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CAPÍTULO 1. O PROGRAMA DE FORMAÇÃO DE EDUCADORAS: “A ESCOLA QUE

II.I. A Escola que Precisávamos (1994-2000)

Neste primeiro ciclo de desenvolvimento do Programa, a primeira estratégia concebida pelo Movimento estava relacionada à formação de assessorias31. Esta preocupação foi apontada como primeira necessidade por existir, na época, o reconhecimento de que precisavam suprir dificuldades para o trabalho específico com as trabalhadoras rurais. É com a formação de assessoras especialistas que os primeiros esforços se concentravam.

“Qual o motivo da preferência inicial pelas assessoras? Por duas razões. A Primeira, pelo fato de elas, mulheres de diferentes níveis educacionais, voluntárias e simpatizantes do MMTR/NE, virem de espaços mistos [com homens e mulheres], tais como sindicatos, Ongs e as pastorais católicas, ou seja, sem experiências específicas de trabalho para a libertação das mulheres. Segundo, pelo fato de, naquele momento, ainda estarmos presas à antiga ideia de que a superação das dificuldades técnicas e intelectuais do Movimento só poderia se realizar através da presença constante de assessores e

30 Dada à abrangência que foi o processo de participação do MMTR/NE na Rede Mulher e Democracia, não nos dedicamos nesta pesquisa discutir de modo aprofundado, nos restringindo apenas a situa-lo como importante antecedente que fomenta a Escola de Educadoras Feministas. No entanto, indicamos como uma interessante agenda de pesquisa a ser desenvolvida.

31 É importante destacar que dentre as assessoras, estavam trabalhadoras rurais que prestavam este tipo de

serviço. Essas mulheres estavam ligadas à fundação do Movimento, como Vanete Almeida e Maria Auxiliadora Cabral.

44 assessores nas nossas sedes, nas nossas negociações e nas nossas atividades” (A ESTRADA DA SABEDORIA, MMTR/NE, 2008:24).

A primeira necessidade apontada pelo Movimento em preocupar-se com a formação de assessorias para o trabalho específico com mulheres e através deste mecanismo, suprir necessidades técnicas e intelectuais, diz respeito ao contexto político da época. Este período histórico apresenta muitas iniciativas de fomento internacional a organizações dedicadas a questões de gênero e justiça social, com bastantes requisitos técnicos para acessos a recursos, desenvolvimento de atividades e prestação de contas. As organizações não governamentais geralmente atuavam como grandes interlocutoras deste processo, entre grandes agências de cooperação internacional e grupos de mulheres populares (THAYER, 2001).

Como exemplo disto, a ONG SOS Corpo- Instituto Feminista para a Democracia, com sede em Recife, estado de Pernambuco, no primeiro ano do Programa em 1994, contribui na Formação de Educadoras do Movimento32. Este momento de encontro com a organização feminista é avaliado pelo MMTR/NE como um importante passo para a qualificação das críticas do Movimento à educação vigente, seja no âmbito do ensino formal, seja nas práticas de educação popular nos sindicatos e associações das quais as mulheres rurais também faziam parte. O MMTR/NE avaliou que nenhuma dessas instituições - sindicatos e associações - apresentava condições necessárias à libertação das trabalhadoras rurais. No livro a Estrada da Sabedoria, relatam a compreensão de que toda a estruturação dos modos de ensino em metodologias e conteúdo não auxiliavam na desconstrução do patriarcado, ao contrário; contribuíam para a invisibilidade das mulheres (A ESTRADA DA SABEDORIA, MMTR/NE, 2008).

A partir da compreensão de que tanto o ensino formal quanto as práticas de educação popular não dialogavam com a experiência das trabalhadoras rurais, o Movimento buscou construir uma pedagogia própria, derivada de seus debates. Na busca por potencializar a fala das mulheres trabalhadoras rurais e prepará-las tecnicamente para o trabalho com outras mulheres rurais, seja para fortalecer suas atuações nos sindicatos, seja para fortalecer internamente no Movimento, a primeira experiência pedagógica de fato aconteceu em 1995. Chamada de “oficina matriz”, a

32 Sobre a relação do MMTR/NE e o SOS Corpo, não são explicitadas nas sistematizações

especificamente como aconteceu os momentos de assessorias da ONG para como Movimento, apenas o impacto dos intercâmbios das experiências.

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formação aconteceu no estado do Ceará com vinte e duas mulheres, entre trabalhadoras e assessoras. Na ocasião, foram debatidas concepções de educação, metodologias e planejamento para o trabalho educativo, divisão de responsabilidades dentro do Programa e a preparação para o trabalho com as bases do Movimento. No quesito educação, reafirma-se a necessidade de quebrar hierarquias de saber entre quem ensina e quem é ensinada/o, o que, de alguma forma, se contrapõe às primeiras iniciativas de formação por meio de assessoras especialistas.

“A oficina matriz foi importante em todos os aspectos: nos conteúdos, na didática, nas dinâmicas, mas, principalmente, porque nela resolvemos que o projeto [programa de formação de educadoras], desde o início, seria, também, para a formação de trabalhadoras. Esta foi uma definição política, que mexia com o MMTR/NE e, também, com as suas parcerias, impondo-se a própria proposta que havíamos feito, discutido e aprovado” (A ESTRADA DA SABEDORIA, MMTR/NE, 2008:27).

A partir da vivência da oficina matriz, o MMTR/NE muda os direcionamentos do Programa de Formação de Educadoras. Defende a ideia de que a produção de conhecimento deve ser valorizada fora dos âmbitos eleitos como reconhecidos em nossa sociedade, haja vista que preocupar-se com formação de assessorias fortalecia hierarquia entre saberes. O Movimento, ao eleger seu novo programa pedagógico como uma escolha política, reforça, na prática, a possibilidade de pensar as construções de conhecimentos de um lugar deslocado dos tradicionais centros produção e disseminação de conhecimento.

Este processo, no entanto, não aconteceu de forma linear e tampouco, desprovido de conflitos e contradições. Ainda que desde o início o trabalho educativo dentro do Movimento tivesse como foco as mulheres trabalhadoras rurais, a ideia de que se precisava buscar como ponto central a formação de assessoras, que se responsabilizassem por demandas técnicas, torna-se secundária a partir deste primeiro momento formativo. Os conteúdos33 dessa oficina matriz debatiam, em suma, a relação da educação com as trabalhadoras rurais. Foi em torno deste eixo que os formatos de dinâmicas, metodologias e planejamentos, foram discutidos. Com o fim da oficina, as mulheres que se pretendiam educadoras, geralmente lideranças do Movimento,

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Não são reveladas nas sistematizações minúcias dos conteúdos, apenas a centralidade do debate no eixo educação e as trabalhadoras rurais.

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preparavam-se para o trabalho com as bases. Resultou deste processo a compreensão de que:

“A Oficina Matriz nos possibilitou entender que educamos ao mesmo tempo que somos educadas; e que uma proposta político-pedagógica, adequada às pessoas social, econômica e intelectualmente oprimidas, passa pelo reconhecimento, não só dos seus talentos e saberes, mas, diretamente, de seus poderes e conquistas” (A ESTRADA DA SABEDORIA, MMTR/NE, 2008:28).

O trabalho com as bases aconteceu a partir da ideia de metodologia da multiplicação. Podemos compreender a metodologia da multiplicação, a partir das discussões presentes na Educação Popular. Segundo Ranulfo Peloso (2016) inspirado na pedagogia de Paulo Freire, a multiplicação se trata de um caminho político-pedagógico que exige o envolvimento corresponsável de todas as pessoas participantes, na construção, apropriação e multiplicação do conhecimento. Essa experiência de aprender e ensinar só poderia interessar ao/à oprimido/a, já que no capitalismo não há lugar para ele/ela e que, por isso, “só ele/ela” pode libertar-se e, ao libertar-se, liberta também seu opressor (FREIRE, 1983).

Para o MMTR/NE, esta metodologia passava pela oficina matriz com as mulheres que seriam multiplicadoras nos estados que, por sua vez, seriam nas cidades e comunidades de atuação do Movimento. Foram seis anos de trabalho para atingir todos os estados do Nordeste. Os conteúdos trabalhados nas multiplicações, em suma, versavam sobre a vida das mulheres trabalhadoras rurais e auxiliavam o processo de conscientização sobre a realidade opressora.

“Os temas não eram unificados, a oficina matriz era unificada, porque trabalhava muito a questão da metodologia, os conteúdos mais programados do Movimento, cada estado ia adaptando o que seria a necessidade no estado, partindo do princípio que a gente teria educadoras formadas que poderiam trabalhar os vários temas a partir dos estados. Então, a gente poderia ter uma formação no estado trabalhando um tema e, outro estado trabalhando outro tema, mas, claro, sempre tinham temas comuns, como: a questão da violência, sempre foi uma coisa que tem em todos os estados (...) alguns temas mais comuns” (VERÔNICA SANTANA, entrevista em outubro 2015).

O que resulta deste processo são formações pensadas para as trabalhadoras rurais do Nordeste com temas pertinentes para cada localidade, mas que não necessariamente estavam interconectados entre si. Mesmo que a preocupação em construir uma proposta pedagógica unificada para o Movimento em nível de Nordeste estivesse em evidência

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desde esta época, o trabalho educativo nos estados possuía determinadas diferenciações e autonomia. No entanto, há destaques nas sistematizações deste processo, dificuldades comuns experimentadas pelas trabalhadoras rurais na experiência de multiplicação nos estados.

“Os empecilhos [estão] em somar linguagens, simbologias e expressões, as linguagens e expressões do mundo distante das pedagogias, das metodologias, dos planejamentos, das cidades. Um mundo desconhecido, mas valorizado por nós mesmas e ao qual queríamos conhecer. Mundo esse que, quando apresentado e explorado adequadamente, dissolve a estranheza que contém e permite, mais do que uma simples incorporação dos conhecimentos, a abertura para o processo de fusão dos conhecimentos, o que é realmente desejado, pois libera a criatividade individual” (A ESTRADA DA SABEDORIA, MMTR/NE, 2008:27).

A síntese sobre este processo põe em evidência diferenciações entre linguagens, simbologias e expressões do mundo, o que pode ser lido como um conjunto de conhecimentos que em disputa, apresentam hierarquias postas no desenvolvimento do trabalho educativo (SANTOS, 2004). A avaliação dos empecilhos da multiplicação reforça o desejo de interação e apropriação com estes saberes outros, na mesma medida em que aponta que as estranhezas podem ser dissolvidas quando tratadas de modo adequado às trabalhadoras rurais.

A partir dos reconhecimentos das dificuldades, no encontro com o mundo desconhecido das pedagogias e das cidades, é que um importante passo neste momento do Programa foi dado. Reunidas em uma formação denominada de “oficina de reciclagem”, em 1999, as mulheres, sobretudo educadoras que atuaram nas multiplicações, trazem as principais questões vividas no exercício da multiplicação em cada estado, com o objetivo de analisar as experiências, revisar os instrumentos e reorganizar as etapas do Programa para fortalecer e ampliar. Além disto, as mulheres compartilharam sensações no exercício das multiplicações nos estados que refletiam os sentimentos vividos nos desafios de educar.

“A grande questão em relação à multiplicação era a nossa consciência de que: Não estávamos formadas, ainda, como desejávamos; para continuar a nossa educação já devíamos estar educando; todo o conhecimento que tínhamos conquistado era necessário a todas as trabalhadoras; logo, poderia ser compartilhado, imediatamente, solidificando a nossa formação” (A ESTRADA DA SABEDORIA, MMTR/NE, 2008:28).

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Na oficina de reciclagem, essas experiências pedagógicas foram compartilhadas entre as mulheres que posteriormente se preparavam para fazer a segunda onda de multiplicação nos estados. Durante este percurso, nos seis primeiros anos do Programa, uma avaliação no ano 2000 foi feita na sede do Movimento com as mulheres que participaram deste processo em diferentes escalas, educadoras, educandas e mulheres que tinham exercido cargos de coordenação no Programa. Na avaliação, foram registrados os principais benefícios para a vida das trabalhadoras rurais durante esses anos de desenvolvimento da formação, bem como as lacunas do processo, e quais os novos caminhos a serem trilhados para pensar a formação de educadoras rurais. No registro desse caminho na Estrada da Sabedoria, são apontados ganhos que se relacionavam ao fortalecimento da autoestima das mulheres e com a capacidade de romper com a lógica de desvalorização e inferioridade, comumente vivida pelas trabalhadoras rurais, pela ausência de linguagens técnicas para o tratamento educativo34.

“O eixo fundamental da nossa avaliação, depois de seis anos de trabalho, era o que nós entendíamos por educação e sobre ser uma educadora rural. Isso indicava que nós teríamos que pensar, também, sobre a cidade e buscar novos significados para a nossa relação com as coisas da cidade: sua linguagem, seus hábitos e sua facilidade maior de acessar conhecimentos (...). A partir desse eixo, avaliamos que o resultado importante do projeto foi comprovar que a oficina é uma forma acolhedora de nossas capacidades e dificuldades. Por isso, a que mais precisamos para desenvolver atividades educativas, portanto a que mais nos facilita a aprendizagem de novos conteúdos. Por outro lado, o uso de dinâmicas para relaxar, para integrar, para animar, para construir compromissos, para iniciar ou finalizar as atividades, tem semelhança com o nosso hábito de cantar coletivamente, e isso nos alegra” (A ESTRADA DA SABEDORIA, MMTR/NE, 2008:33).

Até este momento do Programa de Formação de Educadoras, as atividades estavam concentradas nos desafios da educação para a trabalhadora rural. Ao iniciar com a preocupação da formação técnica de assessorias para o trabalho educativo com as mulheres rurais, vislumbrou-se atender a demandas que apareciam como necessidade dado o contexto crescente de financiamentos internacionais. Com o passar do tempo, a iniciativa foi revista e transformada. Reconhecemos que esta mudança diz respeito ao fato de que o grande objetivo que fomenta a iniciativa - potencializar a fala das mulheres - foi incorporado no centro do Programa e reinterpretado no interior dos

34 Como resultado destes seis anos de atuação do Programa no Movimento, foram formadas 26 lideranças

que atuaram a partir da metodologia da multiplicação nos nove estados do Nordeste, com um total de 776 mulheres rurais que estiveram em formação.

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conflitos que passam a existir. É possível entender esta movimentação pela ênfase na ideia de que toda trabalhadora rural deverá ser priorizada no trabalho educativo, independente do conteúdo indicado.

Os conflitos que apontamos se atrelam às relações existentes entre o MMTR/NE, cooperações internacionais e as ONGs que atuavam como interlocutoras. Esta relação não aconteceu sem embates, Thayer (2011) nos mostra que a crescente profissionalização no âmbito das ONGs cria relações de poder entre os movimentos de mulheres, aumentando as desigualdades entre os grupos que possuem financiamentos e, assim, podendo ter atividades custeadas com aqueles grupos que possuíam pouco ou quase nada de financiamentos, como era o caso do MMTR/NE (THAYER, 2001).

Se o primeiro objetivo estava em potencializar a fala das mulheres, sobretudo para o fortalecimento da atuação política das trabalhadoras rurais em seus diversos espaços de atuação, as novas relações apontam para uma necessidade de reavivar este objetivo nos novos conflitos existentes. Formar as trabalhadoras rurais sob a perspectiva que estava sendo construída passa a ser um novo desafio. Os empecilhos nesta construção se relacionam com a incorporação deste mundo, o das técnicas e das cidades, mas também diz respeito à apropriação e à ressignificação desses elementos para a luta das trabalhadoras rurais. Nestes termos, desde o início, as preocupações com as quebras nas hierarquias do saber são apontadas como uma demanda e uma estratégia política para o fortalecimento do Programa. Além disto, reitera-se a importância da multiplicação, reconhecendo a capacidade de qualquer trabalhadora rural construir os requisitos necessários para o trabalho educativo dentro do Movimento.