• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO II: DIVERSIDADE CULTURAL LINGUÍSTICA E POLÍTICA

2. A escola em contexto multicultural e multilinguístico

2.4 Contextualização do curriculum

Depois de termos observado os variados contornos em que se desenvolve o ensino em Angola, passamos agora para um outro ângulo de reflexão ou abordagem, procuraremos analisar a questão do curriculum escolar e a sua implementação face aos diversos contextos culturais e linguísticos. Ao analisarmos profundamente o currículo do ensino primário, foco do nosso estudo, voltamos à questão já levantada no capítulo anterior sobre a adoção da língua “estrangeira” que se “auto nacionalizou”

52

Não se pode compreender uma formação em 15 dias ou em 6 dias. Esta formação devia estar incluída nas escolas de formação de formadores para o ensino Primário (Magistérios Primários, Escola de Formação de professores; Institutos de Ciências Religiosas de Angola – ICRAs E outros).

100

como língua oficial do país e de ensino. Mas antes podemos dizer o ensino em Angola “monocurricular” e elaborado pelo Instituto INIDE. Existe uma abertura para as escolas missionárias católicas, que podem sugerir ao INIDE um currículo próprio e, só depois de aprovado entraria em funcionamento53. Neste entretanto, constata-se que “O ensino formal, é feito em língua portuguesa; no entanto existem a nível governamental discussões sobre a possibilidade da inclusão de línguas nacionais no currículo” [INIDE, 2003:2].

A crítica sociológica e educacional, ajuda-nos a compreender as lacunas que este Subsistema de Ensino acarreta ou transparece. Para além de termos uma rede escolar deficitária, sobretudo em meio rural, o próprio “Curriculum” é elaborado por técnicos que desconhecem em certa medida a realidade do campo. Não há diálogo/confronto entre o campo e a cidade. Os professores/professoras que trabalham nas zonas rurais recebem os programas, currículos e aplicam-nos sem os contextualizar porque os mesmos não abrem espaço para tal. Isto equivale a dizer que estamos a insistir no “retorno” ao ensino colonial, onde “os alunos angolanos não compreendiam” a razão de terem os mesmos programas em uso em Portugal - sendo factos desfasados de seus contextos. Por exemplo, os programas de Geografia continham estudos sobre os “montes” e os “rios de Portugal”, não se fazia menção alguma à realidade angolana (FIGUEIREDO, 2012:33).

A partir do “mono” currículo vigente no país podemos correr o grande risco de ensinar realidades que não interessem aos alunos e provocar resistências - o famoso “mata aula”54

, absentismo e até desistências. No caso é a própria Escola que implicitamente exclui os alunos do seu convívio. William Pinar faz aqui um jogo interessante “se a educação é pública” então a “educação é do público”. A partir deste prisma a educação passa a ser uma “reconstrução política, psicossocial e intelectual do eu e da sociedade” (PINAR, 2007:35). O desenvolvimento dum currículo pressupõe democracia nas instituições escolares. Henderson e Kesson são de opinião que o desenvolvimento envolve “ liderança intelectual pública” (PINAR, 2007: 38). E os professores por inerência à profissão devem agir nos espaços públicos e também privados. Portanto, devem capacitar-se, a serem líderes.

53

Eu próprio participei da elaboração do currículo dos Institutos de Ciências Religiosas de Angola – ICRAs, em 2009 na província de Benguela. Que depois foi submetido à aprovação ao Ministério da Educação.

54

101

Pinar faz referência à década 60, período em que esta temática era da exclusividade dos docentes universitários de diversas áreas do saber. E acrescenta afirmando:

«Nós que exercemos funções nas universidades, temos vindo a trabalhar para compreender como é que, na escola, o currículo in loco funciona política e racialmente, em termos de género, subjetividade e de aldeia global» (HENDERSON & KESSON, Cit. in PINAR, 2007:40).

A Escola em meio rural deve ressurgir e dizer ao mundo global que ela também está presente e pode contribuir para o desenvolvimento diversificado da economia e da sociedade em construção. Assim sendo, a teoria curricular acaba por ser um vasto campo multifacetado ou interdisciplinar inteiramente vocacionado para o “estudo da experiência educacional”. Madeleine R. Grument, encara o currículo como algo que se transmite duma “geração” para a mais “nova geração”. É algo com valor simbólico e histórico que entranha os diversos setores da vida académica. E então o que será mesmo o currículo? E como deve ser contextualizado? Partimos do princípio de que não há currículo sem investigação. O currículo como “campo complexo da investigação académica” está dentro do território que podemos chamar de Educação escolar na sua amplitude. Por sua vez, a escola é convocada para “compreender o currículo por meio das disciplinas escolares e académicas” (GRUMENT, Cit. in PINAR, 2007:42-43). Estamos diante dum processo de complementaridade.

Atualmente em Angola começa-se a exigir um pouco mais das escolas, no sentido de, a partir das escolas de formação de futuros professores, segundo João Paraskeva, os “jovens passem a pensar diferente e a compreender o poder produtivo da diferença” (PARASKEVA, 2007:14). Hoje insiste-se muito na formação para que os futuros professores ou professoras tenham instrumentos que os ajudem a pensar e agir por eles próprios. É fundamental:

“Lutar por uma teoria e por uma prática curriculares que se afastem do território corrente, dos espaços onde as legislações dominantes incidem. Espaços, estes que mantém refém os professores. Este pensamento supõe desde já a “destruição” das fronteiras e tornar o currículo mais abrangente. Deleuze neste sentido fala em “desterritorializar a teoria curricular” (DELEUZE, Cit. in PARASKEVA, 2007:14).

102

Deve entender-se a teoria curricular como um “devir” filosófico, algo em potência. Segundo este autor a Educação escolar deve ser encarada como um veículo que transporta os docentes para fora do espaço e tempo frequentados até então. Mas adverte que os efeitos produzidos por esta prática podem “aprisionar os mesmos numa racionalidade meramente técnica, como forma única de pensamento” (PARASKEVA, 2007:14).

Paraskeva ao tentar quebrar estas fronteiras que “encarceram” o currículo afirma que é errado aceitar a escolarização como “dogma à avaliação”, as disciplinas, as horas e os manuais. Da forma como vem estruturado o currículo não oferece espaço de diálogo para de novo questionar e projetar-se para tudo que o rodeia (PARASKEVA, 2007:16). Paulo Roberto Padilha ao referir-se ao currículo introduz para o léxico um neologismo: “intertranscultural”. Não é tarefa fácil que gere consensos dada a sua complexidade (PADILHA, 2004:13). No mundo da atualidade fortemente marcado/dominado pela globalização económica, tecnológica e pela poderosa cadeia dos Medias, assistem-se interferências e conflitos entre os diversos grupos sociais e culturais. A educação escolar não pode alhear-se destes complexos problemas, pois ela também sofre nesta luta às vezes desigual. Daí que as propostas educativas devem pressupor uma renovação dos “paradigmas científicos e metodológicos” até aqui usados. Nesta vertente convoca-se a ideia das “relações interdisciplinares” que com temáticas diversas abrir-se-ão novas perspetivas epistemológicas indispensáveis, no dizer de Padilha, para a “promoção da transversalidade das relações interculturais” (PADILHA, 2004: 14).

Para a construção do currículo nas escolas angolanas e sobretudo em meio rural, é importante recordar as dimensões antropológico-culturais que cercam o currículo. E neste campo Padinha recorre à frase de António Custódio Gonçalves, afirmando que o currículo seja a:

«Totalidade social mais vasta que a própria sociedade que abrange não só os sistemas normativos como sistemas de relações sociais, mas também os sistemas de representações, de expressão e de ação, por meio dos quais a totalidade social é apreendida nas caraterísticas distintivas, económicas, políticas e religiosas dum grupo ou duma sociedade. Nesse sentido, a cultura compreende o conjunto, socialmente significativo, dos comportamentos, dos saberes, do saber-fazer e do

103

poder-fazer específicos dum grupo ou duma sociedade, adquiridos por um processo contínuo de assimilação e de inculturação e transmitidos à comunidade» (PADILHA, 2004:191).

A questão do currículo contextualizado continua sendo polémica e não há convergências. (SALES e GARCÍA, Cit. in PADILHA, 2004:226-227). Sirna Terranova, afirma que o currículo contextualizado deve ajudar-nos a alargar nossos horizontes para responder às inquietações culturais da humanidade e se construa um conhecimento não como “sistema de segurança imodificável”, mas como um “saber” que permanentemente, se vá organizando e que passe pela sensibilidade, por paradigmas e óticas diversas. Terranova, utiliza aqui uma expressão desafiante: que o currículo intercultural não se torne num “apartheid cognitivo”, entrincheirado nas normas opacas, mas que aceite operações de releitura, incorporando saberes comparações e interagindo com outras realidades (TERRANOVA, Cit. in PADILHA, 2004:228).

Mais do que criar um currículo paralelo ao existente ou alternativo, achamos ser relevante “estender” o mesmo (o currículo oficial) para abranger a totalidade tão diversa, de uma forma flexível e aberta assente em políticas pedagógicas bem estruturadas e em constante diálogo com o antropológico cultural existente.

Uma experiência significativa que reflete o avanço que se deu nesta abordagem vem-nos do Brasil na década 90. O Brasil conseguiu pela “primeira vez” introduzir no currículo escolar, questões sociais (PADILHA, 2004:228). Isto deve inspirar-nos para abordagens mais profundas e diversificadas da nossa realidade comunitária, ou seja, procurar em todos níveis aproximar o currículo aos contextos vividos pelos alunos. Para que tal aconteça é importante que os alunos participem ativamente na definição do mesmo, e não receber em programas fechados, elaborados e que não deixem margem de discussão. Para as nossas escolas, vai levar seu tempo até que se concretize este desiderato. Precisamos caminhar para alargar a democracia e autonomia nas escolas públicas. Paralelamente aos discursos com enfoque multiculturalista, surge o currículo intertranscultural que a sua existência pressupõe a educação intercultural (PADILHA, 2004:249).

104

Angola é um país que tem registado profundas transformações e o contexto exige a profissionalização dos setores. É fundamental desenvolver a formação e qualificação dos angolanos. Até aqui estamos de acordo com diversos autores que falam da necessidade urgente relativamente à formação. Fazendo recurso ao passado vemos que aquando da retirada de Portugal na antiga colónia (Angola), houve um desfalque enorme em determinados setores e a educação não foi exceção. Angola teve de recorrer à cooperação externa (Cuba, Países da Europa do Leste).

José Carlos Morgado e Alberto Domingos Quitembo, afirmam que hoje as exigências na arena educacional em Angola são outras e quase todos os professores que lecionam no Ensino de base ou secundário devem ter o ensino superior (MORGADO e QUITEMBO, 2014:132). Mas algo ainda pode preocupar-nos quanto aos diplomas: a fraca qualidade de ensino pode produzir formandos débeis. Segundo, José Carlos Morgado, é fundamental que se opere mudanças significativas na formação inicial e contínua ou permanente de professores (MORGADO e QUITEMBO, 2014:148). Estas mudanças passam pela organização estrutural e também a nível programático e de conteúdos. Uma formação que proporcione aos professores e futuros professores, capacidade de iniciativa e decisão; sejam conscientizados sobre a dimensão aberta do currículo e adquiram ferramentas úteis para o exercício da sua profissão.

A corrida ao ensino superior tem sido estimulada pelo aumento salarial nalguns casos e não para adquirir técnicas, instrumentos necessários para lidar com a diversidade cultural e linguística. Nesta dinâmica o currículo contextual deixa de ser um mero pacote legislativo, projeto educativo e programático. Tratar-se-á segundo Doll duma passagem a “um sistema ordenado, que tem uma sequência, quantificável que se centra em fins preestabelecidos. Na linguagem computacional, tratar-se-ia duma “rede mais complexa”, com sentido “plural e impredizível”. É algo sempre em processo (DOLL, Cit. in MORGADO e QUITEMBO, 2014:133). Termino esta parte dizendo que o “sonho” do currículo contextual implica entregar a escola aos seus verdadeiros atores (desde diretores, professores, alunos, pais e encarregados de educação e a comunidade local). Mas esta entrega não deve ser de forma arbitrária, desordenada e não deve significar desresponsabilização do governo da sua inalienável missão de prover o bem-estar dos cidadãos.

105

2.5 Participação dos alunos, pais e comunidade local no processo