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O conceito de marcação tem suas origens nos estudos linguísticos de inspiração estruturalista através dos teóricos da Escola de Praga, como um refinamento da noção saussureana de valor linguístico nas distinções binárias entre um par contrastivo. Essas distinções mostraram-se muito produtivas em análises de caráter fonológico, conforme encontramos em Trubetzkoy (1939), com a investigação de traços que alguns fonemas apresentavam por oposição àqueles que outros fonemas não exibiam. Esse procedimento também foi aplicado à análise morfossintática, como podemos ver nos trabalhos de Jakobson.

A análise de membros de categorias gramaticais e lexicais fechadas a partir de traços tanto privativos quanto facultativos, conforme aponta Bender (1998), representou uma tendência na tradição linguística. Esses traços, segundo mostra o próprio Bender, revelariam certas tendências translinguísticas, as quais Greenberg (1966) caracterizou como um conjunto rico e complexo de noções pertencentes a categorias marcadas e não- marcadas, como as seguintes: “expressão zero”, sincretismo, irregularidade, neutralização contextual, domínio, frequência, entre outras.

Com ênfase nos universais, ou seja, naquilo que tinha validade geral para diversas línguas, Greenberg perseguiu algumas questões envolvendo a marcação, tais como: a) Quais seriam (se houvesse algum) os traços comuns que justificariam a equivalência dos conceitos de categorias marcadas e não-marcadas em campos tão diversos quanto fonologia, gramática e semântica? b) Seria possível isolar uma característica que funcionasse como definidora dessa noção (a de marcação)? c) Qual seria a conexão entre categorias marcadas e não-marcadas e os universais?

Outros autores, como Householder (1971) e Matthews (1974) também utilizaram a noção de categorias marcadas e não-marcadas em estudos sobre fonologia na mesma direção traçada por Jakobson. Em décadas posteriores, autores como Haiman (1980, 1985), Matthews (1972, 1991), Croft (1990, 1991) e Givón (1990) envolveram a discussão sobre a marcação na abordagem sobre a iconicidade.

Na perspectiva que aqui empregamos, o princípio da marcação, em linhas gerais, diz respeito “à presença vs ausência de uma propriedade nos membros de um par contrastante de categorias lingüísticas” (FURTADO DA CUNHA, 2001, p. 60). Segundo Givón (1990), existem três critérios principais que podem ser usados para distinguir uma categoria marcada de uma não marcada, num contraste binário. São eles:

(a) Complexidade estrutural: a estrutura marcada tende a ser mais complexa – ou maior – que a não-marcada correspondente;

(b) Distribuição de frequência: a categoria marcada tende a ser menos frequente, portanto mais saliente cognitivamente, que a não-marcada;

(c) Complexidade cognitiva: a estrutura marcada normalmente é mais complexa cognitivamente (em termos de atenção, esforço mental ou duração de processamento) que a correspondente não-marcada.

Existe uma tendência geral, nas línguas, para que esses três critérios de marcação coincidam. Também se admite que a correlação entre marcação estrutural, marcação cognitiva e baixa frequência de ocorrência é o reflexo mais geral da iconicidade na gramática, já que representa o isomorfismo entre correlatos substantivos (de natureza comunicativa e cognitiva) e correlatos formais da marcação (FURTADO DA CUNHA et al., 2003).

Croft (1990) aponta para a “inadequação” da noção de binariedade na definição do princípio de marcação, preferindo vê-lo numa perspectiva escalar, visto que, em determinadas línguas, as formas não podem ser tomadas dentro de um parâmetro estritamente dicotômico. Para sustentar sua posição, argumenta que há línguas em que a noção de número é definida por outras categorias além de singular e plural (o dual e o trial, por exemplo). Desse modo, um mesmo valor pode ser marcado em relação a outro, mas não-marcado se comparado a um terceiro diferente daquele. A mesma opinião encontramos em Votre (1994), Oliveira (1997), Furtado da Cunha (2000), Silva (2000) quando afirmam que este princípio precisa ser enearizado, para dar conta dos vários graus de marcação de que se utilizam os falantes da língua.

Givón (1995) corrobora essa visão, admitindo que uma mesma estrutura pode ser marcada num contexto e não-marcada em outro, e que, dessa forma, a marcação é um fenômeno dependente do contexto, devendo ser explicada, pois, com base em fatores comunicativos, socioculturais, cognitivos ou biológicos. Para exemplificar, mostra que a tendência para a inserção do agente como sujeito e tópico da oração transitiva, que representa o caso não-marcado, provavelmente reflete uma norma cultural de falar egocentricamente mais sobre seres humanos do que a respeito de objetos inanimados.

Acrescenta ainda o mesmo autor que a marcação não se limita às categorias linguísticas, mas pode estender-se a outros fenômenos, como a distinção entre o discurso formal e a conversação espontânea. Uma vez que trata de assuntos mais abstratos e complexos, o discurso formal é mais marcado em relação à conversação informal, que é cognitivamente processada com mais rapidez e facilidade, por referir-se, em geral, a assuntos comuns e fisicamente perceptíveis do cotidiano social.

Para exemplificar o princípio da marcação, tomemos o contraste entre afirmação e negação. Conforme demonstra Furtado da Cunha (2000), a oração negativa, além de menos frequente, nos textos, que a afirmativa, é estruturalmente mais complexa por envolver, pelo menos, um morfema a mais que a afirmativa; além disso, no plano do conteúdo, a negação supõe um pressuposto, visto que a oração negativa contradiz uma asserção previamente mencionada no contexto discursivo ou a expectativa do interlocutor, ou seja, a sua crença na afirmativa correspondente, sendo, pois, mais complexa cognitivamente. Vejamos, então, as seguintes ocorrências para melhor entendimento:

(27) ... a nova regente ... ela não tava sabendo reger direito ... a regente do coral... tava errando lá um monte de coisas... né?... (Corpus D&G Natal, língua falada, ensino médio, p. 278)

(27a) ... a nova regente ... ela tava sabendo reger direito ...

Podemos observar que a construção destacada em (27) implica maior complexidade estrutural que a sua correspondente afirmativa, presente em (27a), ou melhor, é maior que esta, envolvendo um morfema a mais, no caso a partícula não. Além disso, a frequência com que (27) ocorre é bem inferior às aparições da estrutura mostrada em (27a). Cognitivamente, a primeira é mais complexa que a outra já que implica um pressuposto e simultaneamente a quebra de uma expectativa: a ideia de uma regente – que deveria reger

– mas que não o fazia adequadamente. Naturalmente, o processamento dessas informações demanda maior esforço por parte do interlocutor.

Por outro lado, é preciso considerar que nem todo aumento na estrutura de uma oração implica uma maior demanda cognitiva para sua produção e entendimento. Foi o que pudemos constatar com a investigação a que procedemos sobre o uso das relativas copiadoras (BISPO, 2003). Analisemos os exemplos (28) e (28a) para verificar o que dissemos.

(28) “... depois das sete e quinze ninguém entrava mais ... só saía de dez e quinze ... então nós tínhamos um professor que nós não gostávamos dele ... era um professor de mecanografia e ele era louco...” (Corpus D&G Natal, língua falada, ensino superior, p. 51)

(28a) ...então nós tínhamos um professor de quem não gostávamos ... era um professor de mecanografia ...

Notemos que a construção da relativa em (28), apesar de dimensão estrutural superior à estrutura padrão, presente em (28a), já que implica a presença do pronome cópia, envolve menor esforço cognitivo, tanto para elaboração quanto para entendimento, do que este último. A maior complexidade cognitiva de (28a) deve-se essencialmente a dois fatores sintáticos: primeiro, à anteposição do elemento preposicional ao relativo; segundo, à dificuldade do reconhecimento do papel sintático do relativo, já que este funciona como complemento de verbo posposto a ele.

Nesse sentido, o princípio de marcação poderia não vir a dar conta de um dado fenômeno linguístico, pelo menos no que tange ao subprincípio da complexidade cognitiva, justamente por prever uma relação direta entre complexidade estrutural e complexidade cognitiva.