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Fonte: Elaboração do autor, 2018.

E é dessa forma passiva (apesar de não parecer) que se instala a tal ação reativa do ressentido. A ação/reação do vice é frágil, digna de um sujeito fraco. E, no caso, a fraqueza não se refere ao pensamento nietzscheano, que associava o afeto aos ditos fracos, relacionando-o diretamente aos escravos, ou a qualquer outro indivíduo desprestigiado pelo sistema econômico vigente.

As semelhanças nas ações de Temer e de Aécio representam discursivamente uma falha no ritual, especialmente se pensarmos em um universo minimamente estabilizado, como parecia ser o campo do ressentimento. A reação, o res(sentir) de Temer, beira ao ridículo, temática abordada por Márcia Tiburi (2017, p. 33), quando esta enfatiza que, assim como o ridículo político, o ressentimento pode ser comparado a “um poço no qual se mergulha com a ponta dos pés ou até o pescoço”.

Podemos compreender o ressentimento como um verdadeiro peso morto, o qual força o sujeito afetado por este sofrer a se portar e a desenvolver um discurso excessivamente vitimizado. O próprio Nietzsche, no livro Assim falou Zaratustra, cria um jogo metafórico entre a figura do morto e do ressentido, entendendo que nos dois casos há o peso da morte,

representado pelo sentir/queixar-se ininterrupto. A melhora viria da capacidade de reconhecer o quinhão de culpa que pertence exclusivamente ao ressentido, assumir a angústia, a sensação de desamparo, enfim, responsabilizar-se e, com isso, reconhecer ser ele o real algoz de si mesmo e o mais genuíno causador da própria dor que o aflige.

As lamúrias de Temer, o sofrimento sentido por ele há anos, justamente por ter sido preterido, desmerecido, irrompe no fio do discurso, fazendo res(significar)/res(sentir). Pode-se ousar dizer que as partes selecionadas para análise trabalham uma certa regularização dos sentidos, tendo o sofrimento, a queixa reiterada, o prejuízo, como tônicas que preponderam no documento “vazado” do início ao fim.

Ao sabermos que o ressentimento não ousa dizer seu nome, temos a prova disso na própria atitude de Temer (pelo menos a que foi apresentada pelo próprio), de que a carta seria restrita, sigilosa e não deveria ter ganhado dimensão na mídia, o que conduz à leitura de que ele se queixaria somente a ela, quase que em segredo. Essa reunião de fatores, que acabam por demarcar uma certa dose de regularidade na rede de sentidos intradiscursiva, revela-nos que uma rede de saberes e sentidos estava ali latente, aguardando o momento certo para ser liberada, deflagrada.

Porém, mais uma vez a contradição e/ou paradoxo se mostra(m). E se mostra(m) no fato de que apesar de Temer querer/precisar demonstrar o que sentia, existia também a vontade de que este afeto permanecesse escondido. É como se o fato de ter sido amplamente midiatizado pudesse retirar a possibilidade de queixar-se novamente e, com isso, manter o recalque ativo.

A repetição, o sentir novamente, a insistência da queixa típicas do ressentido inauguram, por estes gestos, o gozo. A falta causada pelo ressentimento, mesmo que simbólica, próxima, portanto, do real, se expressa no sujeito como uma falta real, instaurando a condição desejante que se frustra e se queixa, fazendo com que a repetição seja fonte perene de gozo. Uma queixa reiterada que não tem como objetivo ser suprida. A partir disso, podemos compreender que o ressentido se fixa nos meios, sem almejar os fins.

Ao trabalharmos o ressentimento junto à realidade democrática, esta entendida como “resultado da construção/rememorização cotidiana de concepções de mundo que não se inauguram nos sujeitos, mas que se concretizam em suas práticas sem que haja percepção crítica desse processo” (Mariani, 1998, p. 27), destacamos que a possibilidade de um segmento social considerado inferior ressentir-se está ligada a uma suposta promessa de igualdade dentro do plano simbólico, entendendo o não-cumprimento desta como uma

privação. A queixa, portanto, que representa uma perda, pode ser concebida como privação. Instaura-se, mais uma vez, o paradoxo, em que acontece a falta real de algo simbólico.

A falta que acomete o ressentido, sendo, pois, da ordem da privação, não advém dele enquanto sujeito em si, já que sua morada está no real. Esta falta, logo, é fictícia, imaginária. Por seu turno, a igualdade prometida pelos valores democráticos não deve ser entendida como uma conquista da classe considerada inferior (dominada), mas, sim, como algo presenteado pela classe superior (dominante).

O ressentimento, a partir do exposto, estaria, no âmbito social, fundamentado no fato de que o esperado era a igualdade entre os sujeitos, e não a desigualdade, algo interpretado como injusto, não aceito, e, por isso, digno de queixa, reclamação renovada. A falha no ritual democrático, representada pela desigualdade não esperada e excessivamente carregada de expectativas, irrompe no sujeito ressentido como um furo permanente, ocasionando a falta nunca mencionada, mas sempre depositada no outro.

Ao compreendermos a neurose como sendo o “paradigma da subjetividade moderna” (KEHL, 2001), nos deparamos com um sujeito que busca, a cada instante, e de maneira insensata, usufruir de sua individualidade, conseguida às custas de um estilo de vida considerado civilizado - no qual o Estado concede algumas características como proteção e segurança -, permitindo ao sujeito focar-se mais em seus desejos e deixar questões da coletividade nas mãos do ARE.

Encontramos aqui o cenário perfeito para a instauração do sujeito do ressentimento, no qual este se encontra liberto de seus deveres enquanto pertencente a um coletivo, para dedicar-se quase que exclusivamente à satisfação de suas vontades, de seus prazeres. O ressentimento aparece, neste contexto, como conceito fundamental para auxiliar na compreensão de certas promessas feitas pelo regime democrático e que, pelos mais variados motivos, não conseguiram ser efetivadas no seio da vida social.

A contradição instaurada pela luta de classes, perceptível nas desigualdades de âmbito político, econômico e social, é atravessada por este afeto, determinando as circunstâncias nas quais os fatos ocorrem. Entendemos, pois, que o ressentimento atua como uma das respostas possíveis às inúmeras questões atinentes ao campo da política.

No caso do Brasil, foco deste trabalho, ressaltamos a aproximação entre o ressentimento e o sentimento de inferioridade manifestado pela sociedade brasileira. Essa associação já é estudada por outros campos do saber, e corrobora para a instalação deste afeto como algo presente em vários momentos da história nacional, sendo o motivador, em maior ou menor grau, de atitudes/ações dos mais variados tipos.

Buscamos, com isso, estabelecer o ressentimento como um afeto de abrangência social, que aparece como consequência de sujeitos marcados pela submissão voluntária e pela dependência da figura do Estado. Percebe-se, por este viés, conflitos incitados pela luta de classes, pelas relações de poder e de força combinadas na figura de um Estado - repressor e ideológico - segundo Althusser (1980a) no qual estão imersos sujeitos passivos e culpados (pela ótica nietzscheana), resignados, portanto, a um certo grau de obediência moral que os limita consciente e inconscientemente em sua vontade de potência.

O ressentimento seria o resultado quase que inevitável dessas tensões de ordem interna e externa vivenciadas pelos sujeitos nas sociedades consideradas civilizadas. O Estado democrático-capitalista, portanto, seria um palco fértil para a instauração deste afeto:

(...) o ressentimento é uma constelação afetiva que serve aos conflitos característicos dos indivíduos e dos grupos sociais no contexto das democracias modernas. Não por acaso, o ressentimento só se tornou objeto de reflexão filosófica a partir do século XIX (...). (KEHL, 2004, p. 205).

Contudo, seguindo a ótica nietzscheneana, esse sentimento estaria próximo do lado mais fraco da luta de classes, sendo manifestação típica das classes dominadas. Contrariando, pois, essa perspectiva, temos o caso de Aécio Neves e de Michel Temer, como representantes de partidos políticos comprometidos com as classes dominantes, os quais subverteram a lógica preconizada por Nietzsche, manifestando publicamente atitudes consideradas ressentidas.

É possível perceber algo que foge à regra das políticas do ressentimento no caso de Aécio e de Temer. O Estado democrático-capitalista aqui, continua a falhar em sua promessa de promover a igualdade entre os sujeitos; continua incentivando a elite irresponsável em seus rompantes megalomaníacos, porém, o que se percebe não são os fracos, economicamente falando (como era de se esperar), que transformaram suas angústias em sofrimento. O recalque10, gerador do ressentimento, desta vez, mudou de lado e afetou quem antes dele parecia estar protegido.

A explicação talvez esteja amparada, em alguma medida, na relação torta estabelecida entre os sujeitos e a identidade nacional, ou seja, na relação simbólica/imaginária do indivíduo

10 Recalque é um dos conceitos fundamentais da psicanálise, tendo sido desenvolvido por Sigmund Freud.

Denota um mecanismo mental de defesa contra ideias que sejam incompatíveis com o eu. Freud dividiu a repressão psicológica em dois tipos: a repressão primária, na qual o inconsciente é constituído; e a repressão secundária, que envolve a rejeição de representações inconscientes. A repressão é o processo psíquico através do qual o sujeito rejeita determinadas representações, ideias, pensamentos, lembranças ou desejos, submergindo-os na negação inconsciente, no esquecimento, bloqueando, assim, os conflitos geradores de angústia.

com seu país, refletindo uma nação marcada pela baixa autoestima, pela desvalorização do que é nosso, em detrimento ao que vem de fora.

Sendo a instauração do ressentimento no sujeito advinda de uma demanda prioritariamente inconsciente, a constatação provisória que fazemos nos coloca diante do que Pêcheux (1988 [1975]) conceituou como sendo uma falha no ritual, pois, segundo nossos movimentos preliminares de análise, aqueles que pareciam imunes aos efeitos do ressentimento, conheceram nele seu afeto norteador: a elite nacional, a classe dominante e privilegiada. Temos, com isso, o ressentimento atuando como um importante ator de questões atinentes à seara política, especialmente nas sociedades democrático-capitalistas.