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Fonte: Elaboração do autor, 2018.

3.2 O FUNCIONAMENTO DA MEMÓRIA NO FIO DO DISCURSO

Memória e esquecimento estão contidos, em face do exposto acima, em um mesmo movimento, qual seja: ao nos lembramos de uma coisa, precisamos nos esquecer de outras; e, por consequência, ao nos esquecemos, existe algo do qual nos lembramos. E assim, a memória discursiva vai sendo costurada junto ao fio do discurso:

SD 11: “(...) se (Dilma) Rousseff for retirada do poder por seus adversários sem nenhuma evidência explícita de irregularidades, a democracia do Brasil pode ser mais frágil do que se pensava, o que leva a comparações com

um período que muitos brasileiros acreditavam ter superado” (BBC Brasil, 17 de agosto de 2015, referindo-se à notícia do jornal The New York Times).

A memória que precisa ser esquecida, mas que é retomada intradiscursivamente quando enunciamos a palavra golpe, por exemplo, refere-se a um importante momento político ocorrido em nosso país, conhecido ora como golpe de 1964, ora como ditadura militar, ora como revolução.

A memória discursiva trabalha com o que Courtine denominou de “formulações- origem” (COURTINE, (2014) [1981], p. 112). Porém, não podemos confundir essa noção com o local de constituição primeira do processo discursivo, mas, sim, como uma sinalização dos momentos históricos em que determinados enunciados foram proferidos e acabaram por ser rememorados via formações ideológicas que afetam uma certa FD.

A SD acima não traz textualmente qual fato da nossa história muitos brasileiros acreditavam ter superado, mas, se pensarmos nas condições de produção, ou seja, no que estava ocorrendo no Brasil em 2016 com a presidente Dilma, é possível compreendermos que o fato ainda não superado representa algo que não combina com os preceitos democráticos, aproximando o Brasil de 2016 ao Brasil de 1964.

Essa memória retorna no fio do discurso, nesse caso, por meio de um implícito, conforme no diz Pêcheux (1999, p. 46). Ao trazer elementos dessa natureza para interpretar/analisar discursivamente um acontecimento, o resgate da memória instaura, no fio do discurso, o “jogo de força” (Ibidem, p. 47), fazendo com que se avaliem os movimentos de regularização e de desregulação dos dizeres/sentidos.

Esses resgates moveriam sentidos já lá, previamente estabelecidos e regularizados, tendendo à repetição com pequenas mudanças mas, também, por outro lado, poderiam promover perturbação na rede de sentidos, indicando deslizamentos ou derivas e, com isso, instaurando novas possibilidades interpretativas.

Orlandi (1996a) nos fala que questões atinentes à história e à linguística também fazem parte do resgate feito pela memória e que a constituição dos sentidos é feita a partir deste movimento. E é por um determinado acontecimento ter sido esquecido aparentemente que ele consegue ser retomado no intradiscurso pelo resgate do histórico, feito pela memória.

Ao nos lembrarmos (ou tentarmos) nos lembrar da(o) ditadura/revolução/golpe ocorrida(o) no Brasil em 1964, podemos, em uma primeira visada, estarmos diante do que Régine Robin definiu como sendo “um acontecimento sem rastro” (ROBIN, 2016, p. 85). O silêncio que impera nesse caso nos suscita algumas questões: que memória é essa que não pode ser remexida e que precisa, a todo custo, ser apagada, esquecida, silenciada? Por que os

arquivos desse período não são publicizados, como ocorreu em outros países vizinhos ao Brasil, os quais tiveram regimes ditatoriais extremamente cruéis, como foi o caso da Argentina?

Essa tentativa forçada de não falar, de omitir os dizeres que remeteriam ao golpe de 1964, parece sinalizar um apagamento/silenciamento/interdição dos sentidos que poderiam advir da lembrança desse acontecimento marcante em nossa história. Marie-Anne Paveau (2015, p. 237) compreende que ao se produzir um “apagamento, consciente ou inconsciente, de um passado ou de um legado discursivo, de ‘formulações-origem’ sobre as quais o falante não gostaria de ter mais nada a dizer”, a busca seria por inaugurar um movimento denominado por ela de “amemória”.

É possível, ainda, a partir da análise desta SD, percebermos certas características ligadas à formação imaginária do povo brasileiro, relacionando estas a esquecimentos verificados frente à lembrança de alguns acontecimentos históricos, os quais aparecem discursivamente como um traço da identidade nacional.

Muitos sujeitos até lembram o que ocorreu em nossa história no ano de 1964, porém, por não terem sido diretamente atingidos, preferem acreditar que esse período não lhes corresponde, não lhes diz respeito. Os sentidos que provêm desse fato, para eles, referem-se a um período em que outros sujeitos, rebeldes e desobedientes, resolveram infringir as regras, ousando questionar o previamente instituído e, por isso mesmo, mereceram a punição recebida.

Alguns chegam a pensar que foi uma farsa os relatos de tortura, as mazelas sofridas e narradas. Vemos, nessas colocações, a presença de alguns traços culturais típicos do povo brasileiro e que remontam à nossa origem enquanto nação, aos mitos e associações feitos e que passaram a ser considerados como a identidade do brasileiro.

Já é possível percebermos aqui marcas de algo que trataremos com mais detalhes no próximo capítulo, relacionado ao ressentimento. A psicanalista Maria Rita Kehl nos mostra que o caso da ditadura pode ser entendido como uma memória que foi esquecida de forma muito rápida (apesar de sua recente ocorrência histórica) e que, ao ser acionada, demonstra estar envolta por um afeto velado:

Tomemos, como exemplo do ressentimento camuflado na sociedade brasileira, a rapidez com que grande parte da população pareceu esquecer, ou perdoar, os crimes da ditadura militar como se estes tivessem atingido apenas uma pequena parcela de militantes de esquerda, de jovens “radicais” que não representavam os interesses da maioria. (KEHL, 2004, p. 237).

Como não trabalhamos nossos problemas enquanto sociedade, o passado retorna como um fantasma a nos assombrar. Essa pressa do brasileiro em esquecer, em supostamente perdoar, pode parecer, à primeira vista, algo positivo; mas, na verdade, ajuda a mascarar nossa real identidade. Na mesma medida em que não elaboramos/superamos nossos traumas, igualmente não valorizamos nossas conquistas. Reconhecemo-nos pelo discurso produzido pelo outro, que nos remonta a um povo alegre, despreocupado, excessivamente sensual, designações que nos acompanham desde a época do descobrimento do país.

Desde seus primeiros passos, portanto, o Brasil acumula silenciamentos quanto a fatos ocorridos ao longo de sua história. O reconhecimento público de massacres coletivos, como o das tribos indígenas habitantes originais do Brasil nos idos de 1500, do período escravocrata que deixou suas marcas para além da servidão irracional e da barbárie representada pelo período no qual os militares detiveram o poder entre 1964 -1985 faz parte de uma memória que precisa ser esquecida, mas que insiste e resiste bravamente frente às inúmeras tentativas de ser silenciada.

Régine Robin (2016, p. 82) corrobora com nosso pensamento ao enfatizar que “os esquecimentos sistemáticos em forma de perdões ou de anistias são outra maneira de realizar o apagamento do passado das sociedades”. Nossa identidade parece ainda estar em construção, mesmo após 500 anos de existência. A impressão é de que ainda não estamos suficientemente maduros para elaborarmos quem somos enquanto coletividade, nação, povo.