já que não agem intencionalmente contra o outro, mas apenas buscam a emoção, o divertimento, as sensações diferentes. A captação de diferentes perspectivas possibilita uma infinidade de compreensões de indisciplina. Mas, ao pensar a indisciplina, há que sempre se lembrar do seu lado positivo. Muitas vezes, ela se torna instrumento de resistência à dominação, às injustiças, às desigualdades e às discriminações em busca da identidade e dos direitos (Apple, 1989; Camacho, 1990; Enguita, 1998).

Há autores que se preocupam em seus estudos com a questão da violência, indisciplina e agressividade. Profundamente preocupado com a questão da violência urbana e, especialmente, atormentado com os estragos materiais e a miséria humana provocados pela I Guerra Mundial, Freud escreve Mal-estar na civilização. Nessa obra o autor se pergunta: “como foi que tantas pessoas vieram a assumir essa estranha atitude de hostilidade para com a civilização?” E responde: “acredito que seu fundamento consistiu numa longa e duradoura insatisfação com o estado de civilização então existente e que, nessa base, se construiu uma condenação dela, ocasionada por certos acontecimentos históricos específicos” (Freud, 1974, p.106). Civilização é pelo autor definida como “a soma integral das realizações e regulamentos que distinguem nossas vidas das de nossos antepassados animais e servem a dois intuitos, a saber: o de proteger os homens contra a natureza e o de ajustar os seus relacionamentos mútuos” (p.106). Constata que não nos sentimos bem na civilização atual e questiona se algum dia os homens se sentiram melhor em alguma civilização e se seria possível uma civilização melhor. Conclui que o homem busca prazer e a essência da civilização reside na restrição de suas possibilidades de satisfação; portanto, para viver em civilização, o homem deve renunciar ou sublimar muitos dos seus instintos, especialmente os agressivos. Logo, ambos, homem e civilização, possuem reivindicações conflitantes.

Segundo Freud (1974), a civilização tem de utilizar esforços supremos a fim de estabelecer limites para os instintos agressivos do homem e manter suas manifestações sob controle por formações psíquicas reativas. A luta e a competição são indispensáveis, segundo o autor, porém, devem ser bem empregadas. Desta forma, a agressividade faz

parte da essência do homem, seja como reação às frustrações e restrições impostas aos instintos, seja inata, como manifestação do instinto da morte. “Os homens não são criaturas gentis que desejam ser amadas e que, no máximo, podem defender-se quando atacadas; pelo contrário, são criaturas entre cujos dotes instintivos deve-se levar em conta uma poderosa quota de agressividade” (Freud, 1974, p.133). Por outro lado, “a civilização tem de utilizar esforços supremos a fim de estabelecer limites para os instintos agressivos do homem e manter suas manifestações sob controle por formações psíquicas reativas” (Freud, 1974, p.134). A fonte social de sofrimento é inevitável, afirma o autor. O autor se pergunta: a que meios a civilização recorre “para inibir a agressividade que se lhe opõe, torná-la inócua ou, talvez, livrar-se dela?” A civilização tem os seus artifícios para conter e reprimir a agressividade instintiva humana. Um desses artifícios é a lei, invenção por meio da qual a civilização estabelece normas rígidas de convivência social. Objetivo: manter a ordem social vigente e seus suportes cultural, econômico e ético-moral. A lei regula e regulamenta a convivência do homem na civilização; ela arbitra o status quo; estabelece normas de conduta, padrões, convenções, regras. A obediência à lei passa a ocorrer em recompensa social; a desobediência, em castigo. Por isso, recompensa e castigo fazem parte das regras do jogo civilizatório. Mas a lei, ressalta o autor, só se sustenta mediante a força, a coerção, diga-se, por meio da violência. Para Freud (1974) a lei nada mais é do que um tipo de violência baseada no suposto consenso entre os vários segmentos de uma determinada comunidade. Trata-se, pois, de uma violência concedida pela comunidade, em nome de sua ordem e de sua harmonia. Assim, já não se trata mais de uma violência individual, mas de violência social. A lei, portanto, possui todas as condições para exercer a violência, pois ela a faz em nome da preservação social, principalmente, produtivo- reprodutiva.

Freud contesta as teorias que apostam na possibilidade de instaurar mudanças econômicas e políticas que atendam todas as necessidades e desejos do homem, pois o conflito entre indivíduo e sociedade, para ele, é intrínseco à natureza humana. Os autores frankfurtianos utilizam-se da teoria freudiana para explicar a constituição da personalidade, mas mostram que ela se forma no processo de socialização do indivíduo. Para tratar dos aspectos psicológico e sociológico na constituição do indivíduo e na origem da violência, os autores recorrem com freqüência ao conceito psicológico de

regressão. Entendem que uma sociedade que impõe sacrifícios, renúncias e situações de extrema privação, inevitavelmente, conduz o indivíduo à regressão.

No trabalho de Adorno, Hokheimer e Marcuse está sempre presente a relação entre a personalidade e o contexto social em que ela é formada. Na discussão sobre a

violência, segundo os autores, os dois aspectos social e individual estão juntos. Adorno (1995) defende o uso da violência nos casos em que o homem não dispõe de

outro recurso para gerar condições humanas mais dignas a fim de defender sua humanidade. Converter todos os homens em seres inofensivos e passivos, segundo o autor, constitui uma forma de barbárie, na medida em que eles só poderão contemplar o horror e se omitir no momento decisivo (p.164). Para o autor, a violência pode ser um sintoma da barbárie, mas não precisa necessariamente sê-lo. (p.164). Diz, ainda, que “a barbárie existe em toda a parte em que há uma regressão à violência física primitiva, sem que haja uma vinculação transparente com objetivos racionais na sociedade, onde exista, portanto a identificação com a erupção da violência física” (Adorno, 1995, p.160).

Segundo Adorno (1995), a forma de que a ameaçadora barbárie se reveste atualmente é a de, “em nome da autoridade, em nome dos poderes estabelecidos, praticarem-se atos que anunciam, conforme sua própria deformidade, o impulso destrutivo e a essência mutilada da maioria das pessoas” (p.159). A barbárie, aquilo que gera ou permite a violência física, primitiva, e a destruição entre os homens deve deixar de existir. E a educação precisa colocar essa meta: apontar a barbárie, aprender a reconhecê-la, mantê-la consciente e promover a reflexão crítica sobre esta realidade. Esta reflexão crítica deve estar presente na formação de todo educador, de modo que ele possa situar a sua ação a partir dela. As reflexões devem ser “transparentes em sua finalidade humana” (Adorno, 1995, p.161).

Mesmo reconhecendo os valores e as contribuições do legado de Durkheim e Freud à educação, acreditamos ser necessário ir além e buscar novos caminhos para compreender a indisciplina, agressividade, barbárie e violência. O que observamos é que o quadro real é aquele em que as regras e os valores encontram dificuldades de serem interiorizados, de se adaptarem, em que o individualismo se impõe, e que permite o florescer da indisciplina, da agressividade, da incivilidade, da violência e da barbárie. É necessário reconhecer que nalgumas circunstâncias a violência é um componente de uma nova subjetividade, dentro da qual muitos jovens constroem suas identidades

juvenis. Observamos também que a palavra “incivilidade” tem aparecido em trabalhos recentes para se referir à gama de problemas com os quais a escola se defronta, tais como: pequenos furtos, agressões verbais e físicas, humilhações, brigas, descaso pela escola, representando um meio termo de violência, tal como tem sido usado, não é o suficiente. Cabe ressaltar que, as leituras que fizemos para realizar o estudo sobre violência escolar foram principalmente de pesquisadores franceses, como Bernard Charlot (1997), Eric Debarbieux (1990, 1996, 1998, 1999) e Angelina Peralva (1996, 1997). Esses autores têm tomado como referência as idéias de Norbert Elias (1996) a respeito do processo civilizador, quando denominam as pequenas violências ou pequenas agressões do cotidiano que se repetem sem parar, a falta de polidez, a transgressão dos códigos das boas maneiras ou da ordem estabelecida, de incivilidades, para efeito de distinção das condutas criminosas ou delinqüentes.

Norbert Elias (1993, 1994) estudou o processo civilizatório pelo qual passou a humanidade, analisando a história dos costumes através dos séculos. Concentrou-se nas mudanças das regras sociais e no modo como o indivíduo às percebia, modificando comportamentos e sentimentos. Assim, o que consideramos educado hoje é resultado de séculos de pequenas transformações nos costumes e no modo de pensar. Quando falamos em incivilidade, estamos afirmando que o que ocorre atualmente é a inversão das condições que teriam definido o curso do processo civilizatório. Estaríamos regredindo no estágio de evolução secular dos costumes construídos pelas gerações que nos antecederam20.

Ao investigar a violência nas escolas francesas, Charlot (1997) sintetiza a tese de Elias, afirmando que a violência seria um conjunto de incivilidades, ou seja, de atentados cotidianos ao direito de cada um ver sua pessoa respeitada. Ele coloca que o homem, por sua condição antropológica, é obrigado a aprender a ser homem. Já que nasce imaturo, ele só pode se hominizar se for capaz de se apropriar daquilo que a espécie humana cria no curso da história. Desde que ele aprende, se hominiza, ele entra numa relação que está sempre em marcha com o mundo, com o outro e consigo mesmo. Charlot indaga:

20 Segundo Latterman (2000), são necessárias cautelas no uso do termo “incivilidade”, pois ainda não sabemos quais

são exatamente os nossos padrões brasileiros de civilidade. Para a autora, no Brasil, o processo civilizatório adquiriu configurações específicas no que se refere à questão da cidadania. A cidadania está a serviço das corporações e o restante da população fica com o resto. Mas questionamos: por que não podemos falar em civilização?

Pode-se educar e crescer sem violência num mundo que não é mais aquele da partilha com outros, mas uma arena onde a regra dominante é aquela da performance e da concorrência? Pode-se hominizar, se socializar e se tornar um sujeito singular dotado de marcas estruturantes numa sociedade onde a exclusão do outro (e sempre em primeiro lugar aquele “veio de outro lugar”) não é mais um tabu, mas um tema de um debate social? E se cada um “porta em si o fantasma do outro” (...) como o desprezo de si mesmo não irá se transformar na raiva do outro – reciprocamente? (Charlot, 1997, p.20).

Pesquisas coordenadas por Charlot indicaram que a tensão cotidiana tem aumentado bem mais que a violência entendida como agressão física. “Essa tensão se mantém e exacerba a incivilidade; e explode sob a forma de crises – injúrias, rixas, tumultos, pancadas, etc” (Charlot, 1997, p.20). Além de ser maior, essa tensão está prolongada até nas escolas que, há alguns anos, eram consideradas seguras.

Essa premissa de que a violência decorre da falta de controle sobre as condutas e da ausência da civilidade incorpora a idéia de fundo de que é a civilização que canaliza e estabelece a contenção dos instintos. Parte dessa premissa também a idéia de que a escola, responsável pela hominização, deve “civilizar” os alunos, de forma a levá-los a controlar suas condutas, suas emoções e seus impulsos agressivos. No entanto, a escola não tem cumprido seu papel de hominizar porque sua função socializadora não se tem evidenciado, provocando, assim, um espaço no qual o aluno tem construído uma experiência de violência (Dubet, 1995). Assim, a instituição escolar não pode ser vista apenas como reflexo da opressão, da violência, dos conflitos que acontecem na sociedade (violência na escola). É importante argumentar que as escolas também produzem sua própria violência (violência da escola).

Os autores acima citados nos convidam a uma análise muito responsável do que denominam violência, deslocando-a do conceito e dos comportamentos de indisciplina; descaracterizando-a como fator de cunho individual, contextualizando o fenômeno e enquadrando-o como elemento de uma rede de relacionamentos, em que a intenção violenta de cada ato singular é produzida em um contexto coletivo e também decodificada em uma situação intersubjetiva. Mas não devemos nos esquecer de que um olhar superficial sobre uma leitura incorreta de que violência, indisciplina, agressão, incivilidade e barbárie são condutas fáceis de serem definidas, principalmente no contexto escolar, acabaremos não refletindo que apenas o “mergulhar profundo na realidade escolar é que mostra a dificuldade de compreender que existe uma fluidez dos limiares desses conceitos” (Camacho, 2000, p. 37).

Assim, podemos dizer que os diversos usos e significados da palavra violência ao lado de termos correlatos como indisciplina, agressão, incivilidade e barbárie permitem alterações expressivas de significados correntes sobre o conjunto das ações escolares. Atos anteriormente classificados como produtos usuais de transgressões de alunos às regras disciplinares, até então tolerados por educadores como inerentes ao seu desenvolvimento, podem hoje ser sumariamente identificados como violentos. Ao contrário, condutas violentas, envolvendo agressões físicas, podem ser consideradas, pelos atores envolvidos episódios rotineiros ou mera transgressão às normas do convívio escolar (Sposito, 1998).