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Os contextos de influência e produção de texto do novo currículo do Estado de São Paulo: um pouco da história

CAPÍTULO 3. O novo Currículo do Estado de São Paulo e a diversidade sexual

3.1. Os contextos de influência e produção de texto do novo currículo do Estado de São Paulo: um pouco da história

O novo currículo afirma ter como norte para o seu desenvolvimento as disposições da LDB/1996 e dos PCN para o Ensino Médio das quais, quero destacar, a relação do Ensino Médio com o momento de preparação para o trabalho. Segundo a Proposta (SÃO PAULO, 2008, p.19), “a tradição de ensino academicista, desvinculado de qualquer preocupação com a prática, separou a formação geral e a formação profissional no Brasil”. Essa separação, de acordo com o documento, não cabe mais aos dias atuais, no qual o mundo do trabalho, permeado pelas inovações tecnológicas, exige dos/as alunos/as e futuros/as profissionais, determinadas habilidades, o que é denominado pelo novo currículo de preparação básica para o trabalho.

Cabe destacar que, com a LDB de 1996, a educação brasileira passa por transformações importantes: amplia-se a educação básica, incluindo a Educação Infantil e o Ensino Médio, estabelece a obrigatoriedade do Ensino Fundamental; o Conselho Nacional de Educação (CNE) é restituído; reitera-se também a gratuidade do ensino básico obrigatório; institui-se a descentralização administrativa e financeira da educação, ou seja, os municípios e os estados tornam-se responsáveis pela oferta da Educação Infantil, do Ensino Fundamental e Médio, enquanto à União cabe a responsabilidade pelo Ensino Superior. A LDB também afirma que o plano de educação implementado se formula a partir dos referenciais da Declaração Mundial sobre Educação para Todos (Jomtien/Tailândia, 1990).

Por conta dos resultados insatisfatórios obtidos no Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo (SARESP) e nas avaliações nacionais, o Estado criou o Programa São Paulo faz escola, que, no ano de 2007, elaborou uma Proposta Curricular que pudesse, em 2008, reestruturar o currículo das escolas. A Proposta, composta por um documento geral e pelos cadernos do/a gestor/a, cadernos dos/as professores/as e dos/as alunos/as apresenta como objetivo a padronização do ensino/currículo das escolas do Estado (Ensino Fundamental e Médio), com o intuito de obter uma educação de qualidade. A proposta vem como mais uma iniciativa de promover melhoras nas condições do ensino e aprendizagem. É importante destacar que em 2010 a nova Proposta Curricular da Secretaria

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do Estado de São Paulo se consolidou enquanto Currículo Oficial da Rede Pública Estadual de Ensino.

Segundo a Proposta Curricular:

[...] a relevância e a pertinência da aprendizagem dos conteúdos educacionais para a formação do cidadão foram definidas na organização curricular, proposta a todas as escolas. De acordo com ela, o sistema de ensino deve assumir a indicação de elementos básicos para que suas escolas possam promover uma educação de qualidade, que atenda os objetivos sociais. (SÃO PAULO, 2008, p.5).

O documento afirma ainda que:

A Proposta desenha, ainda, ações para apoiar a escola na gestão de seus recursos, a fim de oferecer aos alunos da rede pública de ensino uma educação à altura dos desafios contemporâneos. Seu desenvolvimento faz com que o Governo do Estado de São Paulo possa cumprir o compromisso de garantir a todas as crianças e jovens uma educação básica de qualidade (SÃO PAULO, 2008, p. 6).

O Documento de Apresentação afirma que o objetivo da Proposta é obter uma escola que possa promover “as competências indispensáveis ao enfrentamento dos desafios sociais, culturais e profissionais do mundo contemporâneo” (SÃO PAULO, 2008, p.3). Cabe questionar o que é entendido como desafio para o mundo contemporâneo. Não seriam questões importantes para este mundo aquelas que se referem às desigualdades de gênero, ou aquelas que provocam ações discriminatórias e preconceituosas quando o assunto é diversidade sexual?

Quando define o quanto é desafiador ser estudante na contemporaneidade, a Proposta reitera que isso implica em “[...] fazer da experiência escolar uma oportunidade para aprender a ser livre e ao mesmo tempo respeitar as diferenças e as regras de convivência” (SÃO PAULO, 2008, p.5). De que forma então o documento propõe o trabalho com diversidade sexual? Essa é a questão que procurarei responder nos próximos itens do Capítulo.

Ciampi (2009), ao analisar a Proposta e, mais especificamente, o que esta propõe para a disciplina de história, afirma que:

Trata-se de um receituário que amarra o professor e engessa qualquer iniciativa criativa no interior das escolas, já que não é uma proposta opcional, como o documento eventualmente parece sugerir, mas obrigatória,

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uma vez que está diretamente vinculada ao desenvolvimento de habilidades para obtenção de melhores resultados no Saresp. Resultados pelos quais os professores serão seguramente responsabilizados, caso a proposta malogre (CIAMPI, H. et al., 2009, p. 378).

Ao analisar os conteúdos dos Cadernos de História, a autora considera que a seleção desses conteúdos em nada difere do que já existe nos livros disponíveis no mercado e que vinham sendo utilizados. Chama atenção também para o fato de que o foco da Proposta passa a ser a aprendizagem. O plano do/a professor/a deve indicar o que o/a aluno/a vai aprender e não exatamente o que o/a professor/a vai ensinar.

A Proposta Curricular, diferentemente de outras propostas curriculares, não levanta a bandeira do novo, ao contrário, se afirma como uma proposta que visa uma continuidade. Cabe refletir se a forma com que foi estruturada propõe alguma continuidade a partir do que já propunham os PCN - Temas Transversais - Orientação Sexual. Se as proposições dos Temas Transversais, em termos de aplicabilidade no cotidiano escolar, não obtiveram sucesso e ficaram à margem do currículo, o que dizer de um currículo que entende que a transversalidade deve ter como representantes apenas as competências de leitura e escrita?

Questiono então, como se dá o processo de elaboração das políticas, quais os interesses que estão por trás da seleção dos conteúdos, quais os critérios e o mais importante, que tipo de sociedade pretende formar? Será que a busca pela qualidade requer mesmo a desconsideração de algumas questões sociais em detrimento da preocupação apenas com os conteúdos disciplinares? Será que alunos e alunas críticos/as, com ações pautadas no respeito pelo/a outro/a não seria um objetivo interessante para chegarmos a tão desejada qualidade?

Desde 2008, por meio de decretos e resoluções, o governo conectou o resultado da avaliação da escola à política de bônus e gratificações aos/às profissionais da educação. Trata- se de uma política que coloca o/a profissional da educação como objeto do sistema capitalista, uma vez que, é gratificado/a pelo desempenho nas avaliações externas. Uma política com esse objetivo rotula escolas, professores/as e alunos/as, colocando-os/as numa pirâmide hierárquica na qual uns são punidos pelo baixo desempenho e outros são gratificados pelo êxito nas avaliações. Na lógica da conjuntura política atual, é possível dizer que a educação paulista caminha de acordo com o sistema vigente, que coloca os/as profissionais numa rede de concorrência, que ignora os contextos sócio-econômicos das escolas, professores/as e alunos/as e pode gerar estigmas cada vez mais acentuados.

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Para Cancelliero et al. (2009, p.14),

O sistema de avaliação externa funciona na lógica da exclusão: o resultado do desempenho dos alunos no Sistema de Avaliação do Rendimento Escolar do Estado de São Paulo (SARESP) é um dos critérios para o estabelecimento do índice de Desenvolvimento da Educação de São Paulo (IDESP), que estipula ano a ano as metas a serem alcançadas pelas escolas estaduais. Quando a instituição não alcança a meta determinada, os profissionais da educação que lá atuam não recebem bônus.

Os resultados das avaliações são apresentados como propulsores da organização da Proposta Curricular e a forma encontrada pela Secretaria Estadual de Educação para garantir a participação dos/as profissionais no processo de implantação foi a consulta ao/a professor/a via internet e a realização de treinamento por videoconferências. Os/as profissionais da educação têm sua autonomia negada e são alijados do direito de participação no processo de construção da política (SARNO; CANCELLIERO, 2009).

De acordo com Saviani,

[...] o currículo é uma construção social, é sempre gerado em situações de contradição, tem uma dinamicidade peculiar e as decisões sobre ele resultam de processos de negociações. Negociação no sentido político – de correlação de forças, de luta de interesses. (SAVIANI, 2009, 31).

Nesse jogo de interesses das políticas curriculares, o último lugar é ocupado pelo/a professor/a. O currículo deve ser entendido como processo e para tanto é pertinente inserir nesse diálogo a teoria do Ciclo de Políticas, para a qual, as políticas representam relações de poder, são produtos de acordos, de influências, produções de textos, discursos e recriações. Nessa conjuntura, a interpretação e envolvimento dos/as professores/as no processo de criação da Proposta Curricular são determinantes de como se dará a relação do dia a dia da escola com a implementação do novo currículo.

Cabe ressaltar as possíveis contradições entre o currículo real e o currículo ideal, expressas, por exemplo, em outras contradições como: “[...] currículo prescrito (formal, escrito) versus currículo praticado (currículo na ação); currículo realizado versus currículo avaliado; currículo manifesto versus currículo oculto (ou subjacente)” (SAVIANI, 2009, 32). Para completar esse quadro de análise cabe dialogar com os/as atores e atrizes da escola para compreender o funcionamento do currículo na prática.

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A análise da Proposta se apresenta complexa porque exige um trânsito pelas concepções de currículo, escola, educação e sociedade e foi o que procurei pretensamente fazer. Não pretendo estabelecer os pontos positivos e negativos da Proposta, mas problematizar e questionar os processos de elaboração e implementação das políticas curriculares e, sobretudo, como a pauta da diversidade sexual se insere nesse contexto.

Segundo Bezerra Neto et al. (2009), a concepção de educação apresentada pelo Governo do Estado de São Paulo no novo currículo a coloca numa perspectiva conformista e até determinista, uma vez que entende que a educação tem que preparar o indivíduo para atuar numa sociedade globalizada, repleta de desigualdades na qual cada um/a deve buscar o seu lugar ao sol. Nesse contexto apresentado, as possibilidades ou caminhos para uma possível transformação social não são apresentados para o/a aluno/a.

No que tange às influências internacionais, o documento manifesta claramente a adesão à visão difundida pelo Banco Mundial, expressa no relatório elaborado por Jacques Delors em seu texto Educação um tesouro a descobrir publicado com o apoio da UNESCO, cujos princípios fundamentais desenhados para a educação do século XXI são: aprender a conhecer; aprender a fazer; aprender a viver junto (aprender a conviver com os outros) e aprender a ser (BEZERRA et al. 2009).

Como aparece na apresentação da Proposta Curricular:

A autonomia para gerenciar a própria aprendizagem (aprender a aprender) e o resultado dela em intervenções solidárias (aprender a fazer e a conviver) deve ser a base da educação das crianças, dos jovens e dos adultos, que têm em suas mãos a continuidade da produção cultural e das práticas sociais. (SÃO PAULO, 2008, p.6).

Quanto ao papel do/a gestor/a escolar no contexto da Proposta, este/a passa a ser responsável não só pela administração da burocracia da escola como também pela formação do/a professor/a. Para o Governo, os/as gestores/as têm a função de ensinar aos/às professores/as o que os/as alunos/as devem aprender. O Caderno do Gestor tem a finalidade de “apoiar o gestor para que seja um líder e animador da implementação desta proposta curricular nas escolas públicas estaduais de São Paulo” (SÃO PAULO, 2008, p. 4).

A Proposta está focada na formação para o trabalho. Considerando que o contexto do trabalho se dá numa conjuntura capitalista, esse trabalhador deve ser “[...] produtivo, dócil e

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obediente, que não questione as desigualdades produzidas pelo capitalismo em seu estágio atual” (BEZERRA NETO et al. 2009, p. 41).

Assim,

[...] esta proposta tem como princípios centrais: a escola que aprende, o currículo como espaço de cultura, as competências como eixo de aprendizagem, a prioridade das competências da leitura e da escrita, a articulação das competências para aprender a contextualização no mundo do trabalho. (SÃO PAULO, 2008, p. 6).

Para este autor “[...] o Estado se exime do dever de ensinar e passa para o cidadão o direito de buscar conhecimentos, mesmo que estes não sejam disponibilizados para o trabalhador”. (BEZERRA NETO et al. 2009, p.42).

Colocam ainda que,

Sob outra perspectiva, que não a da Secretaria de Educação de São Paulo, o currículo poderia estar voltado para a transformação da realidade social, passando a ter um formato mais global, articulando a problemática social do cotidiano, com os conteúdos historicamente construídos e sistematizados pela humanidade, funcionando as disciplinas, neste caso, como substratos para a compreensão da realidade e sua transformação. (BEZERRA NETO et al. 2009, p. 43).

Ainda sobre a questão do trabalho como foco da educação no Ensino Médio, apresento aqui um trecho do Caderno do Professor de Língua Portuguesa, 3ª série, vol. 3, direcionado ao/a professor/a: “[...] observe que a educação é essencial para habilitar a mão de obra aos novos desafios de trabalho do mundo atual. Além disso, grande parte do aprendizado se faz por escrito, o que requer bons leitores e produtores de texto” (São Paulo, 2009, p. 12).

É importante contextualizar que a política educacional de São Paulo, está nas mãos do mesmo partido há uma década e meia e não dá pra dizer que a mesma conseguiu estabelecer uma trajetória que considerasse o processo e o tempo necessários para a implantação de qualquer política que vise à transformação.

Analisando esse processo considerando os contextos de influência e produção de texto, cabe destacar que o Secretário de Educação de São Paulo, Paulo Renato Souza, responsável pela implementação da Proposta, foi o coordenador do Programa de Governo de FHC nas eleições de 1994 e 1998 e Ministro da Educação dos dois Governos de FHC (1995- 2002). Como Ministro de FHC foi responsável pelos PCN, criou o FUNDEF (Fundo de

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Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental), o ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio), o Programa de Avaliação do Livro Didático, o Provão, a Progressão Continuada, além do vínculo com o movimento das privatizações do Ensino Superior ocorridas na administração de FHC. Pode-se dizer que a gestão de Paulo Renato Souza caminhou no sentido das orientações do Banco Mundial, de políticas de educação com bases neoliberais (SANFELICE et al., 2009).

Para Sanfelice et al. (2009, p. 50), “[...] essa concepção de educação é lastreada na pedagogia das competências e nos pilares didático-pedagógicos do “aprender a aprender”, assim, “[...] o Projeto Pedagógico traça todas as orientações a serem seguidas por gestores/as e professores/as para a implementação da Proposta Curricular”. Pergunta-se então, que autonomia têm gestores/as e educadores/as no contexto desta Proposta? Com o novo currículo, os/as professores/as são impelidos/as a seguirem os conteúdos dos Cadernos, a cumprirem as tarefas e caso tenham êxito no trabalho e garantam a produtividade, serão recompensados/as com bônus no fim do ano. (SANFELICE et al., 2009).

A Proposta está amparada pelo controle, uma vez que, a partir dela, passamos a ter um/a professor/a coordenador/a, uma organização de cadernos bimestrados e conteúdos e avaliação conectados ao SARESP. Poderia arriscar a dizer que, se trata de uma tentativa do Governo de ocultar os problemas e dificuldades do sistema educacional, maquiando assim os índices do sistema de rendimento escolar das suas escolas e, em última análise, gerando um fictício avanço (FREITAS, 2009).

Além desses pontos levantados acima é importante enfatizar a ideia apresentada pela Proposta, de que há um tempo único para todos/as. Embora afirme que “[...] a escola deverá ser tão diversa quanto o ponto de partida das crianças que recebe” (SÃO PAULO, 2008, p.10), a mesma, coloca em seguida que “[...] será possível garantir igualdade de oportunidades, diversidade de tratamento e unidade de resultados” (SÃO PAULO, 2008, p.10).

Para expressar melhor esta ideia cabe expressar as colocações de Freitas (2009, p.63),

Ao bimestralizar a rede com conteúdos definidos corre-se o risco de acionar os mecanismos mais perversos do sistema de ensino convencional, ou seja, o tempo único para todos – exatamente na contramão da ideia da progressão continuada que pretende nos ensinar a olhar para o conjunto do desenvolvimento obtido no ano, pelo menos em tese.

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Portanto, “[...] O coração do sistema de avaliação está na articulação da matriz de referência do SARESP com uma proposta curricular ‘apostilada’ acompanhada nas escolas por professores coordenadores e demais especialistas” (FREITAS, 2009, p. 63). Ainda sobre a questão do Bônus, trata-se de uma política que coloca os/as atores e atrizes da escola numa posição de concorrência que pode gerar estigmas e exclusões para as escolas que não atingem os pontos necessários.

O próximo item tem como foco a análise dos Cadernos do Professor, com ênfase no contexto de produção dos textos dos Cadernos, bem como na reflexão do lugar da diversidade sexual no currículo.