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Dada a perspectiva de ciência aplicada em que se insere esta pesquisa, evidenciamos, nesta seção, a contribuição de nossa investigação ao processo de ensino-aprendizagem da língua materna, em termos de aplicação, em sala de aula, das noções aqui discutidas, como o fizemos em outros trabalhos (BISPO, 2003; 2006; 2007a; 2007b).

Considerando a abordagem de ensino da língua aqui assumida, partimos do pressuposto de que, para obter um melhor resultado de seu trabalho em sala de aula, o professor deve voltar-se para as expectativas e necessidades dos alunos com os quais vai trabalhar, respeitando suas peculiaridades no tocante à cultura, aos valores individuais e coletivos, aos usos da língua, entre outros. Nesse sentido, desenvolver um trabalho com a

língua materna a partir da variante de linguagem usada por esses sujeitos parece-nos representar uma atitude bastante significativa, pois, além de valorizar o conhecimento linguístico deles, permite-lhes apresentar uma atitude de empatia para com a disciplina e, assim, torna mais fácil o aprendizado de outras variantes da língua.

Acrescentamos ainda que, às expectativas e necessidades do alunado, devem-se somar as exigências e demandas sociais em relação ao papel da escola como agência formadora de cidadãos e em relação aos próprios cidadãos por ela formados. Essas exigências da sociedade, em termos de usos da linguagem, demandam uma maior habilidade por parte do aluno/cidadão no emprego das diferentes formas de comunicação, bem como a capacidade de adaptação da linguagem empregada às mais variadas situações comunicativas de que ele possa participar.

Em virtude disso, defendemos uma ação pedagógica que valorize a realidade que o educando traz consigo e, no caso específico, da linguagem que ele emprega no seu cotidiano. Eis, então, o ponto de partida que o professor de língua materna deve tomar como referência para realizar, de forma sistemática, o seu trabalho no ambiente escolar. Esse trabalho implica partir de uma abordagem descritiva do ensino da língua, seguir pelo ensino prescritivo e culminar, sem dúvida, com o ensino produtivo, vislumbrando desenvolver no aluno a competência comunicativa (TRAVAGLIA, 2002).

Dito isso, apresentamos, a seguir, cinco ocorrências da relativa cortadora e duas RPP, extraídas dos Corpora D&G Natal e D&G Rio de Janeiro, para fazermos algumas considerações.

(102) “... aí eu vou... pego os lápis de cor que eu quero... tudo que... tem colorido... lápis de cor... canetinha... hidrocor... marcador... papel colorido... o que for... aí coloco tudo do meu lado ali... no lugar... assim... que tem/ a prancheta tem... o lugar que a régua corre... e do lado tem sempre um espaço... né?” (Corpus D&G Rio de Janeiro, língua falada, ensino superior, informante 5, relato de procedimento)

(103) “Descrever um lugar que gosto. A sala de minha casa, porque tem um som maravilhoso particularmente adoro música, um aquário que eu mesmo cuido, com muita presteza (...)” (Corpus D&G Rio de Janeiro, língua escrita, ensino médio, informante 17, descrição de local)

(104) “... tem um filme que eu assisti que eu gostei muito ... chamado o décimo homem ...” (Corpus D&G Natal, língua falada, ensino superior, p. 53)

(105) “... busque nele tudo aquilo que você precisa ... não precisa você se sacrificar para isso ...” (Corpus D&G Natal, língua falada, ensino superior, p. 66)

(106) “Eu não via a hora de chegar em casa e tomar um belo de um banho, comer dignamente e cuidar dos meus calos, os quais os meus pés estavam cheios.” (Corpus D&G Natal, língua escrita, ensino fundamental, p. 316)

(107) “O advogado de quem vamos falar era uma pessoa de renome, vinha de uma família tradicional e muito rica ...” (Corpus D&G Natal, língua escrita, ensino superior, p. 67) (108) “Em alguns momentos, o vigia da clínica, José, me auxília ou então faz alguma coisa no

meu lugar nos momentos em que eu não posso me ausentar do meu trabalho, então ele vai em bancos e entregar contas médicas no meu lugar.” (Corpus D&G Natal, língua escrita, ensino médio, p. 268)

Em primeiro lugar, é preciso considerar que as cinco primeiras ocorrências das orações destacadas, apesar de representarem desvios quanto ao modelo padrão da relativa, constituem exemplos vivos desse tipo oracional tão representativos quanto os itens (107) e (108), que ilustram a RPP. Esse desvio está relacionado ao “corte” da preposição em no exemplo (102), de em (103), a e de em (104) e de em (105) e (106), regidas, respectivamente, pelos verbos correr, gostar, cuidar, assistir, gostar e precisar e pelo adjetivo cheios.

Levando a questão para a sala de aula, o professor precisa conceber que, paralelamente à forma padrão de organização da oração relativa, existem outros modelos de organização, dos quais a cortadora é um exemplar. Também é necessário que ele leve em conta que a cada situação comunicativa corresponde o emprego desta ou daquela estratégia de construção relativa. Aliás, não precisa apenas ter essa consciência, mas, e sobretudo, fazê-la presente em sua ação pedagógica.

Para tanto, o professor pode inicialmente proceder à comparação das ocorrências da cortadora [como ilustrado de (102) a (106)] com a das RPP (107) e (108), para observar a(s) diferença(s) entre elas, com o que os alunos perceberiam, entre outras coisas, a ausência da preposição nas do primeiro tipo. Isso feito, o professor levaria os alunos a entender o porquê da presença das preposições de e em nas relativas dos exemplos (107) e (108), respectivamente, com uma pequena explicação sobre o regime dos verbos. De modo semelhante, levaria os alunos a refletirem se, no caso dos exemplos de (102) a (106), haveria

ou não necessidade de se colocar(em) preposição(ões) antes do(s) relativo(s) e, em caso positivo, qual(is) seria(m). Ao final desse procedimento, possivelmente os alunos chegariam à versão padrão dessas cortadoras, como posto a seguir:

(102a) ... aí eu vou... pego os lápis de cor que eu quero... tudo que... tem colorido... lápis de cor... canetinha... hidrocor... marcador... papel colorido... o que for... aí coloco tudo do meu lado ali... no lugar... assim... que tem/ a prancheta tem... o lugar em que a régua corre... e do lado tem sempre um espaço... né?

(103a) Descrever um lugar de que gosto. A sala de minha casa, porque tem um som maravilhoso particularmente adoro música, um aquário de que eu mesmo cuido, com muita presteza(...)

(104a) ...tem um filme a que eu assisti e de que eu gostei muito ... chamado o décimo homem ...

(105a) ... busque nele tudo aquilo de que você precisa ... não precisa você se sacrificar para isso ...

(106a) Eu não via a hora de chegar em casa e tomar um belo de um banho, comer dignamente e cuidar dos meus calos, dos quais os meus pés estavam cheios.

Da mesma forma, essa comparação também poderia levar os alunos a apontar versões da relativa copiadora para esses casos, chegando a ter, por exemplo, Eu não via a hora de chegar em casa e tomar um belo de um banho, comer dignamente e cuidar dos meus calos, os quais os meus pés estavam cheios delespara o exemplo (106).

O confronto das estratégias de relativização se daria essencialmente em atividades de reescritura de textos (inclusive os produzidos pelos próprios alunos), que constitui um campo bastante produtivo para a observação e fixação de estruturas regulares, bem como para o exercício da competência comunicativa. Conforme mostram Oliveira e Coelho (2003),

A proposta de reescritura abre espaço para o lúdico, para o jogo no ensino de língua portuguesa. Ao acrescentar, retirar, deslocar ou transformar porções ou termos da seqüência textual, estão os alunos aprendendo a manipular não só a estrutura discursiva, mas também os sentidos, os conteúdos veiculados pela mesma, desenvolvendo individual e coletivamente sua capacidade de percepção dos artifícios ou recursos de linguagem a que todos estão submetidos numa comunidade lingüística. (p. 93)

Paralelamente, o professor trataria das relações entre fala e escrita, além da questão da variação linguística. Desse modo, associaria as ocorrências da relativa cortadora e as da RPP às situações reais de uso, vislumbrando sempre a adequação da forma linguística ao contexto comunicativo em que ela será empregada. Com isso, os alunos poderiam perceber, por exemplo, que num texto escrito formal deva-se dar preferência ao modelo padrão, ao passo que, em situações de informalidade ou até mesmo na fala formal, o emprego da cortadora seja comum e perfeitamente aceitável. Tanto é assim que, mesmo em contextos formais de língua escrita, encontramos a ocorrência da relativa cortadora, como no exemplo abaixo, extraído da página virtual da Universidade Federal de Viçosa:

(109) Cursos a distância da UFV: educação de qualidade na hora e no lugar que você precisa. Voltando à questão dos exemplos anteriores, tomá-los como objeto de estudo em sala de aula por meio de atividades de reescritura também possibilita ao professor trabalhar uma das mais intrigantes questões da norma padrão quanto ao ensino de língua materna: a regência, principalmente no caso das orações relativas, em que está envolvida antecipação do sintagma preposicionado em relação ao termo regente. A partir de exercícios comparativos e de reelaboração de períodos, os alunos passariam a compreender o emprego de preposições antes dos relativos, bem como começariam eles próprios a construir relativas com esse recurso, quando necessário.

É válido ressaltar que esse tipo de trabalho requer do professor uma postura não discriminatória, de modo a não emitir juízo de valor em relação a esta ou àquela forma de organização da oração relativa, mas, ao contrário, de mostrar aos alunos as diferentes possibilidades de recursos que a língua oferece ao usuário, incluindo nelas as formas disponíveis de construção relativa, mais particularmente a cortadora.

Procedendo assim, o trabalho docente ganha outra dimensão e, ao que nos parece, apresenta maior probabilidade de resultados positivos, já que passa a valorizar a realidade linguística do aluno, partindo dela inclusive para o aprendizado e/ou sistematização de outras formas e usos da língua.

Com efeito, em termos de aplicação em sala de aula, podemos citar o trabalho de Ferreira (2005), que, baseando-se nas propostas que apresentamos sobre o tratamento da relativa copiadora no ambiente escolar (BISPO, 2003), desenvolveu atividades de língua portuguesa sobre as orações relativas com alunos da então 8ª série do Ensino Fundamental

(atualmente, 9º ano), inscritos no PROCEFET41 (Programa de Iniciação Tecnológica e Cidadania do CEFET-RN) daquele ano.

Seguindo orientações sugeridas em nosso trabalho já referido, além de outros, a professora-pesquisadora conseguiu trabalhar esse tópico gramatical de forma mais produtiva, obtendo resultados satisfatórios, conforme ela própria registra em suas considerações finais:

As contribuições elencadas em Bispo (2003), Oliveira e Coelho (2003) e Cunha (1998) foram não apenas motivadoras, mas indispensáveis ao resultado alcançado por esta pesquisa: os alunos conseguiram assimilar as exigências normativas referentes ao tópico ”adjetivas", sem se limitarem à dicotomia da gramática normativa, mas partindo das reais implicações sintáticas das orações adjetivas em uso nas produções textuais pertinentes à oral e à escrita. (FERREIRA, 2005, p. 91)

Isso posto, reiteramos as possíveis contribuições decorrentes do que aqui tratamos sobre as relativas cortadoras no contexto escolar, mais especificamente nas aulas de língua portuguesa, seja no ensino fundamental ou no médio.

41 O PROCEFET é um programa de educação a distância voltado para os alunos da Rede Pública de Ensino do Rio Grande do Norte que estejam cursando o 9º ano do ensino fundamental, que tenham cursado do 6º ao 8º ano também na rede pública e que almejem ingressar no ensino médio integrado ao técnico do CEFET-RN.