• Nenhum resultado encontrado

Pretendemos pontuar algumas saídas que a teoria lacaniana facilita naquilo que concerne à questão da feminilidade. Para isto, recorreremos a alguns de seus principais leitores, como se verá.

Segundo Bleichmar (1984), o caso do menino ainda permanece como centro das teorizações acerca do complexo de Édipo apresentadas por Freud. Esta ênfase acabaria por não investigar qual seria de fato a função da mãe - “o que é que a mãe quer” -, aspecto este em que entraria a contribuição de Jacques Lacan (p.14).

O conceito de Édipo em Lacan teria sido ampliado pela referência a uma estrutura intersubjetiva40. Por estrutura estamos entendendo “uma organização caracterizada por posições ou lugares vagos que podem ser ocupados por personagens distintos”, lugares estes que não se definem por si mesmos, mas que estão em função dos outros personagens, de modo a formar uma relação de mútuo condicionamento (Bleichmar, 1984, p.18).

Para tal entendimento, devemos considerar a contribuição de Lévi-Strauss, para quem, segundo Bleichmar (1984), as estruturas do parentesco resultariam do intercâmbio de mulheres: “As mulheres são trocadas entre os homens, circulam entre eles” (p.19).

Desta maneira, este algo que circula informa a posição do personagem, segundo a qual deverá assumir determinadas funções. Percebemos como esta concepção difere daquela na qual a função é intrínseca à constituição: “Assim, o Édipo lacaniano é a descrição de uma estrutura e dos efeitos de representação que essa estrutura produz no que a integram” (Bleichmar, 1984, p.20).

A pergunta que se segue seria, então: “(...) o que é que circula entre os membros da estrutura do Édipo? E a resposta é taxativa: o falo” (Bleichmar, 1984, p.20).

O conceito de falo tem origem na produção freudiana, mas veio a ser desenvolvido por Lacan. Bleichmar (1984) apresenta duas definições lacanianas de falo, intrinsecamente relacionadas: na primeira, falo é o significante da falta; na segunda, falo é o significante do desejo.

Derivado da lingüística, o significante é um aspecto material, uma imagem visual por meio da qual, através da linguagem, algo de outra ordem vem a se inscrever. Nesta transposição de uma ordem para outra, uma parte fica sem se inscrever. O significante aparece, portanto, em substituição de uma ausência. Um significante remete sempre a outro significante, a partir de uma cadeia articulada, segundo leis que regem sua combinação.

No caso do falo, este algo que se inscreve é falta. Sua função imaginária pode ser vivida como plenitude, satisfazendo o narcisismo. Sua função simbólica atesta que aquilo que se supõe estar presente pode ser perdido. (Bleichmar, 1984)

Explicitado o conceito de falo e de estrutura, passamos agora ao complexo de Édipo a eles articulado.

Bleichmar (1984) apresenta o Édipo lacaniano a partir de três tempos. No primeiro tempo, o menino encontra-se na posição de objeto do desejo da mãe, representante do Outro absoluto. O menino, neste momento, é o falo; a mãe tem o falo e o pai (real) ainda é pouco desenvolvido na teoria. Mãe e bebê formariam uma unidade imaginária de perfeição, que evoca um terceiro elemento, o falo. Mesmo que por algum motivo o bebê não se constitua como falo da mãe, permanece nela este desejo. “Esse passo inaugural em direção à simbolização corresponde portanto, em termos edípicos, à função materna (...)” (Prates, 2002, p.70).

O segundo tempo vem a romper com a relação dual, a partir da intercessão do pai. O menino deixa de ser o falo, a mãe deixa de tê-lo e o pai é agora o falo onipotente. (Bleichmar, 1984) Este momento possibilita o reconhecimento da falta no Outro e abre caminho para que o objeto se torne simbólico:

40

Sabemos que a obra de Lacan apresenta diferentes momentos e que ele veio a abandonar a noção de uma intersubjetividade. (Barbero, 2004)

“Pode-se dizer, com Lacan, que não é exatamente da

visão dos genitais femininos propriamente ditos o que importa na dialética da castração, mas a falta no Outro (A) que retroage sobre o sujeito em registros e de formas diferentes, de acordo com a estrutura que esteja em jogo.”

(Prates, 2002, p.70)

O terceiro tempo introduz a função paterna: o pai tem o falo sem sê-lo. Isto quer dizer que o falo foi recolocado na cultura, para além de qualquer pessoa. O falo deixa de ser aquilo que se é para ser aquilo que se tem, o que implica, necessariamente, em separar o falo de suas representações, dentre elas, o pênis. (O pênis é, portanto, uma representação do falo.) Aquele falo imaginário da relação com a mãe pode agora receber seu estatuto simbólico. Isto só pode ser dar mediante a Metáfora Paterna, que introduz o sujeito na lei:

“A Metáfora Paterna, ao mesmo tempo que promove

a estruturação do sujeito, instaura o que será aqui chamado de sexuação, ou seja, uma determinada identidade sexual, a partir da forma como o sujeito se posiciona em relação ao falo.” (Prates, 2002, p.74)

A abordagem lacaniana afirma que a diferença sexual se dá a partir de uma posição discursiva, dado ser o inconsciente estruturado como linguagem41. Sendo assim, sexualidade, subjetividade e linguagem estariam referidos.

Independente do sexo biológico, os sujeitos se constituem como marcados pela falta, que possibilita a formação do desejo. O falo, como vimos, é concebido como aquilo que vem no lugar da falta e que cria a ilusão de preenchê-la.

A castração não é, portanto, uma ameaça física, mas o confronto com a incompletude que determina o sujeito e origina o desejo.

A diferença entre masculino e feminino se dá em relação à função fálica, ou seja, ao modo como o sujeito se posiciona em relação ao falo. Este posicionamento leva a uma

determinada posição discursiva, sem relação direta com a questão anatômica macho/fêmea. A posição masculina é definida a partir da posição “ter” o falo, e a feminina de “ser” o falo. O falo adquire sentido na situação edípica, quando a criança simboliza a diferença sexual. (Fabbrini, 2002)

É importante salientar que a Metáfora Paterna apresenta uma especificidade no caso da feminilidade. Vimos que ela introduz o sujeito na lei do falo, mas, conforme nos explica André (1986), este significante é, por definição, insuficiente para significar a feminilidade. Deste modo, a Metáfora Paterna não é suficiente para designar o lugar de mulher: “A identificação fálica só faz sublinhar a exclusão do ser feminino da representação (...) deixa à sombra o que constituiria a feminilidade” (André, 1986, p.181; 194). Mesmo que, assim como o menino, ela se submeta à lei fálica, esta não irá operar por inteiro: “a menina irá se situar ao mesmo tempo na lei e, em parte, fora-da-lei” (André, 1986, p.181). Uma das conseqüências pode ser a “dependência materna”, na esperança de que esta possa lhe fornecer o significado da mulher (André, 1986, p.194).

No caso do menino, prossegue André (1986), a Metáfora Paterna também rompe a identificação com o falo imaginário da relação com a mãe. Entretanto, o pai fornece uma referência viril que identifica a masculinidade.

A identificação só pode se dar mediante “um ‘traço unário’, como ele [Lacan] o chama, espécie de significante mínimo que o sujeito apanha do Outro para arrimar sua identidade” (André, 1986, p.195). A mãe não oferece este traço unário que sustentaria a identidade feminina: este significante não existe. A mulher seria então marcada por uma dupla falta: a falta deste significante e a falta do falo, motivo que justifica a intensa hostilidade dirigida à mãe. A importância da questão do amor na vida da mulher poderia ser explicada a partir daí, como se ele pudesse devolver a identidade perdida.

Como Outro entendemos a estrutura externa ao sujeito, na qual ele se insere e a partir da qual ele receberá os parâmetros de sua vida. (Palosnky, 1997)

Ao contrário do que Freud (1931) postulou em relação ao papel do filho como sendo um substituto do desejo pelo pênis, Lacan irá propor, segundo Fabbrini (2002), sua função de velar a falta que marca a mulher.

41

“(...) a linguagem é a condição do inconsciente e, ao mesmo tempo, empresta a ele sua estrutura. (Prates, 2002, p.66)

André (1986) chama a atenção para a contradição que a Metáfora Paterna impõe, pois a menina é levada a abandonar a mãe no mesmo momento em que deve tomá-la como modelo de identificação. Por este motivo, “A história de uma menina e sua mãe aparece como a história de uma separação sempre adiada” (p.189).O autor acrescenta que o amor da chamada “fase pré-edipiana” se dirige à mãe fálica. Descoberta a castração, se põe fim à esta relação.

Em suas fórmulas lógicas, Lacan busca demonstrar, segundo Fabbrini (2002), que “não há relação sexual”, posto que sujeito masculino e sujeito feminino não estabelecem uma relação de complementariedade. Do lado masculino é possível falar em um conjunto universal: existe pelo menos um sujeito que se subtrai à castração. Do lado feminino não há a formação de um todo, de algo que constitua um conjunto: nenhuma mulher escapa à castração42. Na mulher, a função fálica não é limitada como para os homens, mas comporta um suplemento de gozo, o “mais de gozar”.

Em relação à função fálica, as mulheres não formam, portanto, um conjunto universal. Não existe uma expressão geral que designe “as mulheres”. Daí a conclusão lacaniana de que “A mulher não existe”. Aquilo que é próprio do feminino é excluído da linguagem, posto que não há uma referência simbólica que identifique sua especificidade.

(...) o trágico da mulher é que não há um significante que diga o feminino; a tragicidade do feminino é estar continuamente sendo relançado à vertigem do puro vazio”.

(Fortes, 1993, p.64)

Segundo esta abordagem, o que permite o encontro sexual é que o homem encontra na mulher a causa do seu desejo perdido. A mulher representa para ele a significação da castração, da falta. (Fabbrini, 2002)

A questão da vaidade e da beleza na mulher viriam, então, como um recurso para mascarar sua falta e buscar uma resposta para sua identidade, resposta esta que também é

42

Um conjunto é dado pela exceção de um elemento que escapa à regra: “É porque há a exceção, nos diz Lacan, que a classe, a totalidade, o todo, se funda. (...) a totalidade não se constitui senão a partir de ao menos uma exceção, ao menos um que venha dizer não àquilo que constitui essa classe (...)” (Melman, 1986, p.45).

buscada através do olhar do outro (masculino). Isto justificaria o fato de a mulher ser tão dependente do amor.

O eixo central da teoria lacaniana está na questão do gozo, do qual o gozo sexual ou fálico - relacionado com o significante do falo - é uma modalidade que irá fazer limite ao gozo em geral. A outra modalidade é o gozo do Outro, ou gozo do corpo , que só pode ser suposto ou deduzido, já que está fora-da-linguagem, pois não é capturado por nenhum significante. Este gozo será colocado do lado do feminino:

“Não há dúvida, com efeito, de que um enigma que

uma mulher representa para um homem está ligado, em grande parte, ao fato de que este lhe supõe um gozo outro que não o seu, sem poder no entanto defini-lo.” (André,

1986, p.223)

Claro está que este gozo do qual nada se sabe induz que se suponha falar em lugar dele.

Mediante está “dialética de dois gozos”, Lacan irá contornar os impasses da teoria freudiana acerca da feminilidade. Segundo Lacan, diz André (1986), a psicanálise freudiana deixou encoberta a questão da sexualidade feminina, justamente o ponto que pretendia esclarecer. A “dialética de dois gozos” esclarece com outros termos as dificuldades teóricas impostas pela oposição clitóris/vagina apontada por Freud.

Para finalizarmos esta breve exposição de alguns tópicos da teoria lacaniana, faltaria mencionarmos os quatro discursos propostos por Lacan (1969-1970): o discurso do mestre, o discurso da universidade, o discurso da histérica e o discurso da psicanálise. Nesta menção, não nos ocuparemos da lógica do significante, fundamental para uma compreensão mais aprofundada do tema.

Para Lacan, explica Jorge (2002), estes discursos sustentam o “liame social” que, assim como o inconsciente, é estruturado como linguagem. Desta maneira, “todo discurso é uma articulação entre sujeito e Outro” (Jorge, 2002, p.27).

Segundo Jorge (2002), o discurso do psicanalista é o ponto de referência primordial para a compreensão dos demais discursos. Sua característica fundamental é considerar o

outro como sujeito, de modo a não emitir sobre ele nenhum saber, mas fazer com que ele fale de seu inconsciente, conforme ilustra a associação livre.

Nesta concepção, a noção de sujeito supõe um lugar de conflito e de cisão, oposta à noção de indivíduo, que evoca uma unidade. (Jorge, 2002)

O discurso do mestre é o contrário do discurso do psicanalista, pois o saber é colocado no lugar do Outro. Uma ilustração deste tipo seria a sugestão hipnótica, abandonada por Freud. (Jorge, 2002)

O discurso da histérica se dirige a um outro supostamente sem furo, completo, a quem demanda o saber acerca do seu sintoma. Segundo Jorge (2002), Lacan colocaria neste discurso o lugar de todo analisando.

Já o discurso do universitário coloca o outro como objeto a ser dominado pelo saber. Jorge (2002) pontua que os erros de psicanalistas pós-freudianos resultaram deles terem compreendido a análise a partir do discurso universitário, o que produz uma “psicologização” do sujeito.

A compreensão dos quatro discursos propostos por Lacan auxiliaria no entendimento do lugar da mulher na cultura e do seu papel na formação do laço social, discussão esta que pode ser incrementada por meio da relação da feminilidade com a estrutura clínica histérica. (Prates, 2001)

A estrutura clínica não é determinada pelo sintoma, mas pela posição do sujeito diante da castração do Outro e da própria castração. Além disso, a estrutura clínica se define em torno de uma pergunta fundamental que, no caso da histérica, se dá em relação ao sexo. (Palonsky, 1997)

As estruturas clínicas se dividiriam em neuróticas – onde se encontram a histeria e a neurose obsessiva -, perversas e psicóticas. Alguns autores também consideram a fobia como uma estrutura clínica, dentro do quadro neurótico. (Palonsky, 1997)

Na neurose, a condição de castração do Outro será recalcada e permanecerá como um “saber” inconsciente. O confronto com a castração do Outro produz a angústia, da qual o neurótico buscará escapar, através de inventivas que a dissimulem. A principal destas inventivas do neurótico é colocar a castração do seu próprio lado. Sendo assim, aquilo que é da ordem de um impossível – ser completo – o neurótico irá colocar como sendo uma

impotência, uma falha sua. Por isso, a histérica freqüentemente aparecerá como aquela eternamente insatisfeita. (Palonsky, 1997)

A histérica terá sua vida dedicada a buscar as respostas às perguntas que supostamente quer conhecer. Supostamente porque, na verdade, ela não tolerará a angústia decorrente dessas respostas, ou seja, do fato de que Outro também é castrado. (Palonsky, 1997)

A equiparação entre feminilidade e histeria – que, embora menos freqüentemente, também pode se apresentar do lado dos homens – se deve à pergunta que ambas farão acerca do que é ser uma mulher:

“Trata-se, enfim, de uma pergunta em relação àquilo

que seria um sinal distintivo da feminilidade, pergunta que estará sempre apontando para algo além do falo.”

(Palonsky, 1997, p.42)

A espera de que o Outro forneça esta resposta caracteriza, na histérica, as recorrentes consultas a médicos, a incessante demanda por exames clínicos, cirurgias e, até mesmo, a procura de um analista. A questão da beleza e da maternidade podem operar como um recurso que supostamente venha a obliterar esta falta-a-ser. Uma outra saída será a identificação com a posição masculina, na esperança de que a via do olhar do homem lhe forneça a identidade feminina. (Palonsky, 1997)

A diferença entre a estrutura histérica e a estrutura da feminilidade, “supondo que exista tal diferença”, diz Palonsky (1997), estará no fato de que a histérica não irá aceitar ser diferente do homem e reivindicará permanentemente uma outra posição que não se defina exclusivamente pela negatividade.

Em qualquer um dos casos, acrescenta Prates (2002), o impasse residiria em se situar como mulher fora da referência fálica, sem, no entanto, estar excluída da linguagem.

Deste modo, pudemos ver como a referência lacaniana apreende a questão da feminilidade de uma forma mais abrangente e as saídas que oferece para algumas das dificuldades teóricas que o texto freudiano sugere.

Documentos relacionados