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3. METODOLOGIA DA PESQUISA

3.3. Contextualizando a Tradução Realizada

Na escola apresentada, eu era professora do grupo de alunos surdos e nas sextas-feiras costumava reunir duas turmas para contar histórias com objetivo de reforçar a comunicação em língua de sinais. A tradução cultural do clássico “A cigarra e a formiga” surgiu aos poucos com estas crianças, na mesma medida em que os alunos foram também se identificando à cultura surda. Foram oferecidos aos alunos vários clássicos infantis, para que livremente estes pudessem manuseá-los e posteriormente, para que pudéssemos escolher uma história para dar segmento às atividades planejadas.

Certa ocasião, eu estava contando esta história e uma das crianças surdas criticou a minha colocação da história infantil, com uma pergunta em sinais na qual expressou “Não, como ouvir a cigarra cantar?”. Ao ser questionado sobre o porquê de tal inconveniente, isto é, sobre o “cantar” e o “ouvir”, iniciei minhas indagações que me levaram aos caminhos da tradução. Esta pergunta foi muito interessante porque foi a partir dela que se iniciou todo o processo de tradução do clássico infantil. O desenvolvimento dessa tradução passou a fazer com que o texto original passasse a ser traduzido no tempo todo da história, trazendo para a narração da mesma, diferentes características significativas dos surdos, como por exemplo, além do fato de a própria cigarra ser surda, o título da nova história também reforçava esta marca surda. E quando surda, a cigarra começa a apontar para o que queria e a fazer uso da língua de sinais, o que fez com que a formiga percebesse que era surda.

Este fato na tradução da história também me leva a perceber a importância da convivência com a comunidade surda. A história foi ficando diferente a partir dos significados culturais que foram acrescentados. O trabalho meu e das crianças surdas foi de colocar signos surdos na mesma história do livro, o que resultou na ideia de fazer na tradução uma nova história.

As crianças surdas gostam de histórias e esta em especial também foi trabalhada de maneira interdisciplinar, abordando conteúdos de Ciência e de Geografia. Entra as várias experiências, um dos momentos mais interessantes foi quando as crianças usaram terra, cataram formigas e fizeram uma maquete, mostrando muito interesse durante o desenvolvimento desta atividade.

Figura 7: Construção de Maquete.

Fonte: A Cigarra Surda e as Formigas (BOLDO e OLIVEIRA, 2004). Para apropriar-se e aprender a usar SignWriting, as crianças usaram, durante 1 ano, o dicionário de Capovilla17. Com a realização de alguns exercícios, os alunos surdos aprenderam usar e demonstravam gostar de aprender o SignWriting, entendendo a escrita de sinais. Durante os exercícios as crianças sentavam-se juntas para fazer as tarefas de escrever em SignWriting, usando palavras em português faziam o exercício de sinalizar e colocar no papel através da escrita de sinais, para então depois confeccionar algumas frases, sendo que muitas delas estão no livro “A cigarra

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O chamado “Dicionário Capovilla” (CAPOVILLA, Fernando César; RAPHAEL, Walkíria Duarte (Ed). Dicionário encidopédico ilustrado trilingiie da lingua de sinais brasileira, 2001) foi produzido e distribuído gratuitamente pelo Ministério da Educação no início dos anos 2000, sendo um dos primeiros materiais desta natureza elaborados a partir de processos científicos mais elaborados, servindo como uma dos principais materiais de aporte ao uso da língua de sinais na educação de surdos no Brasil.

surda e as formigas”, que também foi traduzido em SignWriting. Desta forma, é possível afirmar que os alunos surdos conseguiram aprender a utilizar o SignWriting, também entre si. O que pude observar é que as crianças apreciavam muito a forma do visual da escrita de sinais, sendo que a compreensão da escrita de sinais ocorreu de maneira natural e muito prazeirosa.

Outro momento vivenciado foi quando os alunos produziram alguns desenhos da cigarra surda e das formigas. A produção do texto final, porém, contou com a escrita de uma profissional, inspirada a partir de alguns dos desenhos das próprias crianças.

Foto 1: Escrita de Sinais e Português. Fonte: Arquivo pessoal

Outro momento vivenciado foi quando cada aluno fez sua narrativa e expôs a história em língua de sinais, tudo acompanhado com expressão facial e de forma visual, elementos próprios da cultura surda.

Por fim, as crianças surdas treinaram a história fazendo teatro em língua de sinais com cada personagem e desenvolveram através da criação de diálogos do que intercorre na história. A história “A cigarra surda e as formigas” transformou-se em uma peça de teatro que foi apresentada na Semana do Surdo, fazendo muito sucesso, ocasionando que posteriormente fosse apresentada em outros eventos, por quase um ano.

Figura 8: Teatro em Língua de Sinais.

Fonte: A Cigarra Surda e as Formiga (BOLDO e OLIVEIRA, 2004). Antes da apresentação pública, na sala da aula, houve a apresentação teatral realizada por crianças surdas em língua de sinais. As crianças surdas fizeram todo o trabalho de apresentação, obtendo assim, um alto grau de aprendizado por meio dos personagens principais de narrativas infantis e, consequentemente, no uso de língua de sinais por esses personagens, bem como de elementos culturais da língua. As crianças surdas perceberam as intercorrências entre as duas culturas. A tradução proporcionou estimulação para o aprendizado na Língua de Sinais, a percepção da identidade e cultura surdas.

Esta sucessão de traduções feitas pelas crianças, como a tradução cultural, seguida pela interlingual, intermodal e intersemiótica, foram intensas. Sutton-Spence e Quadros (2006, p. 116-117) comentam “que esse contexto sócio, histórico, cultural e político da tradução para a reprodução em Língua de Sinais apresentam repercussões no empoderamento do povo surdo”. Neste sentido, pude perceber que as crianças surdas mostraram expressão implícita do seu orgulho pela Língua de Sinais. A narrativa, que parte das mãos das crianças, ao recontar a história da cigarra e das formigas, atraiu a atenção. O desempenho foi além das expectativas e o resultado final foi lindo: o uso do olhar, a expressão corporal e facial foram muito significativos. Percebeu-se, nas crianças, a predisposição para a teatralidade, improvisação, espontaneidade e carisma.