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Dos princípios e categorias do funcionalismo, utilizamos, na análise dos dados deste trabalho, os princípios de iconicidade, marcação e expressividade como forma de dar conta da ocorrência de um tipo especial de construção da oração relativa.

O termo iconicidade, em linguística, é definido como a correlação natural entre a expressão linguística e seu conteúdo. Os linguistas funcionais sustentam a ideia de que a estrutura da língua reflete, de algum modo, a estrutura da experiência (FURTADO DA CUNHA et al., 2003). Dessa forma, uma vez que a linguagem é uma faculdade humana, a suposição geral é que a estrutura linguística revela as propriedades da conceitualização humana do mundo ou as propriedades da mente humana.

As discussões sobre essa questão, porém, não são recentes. A investigação acerca da motivação entre conteúdo e expressão remonta à antiguidade clássica, com a famosa polêmica entre os filósofos gregos a respeito dos fenômenos que regiam o código linguístico, dividindo-os em convencionalistas e naturalistas. Aos primeiros coube a defesa de que tudo na língua era convencional, mero resultado do costume e da tradição; enquanto os naturalistas sustentavam que as palavras eram apropriadas, por natureza, ao que designavam.

Essas especulações filosóficas tiveram seus desdobramentos no debate posterior entre “analogistas” e “anomalistas” a respeito da (ir)regularidade da estrutura linguística. Os primeiros sustentavam que a língua era essencialmente sistemática e regular; já os outros se opunham a essa visão, com base nas evidências de homonímia e polissemia, ou ainda nos casos em que determinadas formas fugiam a qualquer previsão paradigmática, concluindo, então, que as estruturas resultavam do arbítrio social.

Essa controvérsia foi retomada, no início do século XX, por Saussure, que se posiciona favoravelmente à concepção convencionalista, reafirmando o caráter arbitrário da língua, isto é, que não existe relação natural entre a “imagem acústica” do signo linguístico (o significante) e aquilo que ele evoca conceptualmente (o significado).

Furtado da Cunha et al. (2003) registra, entretanto, a possibilidade de esses pares de oposição não serem equivalentes, conforme posto a seguir:

Não parece haver uma correspondência estrita entre naturalistas x convencionalistas, por um lado, e analogistas x anomalistas, de outro. Apesar de algumas afinidades, eles tinham preocupações distintas e, de certa forma, independentes. Enquanto naturalistas e convencionalistas discutiam a relação entre as ‘coisas do mundo’ e suas designações, analogistas e anomalistas discutiam as regularidades do sistema lingüístico. (p. 30)

Pierce (1940) discorda parcialmente da ideia de total arbitrariedade, recuperando, em certa medida, a posição adotada pelos antigos naturalistas e conjugando-a à visão dos convencionalistas. Segundo ele, a sintaxe das línguas naturais não é totalmente arbitrária, e sim isomórfica ao seu designatum mental. Esse isomorfismo (i.e., correlação entre forma e função) da sintaxe não é, porém, absoluto, mas moderado. Isso significa que, na codificação sintática, princípios icônicos (cognitivamente motivados) interagem com princípios mais simbólicos (cognitivamente arbitrários), os quais respondem pelas regras convencionais.

O mesmo filósofo estabeleceu dois tipos de iconicidade: a imagética e a diagramática. A primeira refere-se à estreita relação entre um item e seu referente, no sentido de um espelhar a imagem do outro (como é o caso das estátuas, pinturas, por exemplo); já a segunda diz respeito a um arranjo icônico de signos, sem necessária intersemelhança.

O isomorfismo linguístico tem sua face radical revelada com Bolinger (1977), ao postular que a condição natural da língua é preservar uma forma para um sentido, e vice- versa. Desse modo, em sua versão mais forte, o princípio da iconicidade admitia a hipótese de que a língua reflete a função que exerce e é restringida por ela, aproximando-se do conceito matemático de “função”, que implica uma relação biunívoca entre dois domínios (no caso da língua, a correspondência forma-função).

Por outro lado, estudos sobre os processos de variação e mudança linguísticas levaram à reformulação dessa versão forte, por meio da constatação da existência de mais de uma forma de dizer “a mesma coisa”. Assim, podemos encontrar correlação entre uma

forma e várias funções, ou entre uma função e várias formas. O uso do sufixo inho exemplifica o primeiro caso: além de indicar tamanho diminuto, como em janelinha; pode também marcar afetividade, como em filhinho; pejoratividade, como em professorzinho; ou ainda valor de superlativo, como em devagarzinho. A segunda situação pode ser ilustrada pela ideia de superlativo, que pode ser codificada através de vários recursos morfossintáticos, como mostram os termos bem idoso, superformal e pequenininho, respectivamente, por meio de advérbio intensificador, prefixo e sufixo de intensificação.

Nesse sentido, existem na língua determinadas estruturas que mantêm uma correlação aproximada com o sentido que elas designam (ou o seu caráter funcional), sendo, pois, perceptível a associação entre expressão e conteúdo. Em contrapartida, porém, há casos em que essa relação não é nítida ou não se verifica, revelando-se arbitrária e impossibilitando o estabelecimento da conexão entre forma e função. Ou seja, tomadas sincronicamente, determinadas estruturas exibem um elevado grau de opacidade em comparação com os papéis que desempenham.

É necessário, pois, tomar esse princípio numa perspectiva mais moderada, de um continuum, de modo a se adaptar melhor à concepção de língua como uma estrutura fluida, no sentido de ser resultante de fatores que envolvem, ao mesmo tempo, motivação e arbitrariedade.

Em sua versão mais branda, o princípio da iconicidade se manifesta em três subprincípios, que se relacionam à quantidade de informação, ao grau de integração dos constituintes da expressão e do conteúdo e à ordenação linear dos segmentos.

De acordo com o subprincípio da quantidade, quanto maior for o volume de informação a ser transmitida, maior será a quantidade de forma em que essa informação é codificada linguisticamente; e quanto mais nova (imprevisível) for a informação, maior será a quantidade de forma a ser utilizada. Isso significa que a complexidade de pensamento tende a refletir-se na complexidade de expressão (SLOBIN, 1980), ou seja, aquilo que é mais simples e esperado expressa-se com o mecanismo morfológico e gramatical menos complexo.

Nesses termos, o subprincípio da quantidade aparenta transparência no sentido de dar conta da função informativa da codificação linguística, conforme nota Votre (1994). Apresentamos, a seguir, um exemplo que o autor utiliza para esse subprincípio, numa narrativa sobre um presente paterno:

Quando eu tinha uns dois ou três anos, meu pai chegou em casa do trabalho à noite e falou para mim que tinha uma surpresa. Aí ... ele me deu um pacote, eu abri, e era um cachorrinho de borracha, desses que a gente aperta e faz barulho.

Observando os trechos destacados, podemos notar que, no primeiro caso, o sujeito da forma verbal falou (meu pai) foi representado pela anáfora zero, por se tratar de uma informação dada, conhecida, previsível; já na segunda situação, os elementos linguísticos utilizados para caracterizar o presente/brinquedo são vários, justamente porque codificam informação nova, mais pesada, imprevisível e mais importante.

Esse emparelhamento entre o aumento da forma linguística e do conteúdo correspondente também pode ser observado no caso das orações relativas. Ao ser acrescentada à oração principal, a relativa implica, naturalmente, a presença de mais material linguístico, bem como a introdução de informação nova ao período, como podemos observar em (22), a seguir.

(22) “De acordo com um levantamento da Trevisan, as empresas que trabalham em setores mais competitivos conseguiram reduzir seus preços entre 15% e 22% nos últimos dois anos.” (NEVES, 2000, p. 375)

(22a) De acordo com um levantamento da Trevisan, as empresas conseguiram reduzir seus preços entre 15% e 22% nos últimos dois anos.

Percebemos que (22) possui não apenas maior extensão morfossintática que (22a), como também apresenta, do ponto de vista semântico-proposicional, mais informação, a saber: o pressuposto de que nem todas as empresas conseguiram a redução de seus preços nos percentuais e período indicados, além de especificar quais conseguiram tal façanha.

O subprincípio da proximidade, por sua vez, prevê que os conceitos mais integrados no plano cognitivo também se apresentam com maior grau de ligação morfossintática. Por oposição, os conceitos que se acham menos integrados no plano do conteúdo tendem a estar menos integrados também no plano da codificação morfossintática. Bybee (2003) corrobora essa ideia, afirmando que “elementos que estão semanticamente juntos tendem a vir próximos um do outro na cláusula.”

Uma demonstração desse princípio pode ser observada no nível de integração forte que há entre verbo e objeto, na maioria das línguas do mundo, e que resulta em ordenações do tipo SVO, VOS, SOV, mas dificilmente VSO ou OSV. Como ilustração, podemos citar

a restrição que há, em inglês, impedindo a presença de um advérbio entre o verbo e o objeto, como a construção abaixo, corrigida em (23):

* I saw yesterday Mary. (23) I saw Mary yesterday.

Em termos de construção relativa, podemos observar a maior ou menor integração sintático-semântica da subordinada em relação à oração principal, conforme o conteúdo por ela veiculado tenha maior ou menor grau de importância para a cláusula matriz10. Assim, quando a informação contida na relativa se mostra mais necessária ao sintagma nominal a que ela se vincula, há um grau mais elevado de aderência morfossintática na codificação linguística, o que se dá por meio da eliminação de material interveniente (determinante, marcador discursivo, pausa, etc.) entre o SN antecedente e o elemento introdutor da relativa. Observemos os exemplos (24) e (25) para que confirmemos o que foi dito.

(24) “... todo mundo via que ele saía ... aí todo mundo que tava escondido voltava de uma vez ... porque era o lugar nos mato aí dava pra se esconder ...” (Corpus D&G Natal, língua falada, ensino superior, p. 81)

(25) “... eu vou descrever a ... a UNIPEC né ... onde eu passo ... eu passo o dia todo em casa e eu ... o melhor lugar que acho pra ...o melhor lugar que eu passo durante o dia ... quando eu saio é na ...na ... lá na ... na faculdade mesmo ... onde eu tenho meus amigos lá e tudo ... é a UNIPEC ...” (Corpus D&G Natal, língua falada, ensino superior, p. 35)

Notemos que, em (24), a relativa que tava escondido se liga diretamente ao antecedente todo mundo, sem a presença de qualquer elemento entre eles ou mesmo pausa, a qual é bastante comum na oralidade, como é o caso desse exemplo. Essa proximidade na cadeia morfossintática corresponde à maior vinculação no plano do conteúdo, pois a oração relativa em questão é essencial à caracterização do sintagma nominal a que ela se refere, já que especifica/limita/restringe para o ouvinte que grupo

10 Empregamos o termo cláusula, neste trabalho, para designar a oração simples, seja ela principal ou subordinada. Assim, oração simples e cláusula serão tomadas aqui como sinônimas. Já o termo cláusula

realmente a expressão todo mundo representa, ou seja, informa quem efetivamente “voltava de uma vez”.

No exemplo (25), porém, o antecedente do relativo (faculdade) está distanciado do pronome, havendo entre eles não só a inserção de um termo (no caso, mesmo), mas também a presença de uma pausa, assinalada na transcrição pelo uso das reticências. Esse distanciamento na expressão reflete uma menor proximidade no âmbito do conteúdo, visto que a informação contida na oração onde eu tenho meus amigos lá e tudo não se mostra decisiva para a caracterização do termo antecedente (faculdade), pois ele fora nomeado anteriormente (UNIPEC), ou seja, o interlocutor já sabia de que faculdade se tratava.

O subprincípio da ordenação linear estabelece que os constituintes se ordenam, no tempo e no espaço, conforme pressões cognitivas, de modo que a informação mais relevante tende a ser posta em primeiro lugar (ou seja, antes, na fala; ou à esquerda, na escrita), assim como tende a aparecer em primeiro lugar a informação mais previsível e mais tópica. Ainda segundo esse subprincípio, a ordem das orações no discurso frequentemente segue a sequência temporal em que os eventos acontecem na realidade.

Para ilustrar esse subprincípio, tomemos a frase “Vim, vi e venci” – exemplo clássico do princípio de iconicidade – na qual a distribuição das palavras na cláusula corresponde fielmente à sequência cronológica das ações descritas. Um outro exemplo para esse subprincípio pode ser o trecho mostrado em (26), no qual o informante inicia sua narrativa pessoal sobre um acidente de que ele e sua família foram vítimas, no retorno de sua viagem de Pium a Natal-RN.

(26) Fui pela manhã e quando cheguei lá o pessoal tomou umas cervejas o dia todo, quando foi à tarde, quase à noite nós saímos de Pium e quando vínhamos na BR 101 próximo à fábrica da Soriedem aconteceu o acidente. (Corpus D&G Natal, língua escrita, ensino superior, p. 44)

Observemos que a sequência das orações no período corresponde à ordenação cronológica dos acontecimentos referidos.

Em direção oposta à do princípio de iconicidade está a tendência em economizar esforço, referida por Zipf (1935 apud HAIMAN, 1985, p. 167) ao observar que “alta frequência é a causa de pequeno tamanho”, o equivale a dizer que o que é familiar, nas línguas, recebe expressão reduzida. Nesse sentido, a dinâmica da gramática de uma língua

natural está sujeita a pressões competidoras, oscilando entre motivações que ora concorrem para maior clareza, expressividade, ora atendem a necessidades de eficiência e economia.

Nessa perspectiva, discutimos as estratégias de relativização no português brasileiro, padrão e não-padrão (copiadora e cortadora), com ênfase nesta última, de modo a elucidar, entre outras questões, a natureza da motivação que leva o usuário da língua a optar pelas do segundo tipo em detrimento da forma padrão de organização da oração relativa. Conforme mostraremos mais detalhadamente no próximo capítulo, a estratégia copiadora parece relacionar-se com a necessidade de maior clareza, expressividade, ao passo que a cortadora parece responder a uma pressão por economia de esforço.