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Controlled Substance Key Painting, Damien Hirst,

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convencionados.

A vocação cultural do homem reside, de acordo com a visão semiótica, na capacidade do sujeito fabricar um hipercódigo28 a partir da experiência, de reunir e interligar todos os códigos num sistema global de signifi cações29, para através dele formar o que para si é a realidade30. Ao repetir amanhã o código formado hoje31, passa-se a relacionar com outros códigos, sistematicamente32.

1.4 História

Quando mencionámos a memória extra-orgânica33, referíamo-nos à capacidade ancestral do homem, distinto dos outros animais, de acrescentar peças ao seu aparelho físicono sentido de o potenciar, facilitando, nomeadamente, a procura de alimento e a defesa contra as intempéries34. Através desta capacidade, Barilli apresenta-nos a sua própria noção de cultura35: em primeiro lugar, enquanto esfera da tecnicidade36, ligada à produção de próteses e até ao cultivo dos campos37, em segundo, enquanto processo, não só de fabricar essas próteses mas de as pensar, de as melhorar. Em suma, de as fazer variar no tempo38. A cultura, segundo Barilli, estará então dividida em dois estratos39 - um material e outro ideal40 - o primeiro, relativo à técnica e ao instrumento41, o segundo relativo à investigação e à experimentação42. Através do registo sequencial das inovações dos objectos produzidos, o homem vai fabricando uma espécie de segunda memória que, para além do código genético, se prolonga para lá da sua própria vida, sendo assumida e retomada pelos seus sucessores43. Falamos de uma espécie de memória, uma vez que os sucessores a retomam a partir das interpretações que fazem da sua actualidade44, e às quais introduzem pequenas variações, em função das necessidades e meios à sua disposição.

Quando identifi camos essas variações e as localizamos num momento determinado dessa sequência, somos capazes de documentar uma história45 do homem. Como identifi camos essas variações? Através dos objectos com que nos deparamos no presente, e que remetemos a um passado, mediante o qual se procura “reconstituir” o contexto que lhes deu origem46. E se reconstituímos, reconstruímos, representamos. Será, pois, sempre a partir de um aqui e agora, de uma condição subjectiva, que transformamos os signifi cados iniciais desses objectos, actualizando-os. Porque antes de serem uma coisa histórica47, o que o historiador vê, primeiramente48, são objectos que partilham com ele um presente, objectos que, só secundariamente49, ele associa ao mundo de que fi zeram parte50. A historicidade do objecto é atribuída pelo sujeito, sendo que este vive imerso num perpétuo fl uxo de acontecimentos51, numa incessante sucessão de horizontes52 que implica uma reorganização, uma nova representação dos acontecimentos anteriores. A continuidade

histórica objectiva (contida pelos objectos) está, portanto, comprometida, uma vez que depende de um sujeito53. O passado é construído no presente, a partir do agora em que o sujeito também se constitui. Se podemos falar de uma história para a consciência, não será apenas porque existe tempo para a consciência, mas porque a consciência é tempo, que esta constitui e se desdobra a partir de cada presente54.

Ao interpretante, ou historiador, é dado “o privilégio de decidir como defi nir e separar continuidades” 55, de relacionar os objectos através de traços comuns que se repetem, a ponto de serem agrupados em séries ou sequências56, quer sejam, respectivamente, agrupamentos fechados ou abertos. Embora George Kubler se dedique, em especial, ao estudo de obras de arte, o seu agrupamento por classes formais é extensível também a instrumentos e utensílios. Para o autor, aquilo que vincula um grupo de objectos a uma série ou sequência é a sua correspondência a um problema consciente57, a uma necessidade comum para a qual diferentes objectos propõem uma solução58.

Uma classe de formas “existe enquanto ideia” e assume-se como uma generalização, inevitável, face à complexidade que cada objecto isolado apresenta e à impossibilidade de o classifi car se o considerarmos enquanto acontecimento único59.

Repare-se que Kubler reitera a consciência do problema para considerar que este existe, o que nos aproxima da intenção de Eco (que consideraremos mais adiante), condição fundamental para que ocorra um processo comunicativo60. Acontece que, no entanto, tanto a consciência como a intenção são factores imputados, respectivamente, pelo historiador e pelo destinatário que, imersos na sua própria condição cultural, revestem o objecto histórico e a mensagem com a sua própria humanidade61. Se o objecto existe no âmbito de uma subjectividade, enquanto algo-constituído-por- um-sujeito62, a classifi cação dos objectos segundo continuidades formais estará sempre inacabada, dependente da elaboração histórica por parte de um interpretante63. O sucessivo aparecimento de novos objectos, à imagem do aparecimento de obras de arte, obriga a uma reavaliaçãodos objectos anteriores64.

41 15. Baldaquino da catedral de La Paz,

Fotografi a do autor, 2012.

como que adormecido69, aguardando por alguém que o descubra, alguém que o desperte e o signifi que. E o transforme, por fi m, em signo70.

O sinal será então como uma emissão que viajou no tempo até à actualidade, até um destinatário que, no tempo presente, a recebe, tal como a luz libertada pela sua implosão nos assinala uma estrela que outrora existiu. Observando o modelo elementar (fi g. 16) descrito por Eco71, fazemos corresponder à estrela o papel de fonte que, durante o seu processo de fusão, transmitiria um feixe luminoso – o sinal – através do espaço até ser recebido pelo olho do astrónomo, que o decifra e o interpreta. É possível que a estrela já não exista aquando da percepção do seu feixe luminoso, provocado pela extrema distância entre ambos. Nesse caso o astrónomo será contemporâneo de um sinal correspondente a uma fonte ausente, resultando na constatação de um falso estado de acontecimentos. Uma mentira72, portanto, mas que compõe um estado real de acontecimentos para o astrónomo.

É da natureza do sinal o seu apontar73 para um passado. Trata-se portanto de algo sempre

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16. Modelo comunicativo elementar,