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FORMAÇÃO DISCURSIVA: LUGAR DA CONTRADIÇÃO, DO EQUÍVOCO E DA

Esquema 23 – Real e furo no cenário discursivo da resistência

6.4 FORMAÇÃO DISCURSIVA: LUGAR DA CONTRADIÇÃO, DO EQUÍVOCO E DA

Tomamos a concepção de formação discursiva de acordo com as palavras de Indursky (2013a), que a concebe como um espaço de múltiplos discursos, marcado pelo heterogêneo e por fronteiras movediças:

(...) uma FD deve ser entendida como dois ou mais discursos em um só, estabelecendo a contradição como seu princípio constitutivo. Pode-se dizer que uma FD é uma unidade dividida e heterogênea. Seu contorno é fundamentalmente instável, pois não há limites rígidos a separar os elementos internos de seu saber daqueles que lhe são exteriores. O domínio de saber de uma FD funciona como um princípio de exclusão do que nela não é formulável, em função da FI de que provém. (INDURSKY, 2013, p. 45).

Ao trazermos a categoria de formação discursiva, como é o caso desta análise, é inevitável trazermos a ideologia, enquanto materialidade, o que nos leva a considerar a contradição advinda das relações estabelecidas entre as classes. Quando falamos em classes, é interessante lembrarmos que estas estão longe de serem entendidas como blocos homogêneos, nem ao se inter-relacionarem, nem isoladamente.

A contradição está presente, portanto, na interligação, no embate entre os saberes que distanciam as classes, mas também atua no âmago delas, demonstrando a coexistência de

distintas formações ideológicas no âmbito da formação social. Esta característica instaura posicionamentos distintos dos sujeitos filiados às FDs, o que acaba por instituir as variadas posições-sujeito.

Ao se trabalhar com a ideia de evidência do sentido, trazemos as palavras de Orlandi, quando esta enfatiza que o sentido é “transparente àquilo que se constitui pela remissão a um conjunto de formações discursivas que funcionam com uma dominante” (ORLANDI, 2012, p. 46). Por esta ótica, ainda segundo a autora, “as palavras recebem seus sentidos de formações discursivas em suas relações. Este é o efeito da determinação do interdiscurso (da memória) (Ibidem, p. 46).

A tomada de posição pode ser entendida, a partir disso, como uma atitude, um gesto de resistência. Por isso mesmo Pêcheux (1988 [1975], p. 304) nos diz que “não há dominação sem resistência” e nem “ritual sem falhas; enfraquecimento e brechas” (Ibidem, p. 301). Em face disso, a FD que enuncia golpe advém da contradição instaurada com o sentido dominante (FD que enuncia impeachment), possibilitando a falha e inaugurando, com isso, a resistência na cena discursiva, na qual parecia preponderar a estabilidade/regularização dos sentidos de ordem hegemônica:

O lapso e o ato falho marcam o impossível de uma dominação ideológica fora de toda contradição. A série de efeitos aqui resumidos pelas figuras do lapso e do ato falho infecta, assim, sem parar, toda a ideologia dominante, no próprio interior das práticas (...) As ideologias dominadas não se formam em nenhum outro lugar a não ser na própria localização da dominação, nela e contra ela, através das falhas e dos tropeços que a afetam incontornavelmente, mesmo quando a dominação se estende ao ponto “em que nada se pode fazer”, porque “isso é assim”. (PÊCHEUX, 2013 [1984], p. 15-16).

A ideologia, portanto, enquanto materialidade simbólica, circula por meio da formação ideológica, a qual se articula a determinadas práticas sociais discursivas instauradas em uma dada formação social, estabelecendo relações com a linguagem. Esse movimento acontece tendo como pano de fundo as condições de produção, que correlacionam os sujeitos e a situação. Todo este cenário discursivo, por sua vez, é perpassado pelas formações imaginárias. A interconexão, portanto, entre língua/linguagem, formações social, ideológica e imaginária, sujeito e condições de produção inaugura as formações discursivas, sendo estas a instância na qual o sujeito se vincula a determinados posicionamentos/filiações ideológicas:

A Formação Discursiva representa a materialidade ideológica para o sujeito. É a partir dela que se dá o assujeitamento, processo que faz com que todo o sujeito assuma lugar no conjunto da Formação

Ideológica e se cumpra assim a tese central do assujeitamento. A partir dela o sujeito exerce a luta ideológica de reprodução/transformação, constituindo-se em determinadas posições. (DORNELES, 2017, p. 75).

Tratar de formação discursiva é trabalhar com um conceito que permeia diversas noções englobadas pela AD. Estamos falando da heterogeneidade. Em Remontémonos de

Foucault a Spinoza, Pêcheux percebe a força advinda da contradição, observando que esta

passa a instaurar, no espaço das FDs, não mais a coesão, mas, sim, a dispersão. O fator dispersivo possibilita a convivência de saberes diferentes daqueles elencados na matriz dominante de sentidos da FD, instaurando posições distintas dentro dos limites desta, que passam a ser considerados agora como impermanentes, porosos, permeáveis à entrada e saída de ideologias.

Jean-Jacques Courtine (2014 [1981]) entende a FD como o espaço invadido pelo heterogêneo e pela contradição e a relaciona de forma muito próxima às condições de produção, possibilitando o entendimento de que suas fronteiras são movediças. Isto ocorre pela instabilidade inaugurada pelas dissonantes posições ideológicas que coabitam uma FD.

Mesmo existindo a matriz de sentido que delimita o que pode e deve e o que não pode e não deve ser dito, o fato de ser abalada pela contradição imanente, pela heterogeneidade e pela dispersão, faz com que a FD esteja à mercê das lutas ideológicas e submetida à constante interferência de discursos transversos e/ou pré-construídos - os quais advêm da nuvem

discursiva - invadindo e reconfigurando seus saberes.

Courtine & Marandin conceituam, por este viés, o que seria a formação discursiva:

(...) como heterogênea em relação a si mesma: o fechamento de uma FD é fundamentalmente instável, ele não consiste em num limite traçado de uma vez por todas que separa um interior e um exterior, mas se inscreve entre diversas FDs como uma fronteira que se desloca em função das questões da luta ideológica. (COURTINE & MARANDIN, 2016, p. 39).

A heterogeneidade, uma das características indissociáveis das FDs, se faz presente no fio do discurso quando percebemos que as falhas no ritual de interpelação/identificação abrem espaço para a instalação da resistência, por exemplo. O gesto interpretativo se dá intradiscursivamente, quando questões advindas da historicidade e da contradição adentram o campo discursivo, trazendo elementos da exterioridade, ou seja, da nuvem.

Os efeitos de sentido se fazem na interação com o outro, sejam estes os sentidos já-lá provindos da nuvem, do pré-construído, do discurso transverso e/ou da memória, sejam do

assujeitamento ideológico, da atuação do inconsciente e dos atravessamentos dos discursos- outros proferidos por outros sujeitos. É, em última análise, na inter-relação social que advêm as materialidades e é desse lugar que proliferam os discursos, os saberes, os sentidos.

A contradição, que se vislumbra ao se comparar os saberes que constituem as matrizes de sentido da FD que enuncia impeachment e da FD que enuncia golpe, baseia-se nos ensinamentos de Pêcheux, quando este afirma que os objetos podem ser “ao mesmo tempo idênticos a eles mesmos e diferentes deles mesmos, isto é, de existir uma unidade dividida, suscetível de se inscrever em um ou outro efeito conjuntural, politicamente sobredeterminado (...)” (PÊCHEUX, 2016, p. 157).

Sendo afetado, pois, pela contradição, visto não ser possível dissociá-la do aspecto ideológico, o discurso também apresenta outra característica/noção ligada diretamente à ela, justamente por seu atrelamento indissociável da linguagem: o equívoco. Este se mostra nas contradições advindas das lutas materiais e ideológicas de classes.

Se trouxermos as reflexões de Gadet e Pêcheux (2004, p. 64) estes expressam que “o equívoco aparece exatamente como o ponto em que o impossível (linguístico) vem aliar-se à contradição (histórica); o ponto em que a língua atinge a história”. O que temos aqui, portanto, é o entrelaçamento entre o real/furo da língua (equívoco) e o real/furo da história (contradição). Estes encontram um terceiro, com o qual se coadunam, representado pelo real/furo do sujeito (inconsciente).

O equívoco se inscreve discursivamente pela própria incompletude da língua e do sujeito. As rupturas, deslizamentos, derivas dos sentidos se dão justamente nas lacunas abertas pelo silenciamento, pelo não dito, inscrevendo-se pela/na falta. Dizendo de outra forma, o equívoco se inscreve na tensão existente entre as materialidades linguística e histórica, afetando a materialidade discursiva: “(...) a língua se equivoca, os sujeitos cometem equívocos e os sentidos são equívocos” (LEANDRO FERREIRA, 1996, p. 45).

No caso do impeachment/golpe de 2016 a contradição e o equívoco estão associados tanto à FD que enuncia impeachment quanto à que enuncia golpe. O equívoco e a contradição se mostram no fio do discurso, na FD que enuncia impeachment, quando esta silencia e promove um esquecimento orquestrado da palavra golpe. O mesmo acontece quando intradiscursivamente se enuncia golpe, para (res)significar/simbolizar o que aconteceu com Dilma.

É preciso, pois, produzir um equívoco e uma contradição simultaneamente, visando a regularizar os sentidos/dizeres/saberes que se vinculam à determinada formação discursiva. Vislumbramos, pois, no fio do discurso, o atravessamento do histórico com o linguístico

atuando para delimitar, no âmbito de cada uma das fronteiras porosas das FDs, o que pode e deve e o que não pode e não deve ser dito.

Nos meandros do discurso, os sentidos se constituem pela intervenção constante da historicidade atravessada pela ideologia, inscritos estes, por sua vez, em uma regularidade de rituais e práticas. E é a partir desta peculiaridade singular dos sujeitos que vemos enunciados ressoando de maneiras distintas, com filiações muitas vezes bastante opostas, como é o caso de quem enuncia impeachment e de quem enuncia golpe.

O que estes movimentos dos sentidos promovem são, em última análise, tão somente duas formas/maneiras de simbolizar/interpretar/significar o fato ocorrido em 2016 no Brasil, demonstrando serem afetados por inscrições ideológicas distintas/antagônicas e atestando o que nos diz Pêcheux (2015 [1983], p. 53) ao declarar que “todo enunciado é intrinsecamente suscetível de tornar-se outro, diferente de si mesmo, se deslocar discursivamente de seu sentido para derivar para um outro”.

Esquema 23 – Real e furo no cenário discursiva da resistência

Fonte: Elaboração do autor, 2018.