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Esquema 23 – Real e furo no cenário discursivo da resistência

3.4 MEMÓRIA DISCURSIVA: RETOMADAS E ESQUECIMENTOS

3.4.2 Memória e enunciado dividido

A noção de enunciado trazida por Courtine, ((2014) [1981]) se articula às categorias de singularidade e de repetição. A memória discursiva, por seu turno, é construída a partir do pensamento de Michel Foucault, em suas reflexões de cunho arqueológico, o qual compreende o discurso como sendo uma extensão do acontecimento.

A partir desta ótica, os discursos se dão e se instauram, na contemporaneidade, no palco montado pelos meios de comunicação, especialmente aqueles considerados de massa, que correspondem ao AIE da mídia. Esses espaços são marcados pela espetacularização, pelo excesso, típicos de uma sociedade do espetáculo, conforme delineou Guy Debord (2000). Neste cenário, a midiatização estabelece “lugares de memória” (Courtine, 2006), e passa a referenciar discursos-outros que retornam à nuvem discursiva como vestígios de memória, trazendo novos sentidos, por intermédio da atuação de distintas CPs no fio do discurso.

Os enunciados, ao serem veiculados pelos canais midiáticos, são reformulados, mantendo, contudo, entre si, um certo conjunto de regularidades. Ao inscrever-se em uma FD, o enunciado que retorna via movimento da memória adquire uma nova roupagem pela interferência da história e das condições de produção, adquirindo outros/novos significados/sentidos.

E é na inter-relação estabelecida entre a nuvem e o intradiscurso que se faz possível notabilizar a presença da memória nos meandros do discurso e é justamente nesse imbricamento, nesta mistura entre antigos e novos saberes, que conseguimos vislumbrar os efeitos de sentido múltiplos, vinculados a diferentes ideologias (por vezes bastante opostas) em pleno funcionamento.

Para a Análise do Discurso, o sujeito empírico realiza formulações das quais desconhece a origem, e isto se deve à influência da ideologia e do inconsciente, associados à inscrição em uma memória, fazendo com que ele acabe por se posicionar, determinando os efeitos de sentido e, consequentemente, sua identificação a determinadas FDs. Isto pode ser

percebido, pois “as palavras, expressões, proposições, etc., mudam de sentido segundo as posições sustentadas por aqueles que as empregam” (PÊCHEUX (1988) [1975], p. 160).

O enunciado dividido, em face do exposto, configura-se em um dos tipos de enunciado passíveis de frequentar o discurso político. Duas formulações pertencentes a discursos antagônicos, portanto, a FDs opostas, levando-se em conta condições de produção semelhantes e elementos que não aceitam substituições, sejam estes palavras, frases, sintagmas, etc, instituem este tipo de enunciado, conforme veremos a seguir:

SD 14: Foi impeachment ou golpe? Veja a opinião de quem foi a protestos em SP e RJ ( Uol, 31 de agosto de 2016).

SD 15: Impeachment ou Golpe? ( Estado de São Paulo, 15 de outubro de 2015).

A linguagem é política. Essa afirmação pode ser evidenciada ao lembrarmos que não há neutralidade quando se pensa em sujeitos atravessados pelo ideológico. Os efeitos de sentido, portanto, denunciam direções distintas, expressas nas posições assumidas dentro das FDs, denotando que os sentidos caminham sempre em alguma direção e, por isso mesmo, acabam por manifestar seu caráter necessariamente dividido.

Entendemos que o enunciado ‘impeachment ou golpe’, apresentado pelas SDs 14 e 15, configura-se em um típico caso de enunciado cindido. Courtine (2006, p. 74) enfatiza que este tipo de enunciado reflete saberes de ordem antagônica que, pelo funcionamento da linguagem, representam efeitos de uma luta ideológica encenada por duas FDs distintas e/ou antagônicas. A não-comutabilidade de elementos é uma das principais características deste tipo de enunciado (COURTINE, (2014) [1981], p. 97). É possível percebermos, ainda, FDs antagônicas que deflagram saberes distintos convivendo de forma tensa no mesmo enunciado. Seu aparecimento no fio do discurso acontece promovendo sentidos em embate, e se deve a um conjunto de fatores que perpassam as condições de produção, o atravessamento de fatos linguísticos e de elementos dispersos localizados na nuvem, na forma de pré-construídos e/ou discursos transversos, desembocando no seu reavivamento pela memória.

Mariani (1998) destaca a memória como um processo histórico resultante de uma disputa de interpretações para os acontecimentos presentes ou já ocorridos. Dentro de determinado contexto enunciativo temos a predominância de uma interpretação que se associa ao esquecimento de outras, fazendo esta tornar-se hegemônica. Ao pensarmos no caso da grande mídia brasileira, o sentido hegemônico está do lado da FD que enuncia impeachment.

Em contrapartida, em diversos veículos internacionais, igualmente representantes da grande mídia, o que percebemos é a prevalência da FD que enuncia golpe.

Estes direcionamentos indicam posições que ultrapassam a simples distinção entre as formações discursivas, fazendo com que os sentidos trabalhados nas matrizes de cada uma das FDs as afaste de tal forma que entre elas se estabeleça um movimento de antagonismo. Percebemos, igualmente, por meio destes movimentos, a ocorrência de uma trama de sentidos se digladiando dentro de um mesmo cenário: o AIE da mídia.

Courtine, ao trazer a noção de enunciado dividido, trabalha com a ideia de que “uma formação discursiva é constitutivamente perseguida por seu outro (...) sobredeterminação pela qual a alteridade o afeta (...)” (COURTINE, (2014) [1981], p. 24). Por esta definição vemos funcionar discursivamente, também, as noções de contradição e heterogeneidade, seja dentro da mesma FD, seja na relação entre elas, como é o caso do enunciado ‘Impeachment ou golpe’.

Fatores de âmbito linguístico e ideológico fazem parte da estrutura do enunciado em análise, assim como estão presentes nos processos discursivos de forma geral. Eles são a expressão da luta política instaurada por lados opostos, por posicionamentos ideológicos distintos, sinalizando o que podemos conceber como uma “guerra ideológica de posição” (COURTINE, (2014) [1981], p. 209).

Algumas palavras foram descritas por Régine Robin (2016) para se referir ao que a autora denominou como sendo “passados esburacados”. É possível associarmos estes sintagmas a movimentos da memória discursiva que podem restaurar, transformar, contornar, distorcer, reescrever, reinventar, esquecer, tornar inacessível certos enunciados, saberes, fazendo com que, ao retornar ao fio do discurso, esses sejam remodelados, servindo a outros propósitos diferentes dos momentos históricos anteriores nos quais foram utilizados.

Considerando a possibilidade de resgatar pela memória fendas esquecidas no tempo, além de trabalharmos com a ideia de que o sentido é diretamente afetado por diversos fatores, entre eles o pré-construído e o discurso transverso, de acordo com Pêcheux (1988 [1975]), temos uma rede de saberes que advêm de outros lugares e que sofrem atualizações/modificações nas SDs analisadas. Robin (2016, p. 93) vem em nosso auxílio quando ressalta que “o verdadeiro esquecimento talvez não seja o vazio, mas o fato de imediatamente colocar uma coisa no lugar de outra (...)”.

Ao enunciarmos, pois, ´impeachment ou golpe’, lidamos com posicionamentos ideológicos que tentam, na substituição de um ou de outro, trabalhar pelo viés do esquecimento o reforço a determinada posição do sujeito. No caso da grande mídia brasileira,

a tentativa parece ser a de ocultar a existência do sintagma “golpe”, dando à denominação impeachment espaço de destaque para delinear o que ocorreu no país em 2016. Ao considerarmos, por outro lado, os representantes da grande mídia internacional, é possível percebermos a prevalência de golpe como sendo a palavra que de forma mais adequada define o acontecimento político ocorrido no Brasil.

Vemos, portanto, que a troca, a substituição de um sintagma pelo outro, estabelecendo o posicionamento ideológico para um ou outro, sustenta-se justamente no apagamento/silenciamento/interdição provisório (a) de um deles. Não é possível, com isso, a substituição sinonímica, visto que o conjunto de saberes e práticas é bastante diferenciado, denotando uma rede de sentidos concernente/particular a cada uma das palavras, as quais localizam-se em formações discursivas distintas e, nesse caso em particular, opostas/antagônicas.