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CAPÍTULO 1. As bases teóricas da pesquisa: literatura fundamental

1.2. Refletindo sobre gênero.

Para Vianna (2011, p.80) “[...] o gênero enquanto um modo de dar significado às relações de poder estabelecidas e difundidas pelas políticas educacionais está presente nas mais variadas esferas, níveis e modalidades de ensino”, por isso, a discussão acerca do conceito de gênero se faz importante no desenvolvimento desse trabalho.

Com base nos estudos feministas das autoras Gayle Rubin (1989; 2003), Monique Wittig (1992), Joan Scott (1995) e Judith Butler (2003), iniciarei este debate sobre o conceito de gênero como uma categoria de análise que permitirá uma reflexão mais pormenorizada da diversidade sexual, perpassando pela concepção de sexualidade e como ambas as categorias - gênero e sexualidade - se colocam no contexto da educação e da diversidade sexual na contemporaneidade.

É importante destacar que o sexo está sendo pensado numa perspectiva política, assim como entendem as autoras mencionadas, pois as formas de vivenciarmos e pensarmos as sexualidades são produtos, sobretudo políticos. É fundamental compreender o gênero em suas dimensões social, política e histórica, uma vez que a sexualidade vai, ao longo da história, impondo sua própria política interna, suas desigualdades e suas formas de opressões, conforme se lê em Rubin (1989).

Uma teoria radical da sexualidade para Rubin (1989) deveria identificar, descrever, explicar e denunciar as injustiças e opressões sexuais. Deveria, em síntese, problematizar as formas de opressões geradas pelos equívocos aos quais está submetida a sexualidade dos indivíduos. Acerca das escolas ideológicas que estabeleceram teorias a respeito da sexualidade, é possível destacar dois momentos importantes que precedem a ideia de pensar que já é tempo de estabelecer um paradigma que traga uma teoria radical da sexualidade. A primeira delas é a visão essencialista da sexualidade, que vê o sexo como uma força natural cuja existência é anterior à vida social e que está embutido no saber popular das sociedades ocidentais que vêem o sexo como algo “imutável, a-social e trans-histórico”, ou seja, algo sem

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história. (RUBIN, 1989, p.130). A segunda, a construtivista, parte de uma perspectiva teórica e histórica, dá ao sexo e à sexualidade uma história. Assim, a partir desta visão, a sexualidade passa a ser entendida como um fenômeno que se constitui na sociedade e na história e não apenas na biologia.

Seguindo a linha de pensamento mais construtivista, cabe destacar o autor Michel Foucault que em História da Sexualidade apresenta uma crítica à primeira visão (tradicional) da sexualidade como algo natural. O autor vai problematizar que os desejos não estão dados por instâncias biológicas que nos precedem, mas que vão se constituindo por meio de práticas sociais num determinado contexto histórico. A sexualidade para esse autor é pensada como um fenômeno (FOUCAULT, 1988).

Além dessas escolas ideológicas mencionadas, algumas outras são determinantes nesse processo de definição e valoração do sexo e da sexualidade, tais como, as visões negativas do sexo, que o entendem como algo pecaminoso, perigoso e que está intimamente ligada à tradição da religião cristã que estabelece como o sexo bom àquele que está vinculado ao matrimônio e à procriação; à hierarquização e valoração das práticas sexuais são instauradas e instituídas pela religião, pela psiquiatria e também pelo pensamento popular.

Para Rubin (1989), essas forças ideológicas unidas criam uma pirâmide hierárquica da sexualidade na qual uma forma de vivenciar a sexualidade é mais valorizada do que outras. Nessa perspectiva, a heterossexualidade (especificamente a do homem, branco, casado, reprodutor) ocupa o topo da pirâmide, enquanto os/as homossexuais, seguidos especificamente de transexuais, travestis, bissexuais, profissionais do sexo estão nas bases.

Em síntese, com todas essas forças atuantes o sexo passa a ser rotulado como bom ou mal. As bases desses estigmas podem ser encontradas nas tradições religiosas ocidentais, nos discursos e práticas médicas e psiquiátricas e nas concepções populares, que geram uma espécie de sistema universal ideal da sexualidade, ou seja, um sistema que prevê e determina como deve ser a sexualidade de todos/as.

No que tange às transformações no campo da sexualidade, observo que muitas das populações antes marginalizadas e estigmatizadas, passam a ocupar espaços de maior destaque na conjuntura social. Passam a reivindicar espaços políticos e sociais e, sobretudo, legais. Esse processo caminha lado a lado com movimentos estatais de intervenção na conduta

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sexual dos indivíduos, em que um ótimo exemplo é o controle sobre a sexualidade dos/as jovens. Para Rubin (1989, p.153),

[...] La ley es especialmente fiera en la tarea de matener la frontera entre la ‘inocencia’ infantil y la sexualidade ‘adulta’. Em vez de reconocer la sexaulidad de los jovenes e intentar ocuparse de ella com cariño y responsabilidad, nuestra cultura niega y castiga el interés y actividad erótica de todo aquel que este por debajo de la edad de consetimiento. La cantidad de leys dedicadas a proteger a la gente joven de uma prematura exposición a la sexauldad resulta sosprendente.

A autora ainda destaca que o Estado sustenta essa hierarquia sexual por meio de outras ações institucionalizadas como regulamentos militares que impedem homossexuais de servirem nas forças armadas; no caso brasileiro, proibições de uniões civis, de adoções por casais homossexuais, dentre outras (RUBIN, 1989). Além disso, problematiza a questão do consentimento, destacando que “[...] Em la ley, el consentimiento es um privilegio del que disfrutan sólo aquellos cujas conductas sexuales son del más alto ‘status’” (RUBIN, 1989, p.181).

Ao refletir sobre o feminismo e suas vertentes ideológicas, a autora destaca duas delas: a primeira é aquela que lutou por uma liberação sexual que compreendesse homens e mulheres igualmente e a segunda é aquela que considera a liberação sexual uma mera extensão dos privilégios masculinos e que se apresenta contrária, por exemplo, à pornografia e a comercialização do sexo em geral.

Rubin (1989) acredita que o feminismo é uma teoria da opressão entre os gêneros, mas não acredita que o mesmo seja um espaço privilegiado e ideal para uma teoria sobre a sexualidade. Para ela, o gênero e o sexo não são a mesma coisa e nem a sexualidade é uma derivação do gênero. Ambos constituem dois campos distintos e com práticas sociais também distintas e devem ser analisados separadamente. Reitera ainda que “[...] Igual que el género, la sexualidade es política. Está organizada em sistemas de poder que alientan y recompensan a algunos indivíduos y atividades, mientras que castigan y suprimen a otros y otras” (RUBIN, 1989, p. 187).

A vida social, para Rubin (2003), é a sede da opressão das mulheres e daqueles/as entendidos/as como minorias. No que se refere ao sistema sexo/gênero, a autora entende que se trata de um conjunto de fatores pelos quais uma sociedade transforma a sexualidade biológica em produto da ação humana, tais como os sistemas de parentesco, por exemplo. De maneira geral, a organização social vai se fazendo baseada no gênero, na heterossexualidade

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obrigatória a na construção da sexualidade feminina. É uma divisão dos sexos que vai sendo socialmente imposta a todos/as. A autora acredita que esse sistema deve ser reorganizado por meio da ação política.

A ideia de Rubin (1989), de que existe uma pirâmide hierárquica da sexualidade é interessante para pensar na diversidade sexual. Os indivíduos são, de fato, estigmatizados e classificados a partir de suas classes sociais, raça/etnia, idade, orientação sexual etc. Além desses marcadores sociais ainda convém destacar o papel do Estado como legitimador dessas hierarquizações, e isso fica claro quando olhamos para as diversas instituições que compõem a esfera social, quando assistimos às inúmeras violações de direitos as quais estão submetidos/as homens e mulheres por motivos diversos. São essas hierarquizações que determinam o que deve ou não ser aceito, o que e quem deve ou não estar na escola, quem deve ou não ser protegido pela lei etc.

Os discursos que oprimem a população LGBT são aqueles que se fundam na heterossexualidade como fundamento da sociedade. Wittig (1992) entende que homens e mulheres são conceitos políticos e opostos e que, portanto, devem ser extintos. Quando fala do conceito de diferença, acredita que defender o direito à diferença é apenas um sintoma do pensamento heterossexual que é, antes de tudo, binário. Somos compostos por muitas identidades que nos vão forjando enquanto seres humanos, homens, mulheres, negros, brancos, homossexuais ou heterossexuais.

Joan Scott (1995, p.76) propõe pensar o gênero como uma categoria analítica. A autora acredita que a inserção do conceito gênero representa uma espécie de busca por uma legitimidade acadêmica para os estudos feministas nos anos 1980. Segundo ela, “o gênero enfatiza todo um sistema de relações que pode incluir o sexo, mas não é diretamente determinado pelo sexo, nem determina diretamente a sexualidade”. O ponto de partida aqui é a perspectiva pós-estruturalista que vai explorar as dimensões das produções e reproduções das identidades de gênero dos sujeitos. A crítica apresentada está direcionada para aquelas visões a-históricas e essencialistas de mulher que reforçam o binarismo que em geral acompanha o conceito de homem e mulher.

Para a autora “[...] temos uma necessidade de uma rejeição do caráter fixo e permanente da oposição binária, de uma historicização e de uma desconstrução genuínas dos termos da diferença sexual” (SCOTT, 1995, p.84). O gênero é um elemento constitutivo das

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relações sociais que acabam por se basear nas diferenças entre os sexos e, também atuam como uma forma de darmos significado às relações de poder.

O maior desafio é dissolver a fixidez que coloca o gênero numa posição estática, a- histórica e, portanto binária, permeada por representações e símbolos do que é ser homem ou mulher, bem como de instâncias representativas que legitimam esses símbolos, tais como doutrinas religiosas, políticas educativas, jurídicas, econômicas etc.

Como ressalta Scott (1995, p.92) “[...] a oposição binária e o processo social das relações de gênero tornam-se parte do próprio significado de poder: pôr em questão ou alterar qualquer de seus aspectos ameaça o sistema inteiro”. Ao apresentar o “gênero como uma forma primária de dar significado às relações de poder” (SCOTT, 1995, p.88) a autora permite o diálogo com Bourdieu (1996) que traz a seguinte questão:

[...] o que existe de específico dentro da lógica do simbólico da qual faz parte a representação da oposição masculino-feminino para que, a despeito das mudanças econômicas e tecnológicas, entre outras, semelhanças tão profundas possam se perpetuar entre estágios tão diferentes de sociedade? (BOURDIEU, 1996).

O que Bourdieu (1996) denomina de dominação masculina, uma forma específica de violência simbólica, é algo que está inscrito nas relações, na cultura e até mesmo nas estruturas sociais e econômicas da nossa sociedade. A dominação masculina tem como uma das suas principais consequência a criação dos binarismos das relações. Segundo o autor, apenas uma mudança nessas relações nos permitiria alterar esse quadro.

Para Bourdieu (1996), as divisões dos espaços sociais, produzidas pela ordem masculina, são criadas e reproduzidas também pelas diversas instituições que compõem a sociedade. O sistema escolar, por exemplo, é um dos que contribui para a reprodução das categorias que constroem as diferenças entre os sexos. Ele acredita que somente a mudança da ordem simbólica, a tomada de consciência, poderia dar início a um processo de transformação.

Scott (1995) também permite pensar que o gênero tem como característica fundamental o seu aspecto relacional, ou seja, “[...] o gênero deve ser redefinido e reestruturado em conjunção com uma visão de igualdade política e social que inclua não só o sexo, mas também a classe e a raça” (Scott, 1995, p.93). Assim como Scott (1995), Butler (2003) enfatiza o caráter relacional do gênero, ou seja, as interseções que o mesmo estabelece

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com modalidades raciais, de classe, étnicas, sexuais e regionais de identidades discursivamente constituídas.

Sendo o gênero algo construído na cultura e na história, há sempre “um discurso cultural hegemônico, baseado em estruturas binárias que se apresentam como a linguagem da racionalidade universal” (BUTLER, 2003, p. 28). Evidencia uma cultura que tem o homem como sujeito universal, na qual predomina uma perspectiva falocêntrica de pensar a humanidade e a heterossexualidade compulsória como norte das identidades que compõem os indivíduos. A autora ressalta que quando há uma incoerência entre sexo, gênero, prática sexual e desejo, há um questionamento sobre os indivíduos, ou seja, quando as práticas não são condizentes com as normas, há a incoerência. É como se existisse uma espécie de linha causal entre sexo biológico – gênero culturalmente construído – expressão do desejo sexual.

Assim, “A heterossexualização do desejo requer e institui a produção de oposições discriminadas e assimétricas entre ‘feminino’ e ‘masculino’, em que estes são compreendidos como atributos expressivos de ‘macho’ e ‘fêmea’”. (BUTLER, 2003, p.38-39).

A autora afirma ainda que,

A institucionalização de uma heterossexualidade compulsória e naturalizada exige e regula o gênero como uma relação binária em que o termo masculino diferencia-se do feminino, realizando-se essa diferenciação por meio das práticas do desejo heterossexual (BUTLER, 2003, p.45).

A importância da linguagem na composição binária do gênero é destacada pela autora que, ao refletir sobre o pensamento de Wittig (apud BUTLER, 2003) ressalta que a linguagem é um utensílio que atua de forma misógina em suas aplicações. A linguagem e o discurso atuam como instâncias legitimadoras de poder e, o poder, na nossa estrutura sócio- cultural, é regido por uma estrutura fálica.

Para Wittig (apud BUTLER, 2003, p.164), “a categoria de sexo não é nem invariável nem natural, mas sim um uso especificamente político da categoria da natureza, o qual serve aos propósitos da sexualidade reprodutora”. Com essa ideia a autora diz que a divisão binária masculino de feminino serve aos interesses de uma economia da heterossexualidade. Para Wittig “não há distinção entre sexo e gênero, a própria categoria de sexo traz marcas de gênero, é politicamente investida, é naturalizada, mas não natural” (WITTIG apud BUTLER, 2003, p. 164).

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É importante destacar que a proposta de Wittig (apud BUTLER, 2003) de uma sociedade que se distancie dos contextos heterossexuais, por exemplo, tornando-se gay ou lésbica, não é o que acredito como solução ou caminho para as questões desta pesquisa. Para Butler (2003) a heterossexualidade não é a única manifestação compulsória de poder a instrumentalizar a sexualidade e essa proposta de Wittig não necessariamente tornaria a sociedade mais igualitária. A sugestão de Wittig (apud BUTLER, 2003, p. 181) de que o uso da linguagem como instrumento na desconstrução e reconstrução dos corpos, pode nos distanciar cada vez mais das “categorias opressivas de sexo” é significativa, afinal a linguagem é um importante elemento e expressa e legitima também as desigualdades.

A questão do corpo é algo que também precisa ser destacada uma vez que, é sabido que a base na qual se manifestam o sexo, o gênero e a sexualidade compulsória é o próprio corpo. Para Bourdieu (1996, p.36), o corpo todo é construído socialmente e a educação também contribui para o que ele chama de “gramática do corpo”, um processo pelo qual as “construções são [...] incorporadas, inscritas no corpo, elas se tornam sistemas de disposições, princípios geradores de práticas e de apreciação de práticas, ao mesmo tempo maneiras de fazer e categorias de percepção dessas maneiras de fazer”.

Butler (2003), quando problematiza as performances de gênero, provoca e desperta a ideia de que tudo é fabricado, inclusive os corpos. Assim, afirma:

[...] como estratégia de sobrevivência em sistemas compulsórios, o gênero é uma performance com consequências claramente punitivas. Os gêneros distintos são parte do que ‘humaniza’ os indivíduos na cultura contemporânea, de fato, habitualmente punimos os que não desempenham corretamente o seu gênero. (BUTLER, 2003, p. 199).

Para a autora “o gênero é uma identidade tenuemente construída no tempo, instituído num espaço externo por meio da repetição estilizada de atos” (BUTLER, 2003, p. 200). Com isso ela questiona que possam existir atos de gênero que sejam verdadeiros ou falsos; se eles são performativos e estão em constante movimento, num determinado tempo e cultura, não haveria então, como afirmar, que há ou não uma identidade de gênero verdadeira, isso a apresenta, na verdade, apenas como mais um recurso que controla os indivíduos e as suas práticas.

De acordo com Butler (2003, p. 213), “a desconstrução da identidade não é a desconstrução da política, ao invés disso, ela estabelece como políticos os próprios termos pelos quais a identidade é articulada”. A proposta é desconstruir os binarismos, buscando

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entender que existem diversas formas de feminilidades e masculinidades, e que a construção do gênero é algo histórico, que se faz o tempo todo nas relações entre as pessoas, nos discursos, nas instituições e nas representações. Louro (1997) também se refere a respeito, dizendo que ao ser entendido como histórico o gênero e as relações de gênero podem sim ser repensadas e até mesmo reconfiguradas.

As referências centrais deste trabalho são as contribuições de Butler (2003) e Scott (1995), especificamente no que tange a rejeição dos binarismos, a historicização da categoria gênero e a compreensão de que existem muitas formas de masculinidades e feminilidades, ou seja, muitas performances de gênero. As concepções de gênero, sexo e sexualidade trazidas pelas autoras com as quais trabalhei, embora discordantes em alguns aspectos, acrescentam à discussão porque expõem algumas das muitas visões e concepções do que é gênero e permitem que o pensamento sobre como acabar ou minimizar as desigualdades se amplie. Rubin (1989) e Wittig (1992) têm compreensões opostas acerca do que é sexo e gênero, enquanto a primeira entende que sexo e gênero são coisas distintas e que devem ser reorganizadas por meio de ações políticas, Wittig (1992) acredita que não há distinção entre eles e mais, defende a dissolução do gênero como forma de acabar com as desigualdades. No que tange a dissolução do gênero proposta por Wittig (1992), Scott (1995) se mostra contrária a essa ideia, entendendo que, o ponto central para a dissolução das desigualdades é compreendermos que existe uma relação entre todas elas (sociais, raça/etnia, geracional, sexuais, gênero) e que elas não são fixas e imutáveis.

Em seguida apresentarei as bases teóricas que fundamentam o que denomino de diversidade sexual neste trabalho. Para tanto, no próximo tópico procurei dialogar com os/as pesquisadores/as que vêm atuando na construção deste debate no contexto das políticas públicas educacionais.