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MÚLTIPLOS OLHARES PARA O FENÔMENO DA VIOLÊNCIA:

Conceituar violência não parece ser uma tarefa simples. Por isso, não é possível analisar a violência de uma única maneira, tomá-la como um fenômeno uniforme. Além da sua amplitude, complexidade e ambigüidades, duas questões tornam ainda mais difícil sua conceituação. A primeira diz respeito ao fato de que o termo violência se apresenta como um significante cujos significados são histórica e culturalmente construídos. Tal como acontece com outros termos - como veremos mais tarde em relação à juventude-, dependendo do momento histórico ou contexto social, significados diferentes lhe são atribuídos. A segunda questão diz respeito ao fato de que o termo pode ser referido a situações marcantes diversificadas, cada uma respondendo a determinações legais, modos de produção, explicações e efeitos diferentes. É freqüente encontrarmos na literatura e nas páginas de notícias, referências que permitem focalizar, diferencialmente, o fenômeno. Violência doméstica, física, racial, contra a mulher, contra a criança, simbólica, institucional, etc., são outros tantos delimitadores que nos falam dos âmbitos e situações diversas que, sob o termo genérico, escondem realidades que são modos de manifestações e de entendimento de violências bem diferentes. Muitas vezes quem fala da violência não explicita claramente os marcos conceituais dos quais se utiliza para falar.

Na literatura nacional o que observamos é que alguns autores têm tomado a idéia proposta por Costa (1986) em que a violência é o emprego desejado de agressividade com fins destrutivos. Outros estudos têm adotado o conceito de Michaud (1989, p. 14) o qual afirma que há “violência numa situação de interação, em que um ou vários atores agem de maneira direta ou indireta, causando danos a uma ou várias pessoas em graus variáveis”. Neste trabalho, utilizaremos como referência a contribuição de Michaud, afirmando que a violência ocorre quando não apenas há o desejo de destruição, mas quando causa danos a uma ou várias pessoas em graus variáveis, seja em sua integridade física, seja em sua integridade moral, em suas posses, ou em suas participações culturais. O que se evidencia é que não podemos separar as ações de praticar-sofrer violência, porque em momento algum elas se mostram

independentes; muito pelo contrário, uma nasce dentro da outra, uma faz parte da outra, de forma estrita que, muitas vezes, torna-se impossível delimitá-las.

A origem etimológica da palavra “violência” remonta ao termo latino “violentia” (força, caráter bravio ou violento) e ao verbo “violare” (transgredir, profanar, tratar com violência). O núcleo de significação “vis” significa força, vigor, potência, violência, emprego de força física, mas também quantidade, abundância, essência de alguma coisa (Michaud, 1989). O autor ainda aponta duas orientações principais para o termo violência: 1) de um lado, designa ações e fatos (neste caso, a violência se opõe à paz e à ordem); 2) de outro lado, diz respeito a uma maneira de ser da força, do sentimento ou de um elemento natural – paixão, natureza (neste caso, a violência é uma força brutal que desrespeita as regras e passa da medida) (p.07). Assim, podemos inferir a classificação em: atos de violência, neste caso, a violência está presente em atos concretos de agressão, destruição e transgressão das regras e da ordem em vigor; e em estados de violência, neste caso, a violência está oculta em estados sutis de uso da força. Já não se trata mais de atitudes brutais, mas de uma situação ou circunstância social que oprime, reprime, violenta, gradualmente, às vezes até de forma quase imperceptível.

A dificuldade em definirmos precisamente o termo violência deriva do fato de que – num sentido mais amplo -, a violência pode existir em todos os lugares onde houver transgressão, seja ela brutal ou sutil. Desta perspectiva, “pode haver quase tantas formas de violência quantas forem as espécies de normas” (Michaud, 1989, p.08). Exatamente por isso que compartilhamos a idéia do autor quando adverte que não há um saber universal sobre a violência e que as definições objetivas, ainda que bastante úteis, não estão isentas de pressupostos diversos e não conseguem apreender o conjunto de fenômenos sociais.

Para melhor compreendermos o fenômeno da violência, é preciso, pois, considerarmos a “polissemia do fato social investigado” e o “politeísmo de valores” (Maffesoli, 1987, p.15). Termo esse que se remete, popularmente e de forma cômoda, a tudo o que se refere à força, à luta, ao combate, ao conflito, aos comportamentos obscuros contra um determinado indivíduo, grupo ou uma sociedade. O autor considera a violência como “estruturante coletivo”, ou seja, ela deve ser concebida “como motor principal do dinamismo das sociedades” (p.129). Não significa, porém, que as sociedades devam submeter-se às ações e estados violentos. Em nenhum momento o autor faz apologia à violência, pelo contrário, ele deixa isso claro em reiteradas

afirmações em seu texto. Esclarece-nos da inevitabilidade da violência, ao invés de se tentar escondê-la, é preciso revelá-la para, assim, conseguir compreendê-la. Não se a evita simplesmente por meio da repressão, posto que isso só fará aumentar a sua reação brutal. Mas afinal podemos evitar a violência? Segundo Maffesoli (1987), podemos evitá-la por meio da busca de um certo grau de socialização. E isso é possível “ritualizando a violência” (p.15). No campo da violência, poderiam ser tomados como exemplos de “acordo” ou de “ritualização”: as regulamentações do uso de armas e dos meios de luta, a defesa dos “direitos humanos”, os rituais das competições esportivas, o estabelecimento de regras para garantir o término de guerras e conflitos, os regulamentos dos diversos jogos etc. Vários estudos já nos sinalizaram que a regulamentação do uso de armas e dos meios de luta, não são viáveis para se “evitar” a violência.

Na leitura que fizemos de Maffesoli (1987), observamos ainda que o autor destaca três modalidades de violência: - “a violência dos poderes instituídos”, referindo- se aqui à violência dos burocráticos, dos Estados, do Serviço Público; - “a violência anômica” que, para o autor, parece ter função fundadora, que mostra a capacidade que uma sociedade tem de identificar-se consigo própria, de estruturar-se coletivamente quando assume e controla a sua própria violência, e – “a violência banal” que está ativa no que o autor chama de “resistência da massa”. Em cada uma destas modalidades, o autor demonstra tanto aspectos específicos de um duplo movimento entre destruição e construção, como também a estreita conexão entre eles. É nesta relação ambígua que o plano da destruição, da desagregação vem organizar e fecundar “a rigidez mortífera de uma estruturação social perfeitamente codificada e normalizada” (Maffesoli, 1987, p.29).

Vale a pena relembrarmos, neste momento, quando Chesnais (1981) nos chama a atenção para o fato de que existem várias concepções de violência, as quais devem ser hierarquizadas segundo o seu custo social. Para o autor, o referente empírico deste conceito é a violência física – inclusive a violência sexual – que pode resultar em danos irreparáveis à vida dos indivíduos e, conseqüentemente, exige a reparação da sociedade mediante a intervenção do Estado. A segunda concepção do autor abrangeria a violência econômica, que se refere aos prejuízos causados ao patrimônio, à propriedade, principalmente àqueles resultantes de atos de delinqüência e criminalidade contra os

bens, como o vandalismo.17 Uma terceira concepção tem por foco a idéia de autoridade, que possui forte conteúdo subjetivo e, segundo o autor, encontra-se em foco: trata-se da chamada violência moral ou violência simbólica. Pois bem, a ideologia pode dar vida à violência simbólica á medida que faz predominar um significado sobre outro, tornando- o enganosamente universal. Esse autor sustenta que somente a primeira concepção (violência física) tem por base uma definição etimologicamente correta, encontra amparo nos códigos penais e nas perspectivas profissionais quanto ao fenômeno. Assim, a violência física é que significaria efetivamente a agressão contra as pessoas, já que ameaça o que elas têm de mais precioso: a vida, a saúde e a liberdade (Chesnais, 1981, p.14).

O pensamento de Norbert Elias (1996), cuja tese principal é a de que a condição humana é alcançada numa construção lenta e prolongada do próprio homem, traz uma contribuição significativa para o entendimento da violência para o nosso trabalho quando examina as duas formas de violência entendidas por ele como violência física e violência não física. Elias diz que há sociedades sem monopólios estáveis da força e sociedades com monopólios estáveis da força, conforme já mencionamos anteriormente. Por sociedades sem monopólios estáveis da força, ele entende que sejam aquelas “em que a divisão de funções é relativamente pequena, e relativamente curtas as cadeias de ações que ligam os indivíduos entre si” (Elias, 1996, p.198) e nas quais se verifica a presença da violência física. Sociedades com monopólios mais estáveis da força seriam aquelas “em que a divisão das funções está mais ou menos avançada, nas quais as cadeias de ações que ligam os indivíduos são as mais longas e maior a dependência funcional entre as pessoas” (Elias, 1996, p.198). Nessas últimas, não há ataques súbitos e estão livres da violência física, mas por outro lado, vêem-se forçados a reprimir em si qualquer impulso no sentido de atacar fisicamente o outro. Há ainda a necessidade de repressão a condutas e impulsos afetivos. Temos como hipótese que as manifestações de violência que nos interessam nessa pesquisa, talvez sejam amostras microscópicas de um imaginário coletivo que permite circular a idéia que o monopólio estável da força foi quebrado.

Também autores brasileiros buscam refinar o conceito de violência e de violência física e violência não física – com referência em Norbert Elias-, considerando

17 Segundo Chesnais (1981), os franceses se identificam tão intimamente com o seu patrimônio e seus bens que,

a população-alvo, os jovens e o lugar social da instituição objeto, a escola. A literatura nacional contempla não apenas a violência física, mas inclui o acento na ética e na política e a preocupação em dar visibilidade às “violências simbólicas” (Peralva, 2000). Chauí (1998) parte de um conceito amplo de violência, no qual aponta os cinco sentidos conferidos à palavra:

Etimologicamente, violência vem do latim vis, força, e significa:

1. tudo o que abrange a força para ir contra a natureza de algum ser (é desnaturar);

2. todo ato de força contra a espontaneidade, a vontade e a liberdade de alguém (é coagir, constranger, torturar, brutalizar);

3. todo ato de violação da natureza de alguém ou de alguma coisa valorizada positivamente por uma sociedade (é violar);

4. todo ato de transgressão contra aquelas coisas e ações que alguém ou uma sociedade define como justas e como um direito;

5. conseqüentemente, violência é um ato de brutalidade, sevícia e abuso físico e/ ou psíquico contra alguém e caracteriza relações intersubjetivas e sociais definidas pela opressão, intimidação, pelo medo e pelo terror. (Chauí, 1998, p. 33-4).

Segundo a autora, vivemos uma situação paradoxal, pois, se de um lado brada-se contra a violência a favor de um “retorno à ética”, de outro, são produzidas imagens e explicações para a violência que impedem a visibilidade e a compreensão da violência real. A violência real, para a autora, é ocultada por vários dispositivos ideológicos: 1)- um dispositivo jurídico, que localiza a violência apenas no crime contra a propriedade e contra a vida; 2) – um dispositivo sociológico, que considera a violência um momento de anomia social; 3)- um dispositivo de exclusão, isto é, a distinção entre “nós brasileiros não violentos” e um “eles violentos”, “eles” sendo aqueles que, “atrasados” e “deserdados”, empregam a força contra a propriedade e a vida de “nós brasileiros não violentos”; 4)- um dispositivo de distinção entre o essencial e o acidental: por essência, a sociedade brasileira não seria violenta, portanto a violência é apenas um acidente na superfície social sem tocar em seu fundo essencialmente não violento. A autora conclui que,

Dessa maneira, as desigualdades econômicas, sociais e culturais, as exclusões econômicas, políticas e sociais, o autoritarismo que regula todas as relações sociais, a corrupção como forma de funcionamento das instituições, o racismo, o sexismo, as intolerâncias religiosas, sexual e política não são consideradas formas de violência, isto é, a sociedade brasileira não é percebida como estruturalmente violenta e por isso a violência aparece como um fato esporádico superável (Chauí, 1999).

Sposito (1998) encontra um nexo entre a violência e a quebra do diálogo, da capacidade de negociação – que, de alguma forma, é foco do conhecimento/ educação. Assim, para a autora, “violência é todo ato que implica a ruptura de um nexo social pelo uso da força. Nega-se, assim, a possibilidade da relação social que se instala pela comunicação, pelo uso da palavra, pelo diálogo e pelo conflito” (p. 60). A violência, segundo a autora, pode, então, acontecer das mais diferentes formas, e os sujeitos produzem os mais diversos significados a partir dessas práticas, numa relação com as condições históricas e culturais.

De acordo com Minayo e Souza (1998), a violência é um fenômeno de conceituação complexa, controversa e com vários sentidos. Entretanto, as autoras a definem como um fenômeno representado pelas ações humanas realizadas por indivíduos, grupos, classes, nações, ocasionando danos físicos, emocionais, morais e espirituais a outrem. Consideram que as dificuldades encontradas no estudo da violência não residem no modo como ela se apresenta, na explicação de sua forma em si, mas, sobretudo, no sentido oculto, implícito destes fatos, e explicam:

(...) não há um fato denominado violência, e sim violências, como expressões de manifestação da exacerbação de conflitos sociais cujas especificidades necessitam serem conhecidas. Têm profundos enraizamentos nas estruturas sociais, econômicas e políticas, e também nas consciências individuais, numa relação dinâmica entre condições dadas e subjetividade (Minayo e Souza, 1998, p. 514).

Vê-se, então, que para analisar uma manifestação de violência, é imprescindível abarcar a estrutura social, assim como os aspectos relacionais, culturais e individuais que compõem essa estrutura.

Zaluar (1999) também discute o caráter plural da violência. Em suas palavras “além de polifônica nos significados, ela é também múltipla nas suas manifestações”

Martucelli (1999), ressaltando a importância das pesquisas empíricas possibilitarem que sejam feitas distinções entre os tipos de violência e também do grau de tolerância de que elas gozam no campo investigado. Segundo o autor, “é preciso desconfiar de uma representação geral de violência” e, então, “classificar as diversas manifestações de violência segundo seu maior ou menor grau de materialidade ou de estilização” (p.162).

Por essa pequena amostra, podemos verificar que não é fácil definir o que se entende realmente por violência. Tal dificuldade fica patente no texto clássico de Hannah Arendt, Sobre a violência (1994), em que a autora distingue violência de poder (power), força (force) e vigor (strenght), complexificando ainda mais a questão (p.13). Sendo assim, observamos que o objeto violência parece continuar à espera de uma definição precisa o que não ocorrerá justamente porque faz parte agora da dinâmica de construção de identidades sociais, às quais mudam e reagem às circunstâncias específicas. O debate entre os partidários de uma definição restrita e os pesquisadores que preferem uma abordagem mais extensiva permanece.

Pois bem, para compreendermos o fenômeno da violência, necessitamos construir uma rede-teia de significados que se aproximam e se distanciam, possibilitando ir para além da aparência dos fatos e das representações sociais, buscando pelos sentidos que desperta em cada sujeito. Assim, ao analisar a sociedade e a violência, precisamos buscar as raízes dos conflitos geradores dessa violência, não apenas através das cenas expressas, mas principalmente apreendermos as violências veladas dentro de uma determinada cultura e que permeiam as ações e interações cotidianas entre as pessoas. É necessário refletirmos sobre as diferentes faces da violência.