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CAPÍTULO 3. O novo Currículo do Estado de São Paulo e a diversidade sexual

3.2. Passeando pelos conteúdos disciplinares: qual o lugar da diversidade sexual?

3.2.2. Diferenças e preconceito

O Tema 3 do Caderno de Educação Física, 3ª série, vol. 1 (SÃO PAULO, 2009b), cujo título é Contemporaneidade: diferenças de gênero e de sexo e expectativas de desempenho físico e esportivo como construções culturais, traz o seguinte:

[...] uma Educação e uma Educação Física que se pretendam democráticas e que visem ao alcance da totalidade dos alunos devem estar atentas à questão das diferenças entre os alunos e, principalmente, às formas como eles lidam com essas diferenças. (SÃO PAULO, 2009b, p. 27).

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Coloca ainda que,

Considerar que os alunos são diferentes e estimulá-los a não tratar as diferenças como desigualdades é tarefa precípua de todo o processo escolar. Compreender que um conjunto de diferenças torna o grupo mais rico, porque cria mais variáveis e permite mais diálogos, é fundamental para uma educação que se pretenda sintonizada com os dias atuais. (SÃO PAULO, 2009b, p. 27).

De acordo com esse Caderno “[...] o professor deve impedir manifestações de preconceito e discriminação entre os alunos” e “[...] quando se manifesta em comentários ou ações, deve ser imediatamente questionado” (SÃO PAULO, 2009, p. 28,).

Além disso, “as questões de gênero e de sexo, embora sutis, necessitam ser urgentemente repensadas nas aulas de Educação Física. Que sentido faz termos turmas separadas por gênero?”. O próprio documento responde dizendo que “o caminho mais direto para que tratemos dessas questões nas aulas é, no mínimo, termos os gêneros masculino e feminino com as mesmas oportunidades isto é, a coeducação entre meninos e meninas” (SÃO PAULO, 2009b, p. 28). Embora traga questões importantes para o debate em sala de aula, essa linha de raciocínio não deixa de reiterar o caráter binário das concepções de gênero presentes no documento.

A Situação de Aprendizagem Gênero e sexo: diferenças, preconceitos e expectativas de desempenho, propõe o seguinte: “inicia-se com a experimentação, por parte dos alunos e alunas, de atividades típicas do sexo contrário, a fim de gerar debate sobre dificuldades limites, preconceitos e possibilidades de atuação conjunta”. (SÃO PAULO, 2009b, p. 29, grifo meu). Essa ideia de sexo contrário é bastante complicada e vai contra o objetivo de desconstruir os estereótipos de gênero, sugere que há uma oposição entre homens e mulheres e legitima mais uma vez o caráter binário das colocações sobre gênero. Segue abaixo o quadro da Situação de Aprendizagem mencionada:

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Quadro 2 – Situação de Aprendizagem 3 - Gênero e sexo: diferenças, preconceitos e expectativas de desempenho.

Fonte: SÃO PAULO, 2009b, p.29.

Concentrando-se apenas na ideia do sexo contrário invisibiliza-se a existência de outras identidades de gênero para além daquelas que as normas binárias preveem (homem- mulher). Não se pode esquecer que existem, no espaço escolar, alunos/as que são travestis ou transexuais. Estes/as mesmos/as alunos/as muitas vezes abandonam a escola porque se sentem excluídos/as neste território. O apagamento de sua existência, também nos discursos, demonstra o tratamento que se dá a eles/as.

Como coloca Louro (1997, p. 49),

Quando afirmamos que as identidades de gênero e as identidades sexuais se constroem em relação, queremos significar algo distinto e mais complexo do que uma oposição entre dois pólos; pretendemos dizer que as várias formas de sexualidade e de gênero são interdependentes, ou seja, afetam umas as outras.

Para Wittig e Beauvoir (apud BUTLER, 2003, p.183), portanto, “ser mulher é tornar- se mulher, mas, como esse processo nada tem de fixo, é possível tornar-se um ser que nem a categoria de homem nem a de mulher descrevem verdadeiramente”.

Assim, o documento deixa de considerar que as identidades de gênero e sexuais são compostas e definidas por relações sociais, moldadas pelas redes de poder de uma sociedade, deste modo “[...] o corpo disciplinado pela escola é treinado no silêncio e num determinado modelo de fala, concebe e usa o tempo e o espaço de uma forma particular” (LOURO, 2000,

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p.21). A escola, por meio do currículo, das políticas e das práticas cotidianas segue disciplinando corpos e é conivente com a violação de muitos outros.

Como afirmam Lionço e Diniz (2009, p.12):

A solidão é um efeito marcante da homofobia. [...] Travestis e transexuais são especialmente vulneráveis à exclusão do espaço escolar, o que repercute negativamente em suas oportunidades sociais e profissionais, tendo como consequência o reforço de estereótipos que os/as estigmatizam: é o caso da prostituição, que, embora associada em termos essencialistas à condição dessas pessoas, resulta [também] da exclusão escolar e familiar.

A Etapa 1 deste Caderno denominada Todos Parecidos, Todos diferentes pede para que o/a professor/a “proponha aos alunos que realizem atividades tidas como femininas – por exemplo dança – e às alunas, atividades tidas como masculinas – por exemplo uma luta” (SÃO PAULO, 2009b, p. 29), o objetivo seria gerar um debate sobre limites, dificuldades e possibilidade de realização de atividades em conjunto, no entanto, se não forem realizadas com fundamentação teórica adequada por parte dos/as professores/as podem gerar concepções equivocadas que tendem a reiterar essas diferenças.

A Etapa 2 deste mesmo Caderno, denominada Se ela dança, ele dança, propõe “[...] a realização de atividades rítmicas em que um aluno e uma aluna, conjuntamente, devam inverter os papéis culturalmente criados com relação ao sexo” (SÃO PAULO, 2009b, p. 29), por exemplo danças de salão. A intenção é propiciar a discussão sobre limites e possibilidades de realização de atividades em conjunto, mas não tem como finalidade problematizar as razões pelas quais são instituídos os papéis atribuídos a homens e mulheres na nossa sociedade.

A Etapa 3 solicita que o/a professor/a organize e exiba trechos de filmes ou seriados que abordem as questões de gênero, promovendo o debate entre os/as alunos/as, mas não sugere nenhum específico.

As orientações gerais do Caderno do Professor de Sociologia, 1ª série, vol. 3 (SÃO PAULO, 2009h), apresentam duas questões norteadoras do trabalho do bimestre: O que nos une como humanos e o que nos diferencia? O ponto de partida é pertinente e as situações de aprendizagem versam sobre temas como: o caráter culturalmente construído da humanidade, segundo esta primeira Situação de Aprendizagem: “[...] os jovens deverão tomar consciência de que quase nada é natural do ser humano e que nossas maneiras de agir, pensar e sentir são culturalmente estabelecidas” (SÃO PAULO, 2009h, p.10). E mais: “[...] os alunos precisarão

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compreender que o que consideramos como natural em nós é, de fato, cultural, o que parece óbvio não o é”. (SÃO PAULO, 2009h, p.12).

Acerca do conceito de diferença apresenta o seguinte:

[...] quando olhamos o outro e procuramos genuinamente compreendê-lo na sua diferença, muitas vezes não olhamos somente para este outro [...] olhamos também para nós mesmos [...] ao aceitar o outro na sua diferença, muitas vezes somos levados a refletir sobre nós. Verificamos que existem outras possibilidades de existência, outras formas de ver e pensar o mundo e que a nossa é uma entre muitas. (SÃO PAULO, 2009h, p.17).

Cláudia Vianna traz uma crítica interessante sobre a noção de diferença, segundo a autora:

As diferenças marcam as lutas por direitos e a elaboração das políticas em geral, assim como aquelas que definem as peculiaridades do campo da educação pública. Ignorá-las pode acarretar o isolamento e a exclusão; trabalhar somente com elas pode municiar o mero particularismo. É preciso decompor a percepção dos direitos e desconstruir os guetos históricos, mostrando as fissuras e as contradições que a noção de diferença pode adicionar às possibilidades de construção coletiva da organização do sistema educacional. (VIANNA, 2011, p.125).

Dialogo com as ideias da autora para enfatizar que os conteúdos dos Cadernos tratam a diferença de maneira individualizada, o que evidencia o cunho neoliberal da proposta. A diferença é tratada, ao longo dos conteúdos dos Cadernos, no estremo da luta por respeito aos indivíduos, o material não problematiza que a ausência de direitos se transforma em desigualdade que nos levam a práticas desumanizadas e violentas. A mera individualização das diferenças não garante a igualdade de direitos e os conteúdos dos Cadernos deixam de abordar as contradições que permeiam o discurso de respeito e valorização das diferenças.

A Situação de Aprendizagem 3 denominada Como o homem se tornou homem?, ao abordar o conceito de cultura, destaca que ela está sempre mudando e expõe algo importante no se refere ao tema desta pesquisa, segue:

Existem muito padrões de casamento na humanidade: o de um homem com uma mulher (monogâmico), o de duas mulheres ou dois homens (homossexual), o de um homem com mais de uma mulher (poligâmico) e o de uma mulher com mais de um homem (poliandria). Na nossa cultura, o único aceito do ponto de vista jurídico, ou seja, o que é legalmente aceito, é aquele entre um homem e uma única mulher. (SÃO PAULO, 2009h, p.38, grifo meu).

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Mas, “na Holanda, por exemplo, admite-se o casamento [...] de duas mulheres e de dois homens [...], no Irã é permitido não só o casamento entre um homem e uma mulher, mas o casamento poligâmico também” (SÃO PAULO, 2009h, p. 38).

Encerra o debate afirmando o seguinte:

Ao mesmo tempo que a cultura se impõe sobre o indivíduo, que determina seu comportamento, o indivíduo pode mudar a cultura [...]. Toda cultura é uma obra coletiva, mas pode ser modificada e é vivida de diferentes maneiras pelas diferentes pessoas. (SÃO PAULO, 2009h, p. 38).

O documento analisado traz a questão, mas não problematiza o processo que institui o que deve ou não deve ser aceito em cada cultura como, por exemplo, as influências da religião nas decisões do Estado e a laicidade do Estado. Caberia problematizar que, mesmo o Brasil sendo um Estado Laico, não tem uma legislação igualitária para casais hetero e homoafetivos e materiais educativos e didáticos são vetados por tratarem de temas que versam sobre as homossexualidades e a homofobia.