• Nenhum resultado encontrado

“A emergência da história das mulheres como

um campo de estudo acompanhou as campanhas feministas para a melhoria das condições profissionais e envolveu a expansão dos limites da história. Mas esta não foi uma operação direta ou linear (...)” 57

Um dos primeiros objetivos do movimento feminista era o de introduzir o passado das mulheres na história, revelando a sua efetiva participação nos acontecimentos. (Costa, 1996 e Priore, 2001)

A relação entre a história das mulheres e a política é, ao mesmo tempo, óbvia e complexa. Existem razões para se argumentar que a história das mulheres está relacionada com a emergência de um movimento político. Também há justificativas que insistem na sua despolitização.

“Mais do que postular uma simples correlação, precisamos pensar sobre este campo como um estudo dinâmico na política da produção de conhecimento” . (Scott,

1991, p.66)

Segundo Scott (1991), são três os significados atuais da palavra política. Em sua definição mais típica, refere-se a atividades do governo ou de outras autoridades, que envolvem um apelo à identidade coletiva. Em segundo lugar, a palavra está relacionada a estratégias de manutenção ou contestação do poder. Finalmente, a palavra é aplicada em práticas que reproduzem ou desafiam determinados sistemas denominados “ideológicos”, que estabelecem identidades e relações encaradas como naturais, normativas ou auto- evidentes. Scott (1991) insere sua perspectiva sobre a história das mulheres numa narrativa política, que pretende utilizar estes múltiplos significados.

57

SCOTT, Joan. (1991). História das mulheres. in: A escrita da história: novas perspectivas. BURKE, Peter (org). p.63. São Paulo, UNESP. Tradução: Lopes, Magda, 1992.

Uma das narrativas convencionais, explica Scott (1991), situa a origem deste campo na década de 60, quando ativistas feministas reivindicaram uma história que evidenciasse a participação das mulheres e explicasse sua opressão. Este movimento58 se dirigiu para uma atividade política mais ampla que, inicialmente, estava diretamente relacionada com a intelectualidade.

A história das mulheres se consolidou a partir de 1970, junto com a ascensão da antropologia, da história das mentalidades e dos estudos sobre memória popular. Entre a metade e o final da década de 70, a história das mulheres aprofundou seu campo de questionamento e adquiriu um espaço acadêmico próprio, com a criação de laboratórios e o incentivo da produção sobre o tema. Tornou-se uma prática defendida em diversas universidades do mundo, com posição de destaque na produção norte-americana.

Este novo campo de estudo se constituía, entretanto, distante da luta política, até que o desvio para o gênero na década de 80 romperia definitivamente com esta ligação:

“A emergência da história das mulheres como um campo de estudo envolve, nesta interpretação, uma evolução do feminismo para as mulheres e daí para o gênero; ou seja, da política para a história especializada e daí para a análise.” (Scott, 1991, p.65)

Apesar das diversas interpretações acerca da concentração da produção na esfera acadêmica, esta trajetória é aceita, por feministas e seus críticos, como uma descrição do modo como o movimento se apresentou.

Não é possível apontar, no Brasil, uma tendência epistemológica definida sobre gênero. O conceito teria sido pouco incorporado pela historiografia. (Priore, 2001)

Mesmo que a história das mulheres esteja relacionada com a emergência do feminismo, Scott (1991) ressalta a importância de se criticar esta interpretação convencional. A história deste campo deve considerar “a posição variável das mulheres na

58

Scott (1991) utiliza o termo “movimento” para distinguir o fenômeno atual dos esforços anteriormente disseminados para escrever o passado das mulheres, para indicar a dinâmica dos intercâmbios interdisciplinares dos historiadores das mulheres e para evocar as associações com a política.

história, o movimento feminista e a disciplina da história”, o que não requer uma narrativa linear (Scott, 1991, p.65).

O desenvolvimento da história das mulheres implicou na contestação da disciplina da história como um corpo unitário. Em 1969, o Comitê de Coordenação de Mulheres na Profissão Histórica buscava integrar as mulheres à história e se contrapunha às normas disciplinares tradicionais da profissão.

Este movimento se diferenciava das manifestações anteriores, pois definia a profissão como uma organização política59. Não concebia, portanto, a neutralidade do campo científico e a investigação imparcial. Os chamados historiadores “tradicionais” reagiram com a acusação de que esta reivindicação era “ideológica”, dada a distorção interessada de um conhecimento supostamente neutro.

“O rótulo de ‘ideológico’ proporciona às opiniões dissidentes uma idéia de inaceitabilidade e dá às opiniões predominantes uma condição de lei indiscutível ou ‘verdade’.” (Scott, 1991, p.79)

Esta acusação ameaçava a legitimidade profissional e encobria a discussão acerca dos pressupostos metodológicos da disciplina.

A história das mulheres investigava o significado do termo “história” e apontava a hierarquia implícita nesta definição. Este empreendimento revelava os processos pelos quais os padrões masculinos se constituíram como representantes da história humana: “O ‘ofício do historiador’ é um ofício de homens que escrevem a história no masculino” (Perrot, 1988, p.185).

A discussão dos seus paradigmas levou a uma revisão dos métodos de pesquisa, ao questionamento da universalidade no discurso histórico e abriu espaço para os excluídos da história, dentre eles, a mulher. Esta discussão apontava que, ao recortar e narrar o passado, o pesquisador não poderia excluir sua subjetividade. (Matos, 2000)

59

Manifestações anteriores protestavam a favor de um conhecimento científico neutro, baseado em procedimentos adquiridos através da formação. Esta posição está fundamentada na oposição entre profissionalismo e política.

Segundo Perrot, o “silenciamento das mulheres” é resultado da “modernidade masculina e urbana”, cujas consequências os pesquisadores de história oral conhecem por excelência.

A história oral e a recuperação da memória feminina colaboraram para restituir a dimensão política do discurso das mulheres. Fontes literárias também contribuíram com o desenvolvimento da disciplina. (Priore, 2001)

A ampliação dos objetos da história se deve à influência de um movimento europeu, chamado Nova História. A Nova História (Nouvelle Histoire) está associada à Ecole des

Annales, agrupada em torno da revista Annales, fundada em 1929 por Lucien Febvre e

Marc Bloch que, junto a Fernand Braudel, Georges Duby, Jacques Le Goff e Emmanuel Le Roy Ladurie, formavam o núcleo do movimento.60

Eles propuseram uma história-problema em contraposição ao paradigma positivista, segundo o qual a história é essencialmente política e se constitui em uma narrativa objetivista dos grandes acontecimentos do Estado-Nação.

Baseando-se exclusivamente em documentos escritos e oficiais, ao historiador tradicional cabia a tarefa de organizar os fatos da realidade em um discurso coerente, de cunho cívico-nacionalista e isento de interpretações pessoais. Já a “história-problema” inclui a subjetividade do pesquisador, que seleciona o material histórico e o interpreta a partir daquilo que deseja conhecer. O passado é reconstruído a partir das hipóteses do presente.

A Nova História se interessa por todas as atividades humanas, incluindo as pessoas comuns, daí as expressões “história total” e “história vista de baixo”.

“Em uma palavra: [a história se faz] com tudo o que, sendo do homem, depende do homem, serve ao homem, expressa o homem, significa a presença, a atividade, os gostos e as formas do ser do homem.” (Febvre, 1953, citado por

Fontana, 1998, p.207)

60

Outros historiadores que contribuíram com o movimento, de modo menos sistemático: Ernest Labrousse, Pierre Vilar, Maurice Agulhon, Michel Vovelle, Roland Mousnier e Michel Foucault

A ampliação das fontes – estatísticas, fotografias, filmes, pinturas, poesias, etc - e dos temas – horizontes, paisagens, costumes, sexualidade, etc - levou a uma revisão dos métodos e instrumentos, o que alterou a importância do “fato histórico”.

Segundo Priore (2001), esta busca por “novos objetos” serviu para mascarar o vazio deixado pela teoria marxista da história. A autora aponta que, apesar dos esforços, a história “nova” não realizou rupturas epistemológicas que levassem a uma redefinição de suas noções tradicionais.

Na busca de seus objetivos, a Nova História se favoreceu da contribuição de outras disciplinas como a geografia, sociologia, psicologia, economia, lingüística e antropologia social. Recebeu influências do marxismo e da escola de Durkheim.

Os Annales teriam enfatizado a questão metodológica, dada a ausência de um pensamento teórico consistente. Seus membros não chegaram a definir um “programa” propriamente dito61. Tais características teriam se evidenciado após a segunda Guerra Mundial, quando a revista passou a ser dirigida por Febvre, devido ao assassinato de Bloch pelos alemães. Febvre faleceu em 1956. Fernand Braudel dirigiu a revista entre 1956 e 1968, período marcado pelo aumento do prestígio da revista. Após este período, a escola teria perdido o seu mínimo rigor. (Fontana, 1998)

Segundo Reinato (2001), Burke divide o movimento dos Annales em três fases: a primeira de 1920 a 1945, caracterizada por uma ação subversiva, radical mas pouco disseminada, que teria conduzido a uma “guerra de guerrilhas” contra a história centralizada nos acontecimentos (évènementielle). Nesta fase, as produções antropocêntricas estavam voltadas para o econômico e geográfico. Seus autores não se filiaram a nenhuma filosofia da história e recusaram qualquer tipo de dogmatismo. Receberam influências principalmente do recente estudo das mentalidades, da psicologia e etnologia.

Tendo como destaque Fernand Braudel, a segunda fase sucedeu a Segunda Guerra Mundial, quando o movimento se apoderou do establishment histórico, aproximando-o da perspectiva de uma escola. O crescimento econômico passou a ser o grande objeto da história. A escola dos Annales teria acumulado análises parciais, sem chegar a uma explicação global válida. Uma solução para esta fragmentação foi sugerida por Braudel,

através da proposta de uma estrutura em três pisos, com ritmos de evolução distintos: (Fontana, 1998): em sua base estava uma geografia aplicada à História, a chamada “geo- história”, caracterizada por um ritmo mais lento nas relações do homem com o meio. Acima estariam os “Destinos coletivos e movimentos de conjunto”, piso este dividido nos planos das economias, dos impérios, das civilizações (formas de pensar), das sociedades e das formas de guerras. Finalmente, o terceiro - “Os acontecimentos, a política e os homens” -, segundo o modelo tradicional de História política. Não havia, entretanto, diz Fontana (1998), uma explicação do modo como estes níveis interagiam.

Teorizações posteriores buscaram explicar este modelo, como por exemplo, a proposição de três tempos na história: o tempo curto, ou seja, o ritmo dos acontecimentos, o ritmo lento da história das civilizações e o ritmo quase imóvel da relação dos homens com a terra. Embora Braudel tivesse abandonado tal proposição em sua obra posterior, ela sintetizava no momento as principais características dos Annales, a saber, a relação com a geografia e com a história econômica, assim como admissão da diversidade de influências a que o historiador está sujeito ao pesquisar as sociedades.

A terceira fase teve início por volta de 1968, liderada principalmente por Jacques Le Goff, E. Le Roy Ladurie e Marc Ferro. Enfatizou as superestruturas sociais. Segundo os críticos, foi marcada por uma história fragmentada e estilhaçada62. Neste período, radicalizou-se a relação presente-passado, o que levou à chamada “história imediata”. A grande inspiração se deu a partir de Michel Foucault, para quem a história poderia tematizar qualquer assunto sobre o homem.

Os anos de 1990 teriam sido marcados por um período de crise interna, que, segundo Fontana (1998), assistiu o retorno da história narrativa e política. (Fontana, 1998)

Segundo Matos (2000), os estudos sobre a mulher decorreram da crise da historiografia tradicional e se tornaram possíveis a partir da inserção da discussão política no âmbito do cotidiano, ou seja, do deslocamento do campo do poder das instituições públicas para o setor privado.

Priore (2001), por sua vez, aponta como o feminismo e a história das mulheres se confundiram e salienta a importância de separar os dois movimentos, dada a distinção de 61

Por estes motivos, alguns autores, dentre eles Burke (1991), não consideram os Annales como uma escola, mas como um movimento. (Reinato, 2001)

62

seus objetos. Ao contrário da história das mulheres, a história do feminismo é marcada por um trajeto, muitas vezes, distante do universo acadêmico, o que caracteriza um certo “isolamento intelectual”. Mesmo assim, ela ainda se constitui num importante material para se conhecer a história das mulheres.

O desenvolvimento da história social – abordagem metodológica utilizada pela maioria dos historiadores - também colaborou com a ampliação dos objetos de investigação histórica e trouxe legitimidade para os estudos sobre as mulheres durante os anos 70.

Neste período, a produção historiográfica estava centralizada nas questões do trabalho feminino, sobretudo do trabalho fabril, herança da tradição marxista, preocupada em denunciar a opressão capitalista e masculina sobre as mulheres.

“Mulheres” passou a ser uma categoria social, independente e fixa, que favoreceu a emergência de uma identidade coletiva. Estudos sobre a diferença sexual revelavam os efeitos da dominação masculina e estimulavam uma mobilização política, centralizada no antagonismo entre os sexos.

A ênfase na questão da diferença, além de fixar uma oposição homem/mulher, evidenciou a ambigüidade imanente à história das mulheres. Este projeto se desenvolveu a partir de uma lógica contraditória de suplementação, que provocou a reescrita da história e proporcionou um complemento, mas sem oferecer uma resolução final. (Scott, 1991)

A tradição positivista excluiu o tema das mulheres e as colocou como “meras coadjuvantes da História” (Perrot, 1988, p.187). O tema era incluído como um adendo à história geral, como um capítulo suplementar, “numa espécie de generosa esmola com que se premiava o nascente movimento feminista” (Priore, 2001, p.221).

Além de fragmentárias, as fontes históricas - documentos, arquivos, publicações - eram de monopólio masculino e estavam associadas a um discurso normativo. “O olhar sobre as mulheres é mediatizado e é necessário decifrar a natureza desta mediação.” (Costa, 1996, p.67)

As fontes documentais são escassas no período referente aos primeiros séculos de colonização. Fontes impressas se tornam mais numerosas a partir do século XIX. Talvez por isso, a disciplina carece hoje de historiadores dedicados à questão e de pesquisas regionais onde o tema ainda não despertou interesse. A produção está concentrada na região

sudeste. Os profissionais sofrem com a falta de interlocutores, restritos a um grupo pequeno de pioneiras. (Priore, 2001)

A história das mulheres pouco se deteve na questão da especificidade de seu objeto, o que contribui com o conjunto das dificuldades que a disciplina enfrentou. Outro fator se refere a aplicação de categorias provenientes da história geral. (Priore, 2001)

Acrescenta-se a esta dificuldade o fato de que a ênfase na questão da mulher como restrita a um território feminino colaborou para a marginalização da disciplina.

“Para estar na estante das bibliotecas e livrarias, as mulheres tinham que abrigar-se sob o guarda-chuva das minorias étnicas, nacionais, religiosas ou sexuais.” (Priore,

2001, p.224)

Segundo Perrot (1988), é preciso desenhar um outro caminho que abarque o universo feminino, distante da tradição dos grandes intelectuais da área. A autora esboça a existência de um “mundo das mulheres” caracterizado por formas próprias de expressão.

Para retratar o percurso da mulher, seria necessário se desprender da rede imaginária que permeia os sonhos, a literatura e a poesia e que constrói uma “simbologia congelada no jogo dos papéis e das alegorias” (Perrot, 1988, pág. 188).

Segundo Costa (1996), investigar o passado das mulheres é sempre uma tarefa difícil e cheia de riscos, dentre eles, o de colocá-las como vítimas eternas ou, ao contrário, de heroicizar sua atuação social. A autora concorda que a abordagem careceu de um respaldo teórico compatível, confirmado pelo fato de que as explicações sobre o ocultamento das mulheres na história convergiam para a acusação de misoginia.

A partir dos anos 80, houve uma mudança na abordagem do tema, que passou a abarcar a história como um todo. Se o primeiro momento operou no sentido de denunciar a dominação masculina, o segundo momento dedicou-se a compreender de que forma estes mecanismos de dominação atuaram.

A história das mulheres apresenta setores vinculados com a política feminista, está engajada no questionamento de tendências dominantes na história e empenhada em problematizar sua escrita tradicional. “Muitos daqueles que usam o termo gênero, na

verdade se denominam historiadores feministas” e representam uma submissão política, conceituada a partir da divisão entre os sexos. Entretanto, “grande parte da atual história das mulheres, mesmo quando opera com conceitos de gênero, está voltada para preocupações contemporâneas da política feminista”, o que confirma a complexidade do campo (Scott, 1991, p.65-66).

Prenhe de silêncios e fragmentações, a história das mulheres ainda é um campo a ser desenvolvido. Sua função é a de revelar as relações entre a mulher e o fato social, num desafio constante de fazer uma história total, capaz de compreender as relações entre os discursos convencionais e as práticas cotidianas.

CAPÍTULO IV - CRÍTICA FEMINISTA À TEORIA FREUDIANA DA

Documentos relacionados