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CAPÍTULO 02. FAZER-SE FEMINISTA: OS CAMINHOS E SIGNIFICADOS DA AUTO-

III.IV. Significados da auto-organização das mulheres trabalhadoras rurais do Nordeste

III.IV.I. Contextualizando o feminismo no Nordeste

Na história de organização e do engajamento político em espaços mistos das trabalhadoras rurais, como os sindicatos rurais e grupos da Igreja Católica, podemos sinalizar pontos de encontros e inter-relações com grupos feministas. Giuliani (1989), em discussão sobre a relação do feminismo com o sindicalismo no Nordeste, pontua que a partir do ano de 1983 na Paraíba e em 1985 em Pernambuco se instalaram grupos de assessorias sindicais para apoiar e incentivar experiências de educação popular voltada para mulheres da classe trabalhadora. Em geral, estas assessorias estavam relacionadas com o movimento Feminista que na época tomava outros rumos de sua trajetória no Brasil.

Ferreira (2011), ao discutir o surgimento de grupos feministas na região, considera como característica comum a estes organismos a capacidade de autonomia na construção das ações políticas e transgressão de valores. Além disso, mapeia o grupo “Ação Mulher”74 em Recife, em 1978, como um das primeiras entidades cuja proposta é a promoção da reflexão e autoconsciência de mulheres. De modo semelhante, há na capital paraibana a formação do Centro de Mulheres de João Pessoa, criado em 1979, bem como o grupo “Mulheres da Ilha” em 1980, na cidade de São Luís do Maranhão. Esses grupos, para a autora, expressam as primeiras organizações feministas do Nordeste 75.

Este período histórico que data momentos anteriores à fundação do MMTR/NE nos permite observar dois tipos de movimentação que circundam a organização de

74 Interessa-nos compreender esses primeiros grupos de mulheres para pensar o feminismo na região a partir da observação do perfil desses coletivos. Como exemplo, Ferreira (2011) nos conta que grupos como “Ação Mulher” em Recife concentravam mulheres cuja trajetória política se vinculavam aos movimentos de esquerda que combatiam a ditadura. Para essas mulheres, umas das principais preocupações estava em “desenvolver uma estratégia de reconhecimento de autoria feminista” (ARROZOLA, 2000, p. 83).

75 É válido, para compreender alguns passos do feminismo nesta região, considerar que a partir de 1980 muitos outros grupos feministas começam a surgir e alguns se transformam em Organizações não governamentais (ONGs), a exemplo do SOS-Corpo em Recife, criado em 1981. Há outros no estado de Pernambuco que data este período como o Centro das Mulheres do Cabo, Cais do Parto, Viva Mulher. No Maranhão, o grupo Mulheres da Ilha também se transforma em ONG. Em João Pessoa aparecem coletivos como o grupo Cunhã e o Centro da Mulher 8 de Março. No Rio Grande do Norte, o surgimento do Grupo Feminista Leila Diniz, com atuação mais enfática a partir da década de 1990, pauta, sobretudo, o debate do enfrentamento a violência (FERREIRA, 2011).

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mulheres trabalhadoras rurais da região. Por um lado, há, no interior das organizações mistas ocupadas pelas mulheres rurais, um debate que questiona participação, representatividade e ampliação das lutas sindicais para acesso a direitos sociais com recorte das mulheres. Por outro, há uma reconfiguração do movimento feminista que estreita laços com mulheres populares e se envolve com questões própria do universo de mulheres cuja realidade exprime outros conflitos diferentes daqueles majoritariamente hegemônicos no feminismo brasileiro da época.

Se relacionarmos esse momento histórico na região com a trajetória do movimento feminista no Brasil, podemos vincular essa movimentação com o que Sônia Alvarez (2014) designou como primeiro momento do feminismo na América Latina. Para a autora, este período está associado ao que a história mais amplamente difundida do feminismo chamaria de segunda onda76, na qual as mulheres se organizavam em movimentos sociais propriamente ditos e reivindicavam o fim da subordinação das mulheres, o direito ao aborto, a anistia, os direitos humanos e o fim da ditadura militar.

Alvarez (2014) ainda pontua que este período exprime um conflito constitutivo e polarizante: de um lado estavam as mulheres que se reconheciam como feministas e se situavam mais autonomamente na militância e, do outro, as mulheres vinculadas aos setores da esquerda que pensavam as relações de gênero, ancoradas às lutas mais gerais. O conflito, segundo a autora, estava entre os polos: “luta geral-militância política”

versus “luta específica-militância autônoma”. O marcador desse conflito que polarizava

a discussão estava na questão de classe (ALVAREZ, 2014).

Para Alvarez, o feminismo é compreendido como um campo discursivo de ação. Nele, as disputas acontecem no contexto da América Latina a partir de três pontos de conflitos. O primeiro, já mencionado, está no confronto entre as feministas autônomas e as vinculadas ao campo da esquerda. Para a pesquisadora, este segundo grupo possui certa hegemonia na luta naquele período histórico. O segundo momento do feminismo neste território está no que a autora chama de mainstreaming do gênero, quando o debate e o conflito constitutivo se inserem no processo de institucionalização do movimento feminista via ONGs e na problemática do terreno discursivo do gênero, haja vista que na época o termo foi amplamente utilizado pelo que foi chamado de “Nova Agenda Anti-Pobreza”, promovido pela segunda fase no neoliberalismo global e

76 Sobre a história do feminismo no Brasil que discute a partir da perspectiva de ondas ver: Pinto (2003), (2012).

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pensado para “ampliar” o capital social77 das mulheres do chamado terceiro mundo. Além disto, a ideia de diversidade no feminismo ganha força e aquelas mulheres do primeiro momento vinculadas ao campo da esquerda e chamada de “outras” do feminismo, discutem agora feminismos. O terceiro momento chamado de sidestreaming dos feminismos plurais vinculam-se às reações contra a ofensiva neoliberal a partir dos anos 2000. O que esse período da história do feminismo na América Latina demonstra é um processo de descentramentos dos feminismos plurais, com a ampliação para muitas bases de mulheres populares, bem como demarcando a presença do feminismo nos organismos estatais (ALVAREZ, 2014).

Como as mulheres remanescentes do campo da esquerda, e agora auto- organizadas em coletivos feministas, passaram a se relacionar com outros grupos de mulheres não declaradamente feministas. Torna-se, então, importante analisar o processo para compreender alguns diálogos travados entre esses grupos e como as organizações autodeclaradas feministas se espalham na região.

No caso que analisamos em específico, a relação que o MMTR/NE assume com organizações declaradamente feministas nos demonstram um pouco dessa história de resistência. Para o Movimento, a articulação surge da necessidade de debater alguns temas com as mulheres rurais, sobretudo no que toca o debate sobre sexualidade. Dada a necessidade, a parceria com o SOS-Corpo em Pernambuco passa a existir na década de 1990 a partir da demanda que as mulheres rurais tinham em conhecer o seu corpo. O debate assumidamente feminista também se estreita com o MMTR/NE neste mesmo período a partir das cooperações internacionais que, em algumas situações, possuíam representantes com afinidades feministas (THAYER, 2001). Estas duas articulações, via organizações não governamentais e cooperação internacional, trazem alguns dilemas para as trabalhadoras rurais no que tange os primeiros contatos com o debate feminista. Com as Organizações não governamentais, a aproximação permitia uma troca importante: por um lado as ONGs se beneficiavam de todo o trabalho de base que o MMTR/NE já tinha com as mulheres agricultoras; por outro, o MMTR/NE criava afinidades com o debate feminista, posto inclusive em nível internacional, através de discussões que conceituavam o próprio feminismo. Esta relação não aconteceu de modo passivo ou sem conflitos. Thayer (2011) nos mostra que a crescente profissionalização

77 A perspectiva de aumentar o capital social das mulheres está inserida no objetivo de integra-las no desenvolvimento de mercado. Além disto, a autora aponta que neste segundo momento, o neoliberalismo utilizou de uma máscara com cara de multicultural, humano e participativo.

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no âmbito das ONGs cria relações de poder entre os movimentos de mulheres, aumentando as desigualdades entre os grupos (THAYER, 2001)78.

Com as cooperações internacionais, o MMTR/NE inicia o diálogo via cooperação britânica denominada Oxfan-UK, que na época financiava projetos no Sertão. Esta articulação viabilizou projeto que, por exemplo, possibilitou a participação de algumas mulheres do Movimento no Encontro Feminista Latino-Americano e do Caribe em 1985, importante evento para o fortalecimento da organização79. Além disso, os benefícios para o MMTR/NE com a cooperação internacional traziam ganhos significativos, sobretudo do ponto de vista econômico, considerando que o financiamento permitia participação em encontros e outros tipos de eventos. Em contrapartida, o MMTR/NE lançava críticas às cooperações, sobretudo com relação às características em que algumas atuavam. O formato excluía algumas mulheres que não tinham o domínio técnico requisitado para a participação nos projetos, como habilidades com a escrita para produção de relatórios e linguagem “adequada” para as negociações com os financiadores. Outra reivindicação do MMTR/NE passava pelo questionamento das exigências que alguns organismos internacionais requeriam ao fim do projeto, de resultados objetivos e passíveis de mensuração. O Movimento contra argumentava alegando a dificuldade em medir avanços qualitativos, principalmente quando o objetivo do trabalho estava na transformação de visões de mundo. Era impossível mensurar mudanças de comportamento com marcadores quantitativos (THAYER, 2001).

É interessante observar este primeiro entrecruzamento do MMTR/NE com as ONGs e Cooperação Internacional, por perceber que o diálogo não representou uma troca unilateral de materiais e ideias. As problematizações emergem desde as primeiras percepções sobre as contradições existentes, sobretudo no que toca a questão classe social. É por meio desses processos de diferenciação que, as trabalhadoras rurais do

78 Thayer (2001) relata nesta articulação do MMTR/NE com o SOS-Corpo que em 1992 a ONG chamou o Movimento para uma pesquisa internacional sobre direitos reprodutivos. Na ocasião, foram coletados os dados com as trabalhadoras rurais e em 1996 a pesquisa foi publicada. A ONG fez a devolutiva para o Movimento, mas o que não foi esperado pelo MMTR/NE foi que anos depois, as trabalhadoras rurais descobriram que o SOS-Corpo estava oferecendo um curso de formação para ONGs sobre mulheres rurais, com o preço de 200 dólares por aluna/o, sem informar ou convidar o MMTR/NE, o que gerou indignação do Movimento, pois as trabalhadoras rurais alegavam que o que as feministas urbanas sabiam sobre o tema era por causa delas, e isto em nenhum momento foi evidenciado. (THAYER, 2001, p. 123). 79 Thayer (2001) nos conta que após este evento, as mulheres do MMTR/NE relatam a presunção de algumas feministas de classe média e alta. Inferimos que esta análise feita pelas militantes do MMTR/NE é resultado do conflito entre as mulheres negras e as organizadoras do evento aqui já relatado.

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Nordeste construíram modos específicos de luta feminista, se apropriavam daquilo que é pertinente, e criavam novas estratégias de luta.

Neste momento histórico de consolidação do MMTR/NE é possível contextualizar as mulheres rurais no que diz respeito ao engajamento político. Na década de 1990 segundo dados coletados por Abramovay e Castro (1998), as mulheres rurais correspondiam a 40% da mão de obra rural com média de 15 horas de jornada de trabalho ao dia. Nesta avaliação, também foi constatado o aumento da sindicalização das trabalhadoras rurais após 1985. As autoras mostraram que, além dos dados quantitativos apresentados para falar sobre as mulheres rurais, foi possível realizar um mapeamento de várias organizações populares no Brasil que possuem lideranças femininas - exclusivamente formadas por mulheres ou que tenham projetos voltados para esta temática. Com o intuito de desenvolver a hipótese, foi lançada a motivação de acreditar em um “novo” feminismo no cotidiano das mulheres dos grupos de base, sejam elas vinculadas a ONGs, movimentos sociais e/ou associações.

Na história do Movimento, é possível observar outro entrecruzamento com o feminismo que é determinante inclusive na construção da Escola de Educadoras Feministas. A experiência que nos referimos é a participação na Rede Mulher e Democracia, sobretudo através da Escola Feminista de Formação Política e Econômica80.

Buscamos compreender melhor esse processo de reconhecimento do feminismo das trabalhadoras rurais do MMTR/NE a partir da Escola de Educadoras Feministas, observando os conhecimentos produzidos por elas, a partir de uma experiência que traduz a continuidade deste processo de constituir-se autonomamente, tanto possibilitada pela articulação com os organismos internacionais financiadores, como com outros grupos feministas. Este processo se inicia a partir da aproximação do MMTR/NE com organizações feministas, mas não termina com as primeiras críticas. Há uma apropriação do que aprenderam sobre o feminismo por essas mulheres, que é (re)elaborado e dá novos significados à luta feminista das trabalhadoras rurais. Abordaremos no capítulo seguinte o processo de reelaboração da luta feminista no interior do Movimento na discussão durante a EEF sobre o Feminismo Rural. Para a conclusão deste capítulo, refletiremos sobre como as trabalhadoras rurais atribuem

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significados à auto-organização das mulheres, bem como sobre os impactos dessas reflexões em suas vidas tendo em vista a relação com o feminismo na região.