• Nenhum resultado encontrado

27. Ornitography no 38, Xavi Bou,

2.6 Refúgio

Através do exemplo que U. Eco usa para descrever o fenómeno cultural à luz da semiótica, podemos perceber o modo como surge a correspondência entre a função e o tipo. É precisamente pelo seu carácter funcional que o autor considera difícil uma abordagem semiótica da arquitectura. Os objectos arquitectónicos, defende o autor, serão particulares não porque comunicam mas porque funcionam127.

Num outro exemplo, em que imagina o início da história da arquitectura, Eco considera a perspectiva de um homem da idade da pedra que se abriga no interior de uma caverna128 durante uma tempestade. Passada a tormenta, o homem primitivo guarda na memória aquela interioridade129 que lhe permitiu sobreviver. Cria desse modo um modelo abstracto a partir do qual cada caverna funciona como realização singular130. Uma vez capaz de transmitir grafi camente esse modelo, o homem primitivo converte assim o código arquitectónico num código icónico131, passível de ser comunicado.

Mas qual a diferença entre o exemplo usado para descrever o fenómeno cultural e aquele usado para aproximar a arquitectura da semiótica? Nos dois exemplos, conferimos a constituição de um tipo que possibilita o reconhecimento de espécimes. A julgar pelo primeiro exemplo observamos que esta constituição será particular ao fenómeno cultural e a qualquer formação sígnica, e não necessariamente a arquitectónica. Por outro lado, se considerarmos que o exemplo acima descrito ilustra a formação de um modelo arquitectónico, simplesmente por se tratar de uma caverna (pressuposta como objecto arquitectónico), estaríamos perante uma signifi cação não constituída subjectivamente. Nesse caso, o signo arquitectónico distinguir-se-ia dos demais

75

signos pela sua relação a um referente por si – em-si – arquitectónico, o que vimos132 tratar-se uma impossibilidade133. Como verifi cámos, as categorias e os tipos com que um sujeito ou uma sociedade disseca o mundo não estão no mundo.

O código arquitectónico, continua Eco, emerge da construção semiótica do homem primitivo, ao atribuir à caverna a qualidade de refúgio134. A signifi cação arquitectónica de um objecto funda-se assim numa denotação135 funcional136: da mesma maneira que a caverna signifi ca a possibilidade de refúgio, a porta signifi cará a possibilidade de entrada, a escada a possibilidade de subida137, etc. No entanto, Eco observa igualmente que a função do signo arquitectónico não está limitada à sua denotação funcional, mas engloba também uma função secundária, ligada a uma conotação simbólica que amplia o seu signifi cado: “a gruta de que falávamos (…) conotava a função de «refúgio», mas com o tempo também conotou «família», «núcleo comunitário», «segurança», etc.”138 Partindo desta observação diríamos que as signifi cações de uma gruta e de um palácio assemelhar-se- ão quanto às suas denotações funcionais, enquanto «possibilidades de refúgio», mas distinguir- se-ão pelas suas conotações simbólicas, isto se avaliarmos a primeira como «possibilidade de refúgio primitivo» e a segunda como «possibilidade de refúgio nobre». Estas signifi cações estão naturalmente dependentes de uma convenção.

2.7 Função

A defi nição semiótica do objecto arquitectónico parece começar por relacioná-lo com uma função. Vista em termos comunicativos, a função será aquilo que me predispõe para o uso139, mesmo nos casos em que esse uso não se concretize. O sujeito que encontra uma escada reconhecê-la-á como uma possibilidade de subida porque consegue imaginar-se a subi-la140, mesmo que não o faça. Se a escada o predispõe para o uso será porque lhe assinala essa possibilidade de uso, isto é, porque lhe comunica a sua função141. Falamos aqui de comunicação porque aceitamos que uma função é codifi cada pela forma do seu objecto. Porém, no caso da caverna não podemos falar propriamente de comunicação - pelo menos não no sentido em que falamos quando nos referimos à escada -, uma porque não lhe atribuímos nenhuma intenção comunicativa, uma vez que não atribuímos a alguém a intenção de designar, para aquele espaço, a função de refúgio. Quem atribuiu essa função à caverna foi o homem primitivo que nela procurou refúgio, o que nos permite apenas falar de signifi cação.

À luz do que aprendemos sobre o processo comunicativo, se aceitarmos que o objecto codifi ca a função a que se destina, aceitamos também que a realização dessa mesma função (entendida como função codifi cada) estará dependente de uma consonância entre aquele que codifi ca a função

(aquele que criou o objecto) e aquele que a descodifi ca (aquele que utiliza o objecto), por meio do código que determinou a sua forma. Do mesmo modo, teremos de aceitar que há casos em que tal consonância não existe, seja porque a forma não deixa transparecer o código que lhe deu origem, seja porque as denotações funcionais e/ou conotações simbólicas iniciais desapareceram142, uma vez que as sucessivas alterações contextuais e circunstanciais entre grupos humanos alteraram a leitura dos mesmos objectos. Considerando a perspectiva de Kubler, podemos compreender cada forma em correspondência com um problema ou necessidade conscientes143. A alteração das denotações e conotações de um objecto corresponderá portanto à transformação dos problemas e/ou necessidades que um sujeito ou grupo humano projectam sobre o mundo. A signifi cação funcional ocorrerá quando um sujeito aplica o objecto a um esquema funcional144, quando o reconhece como um meio para a resolução de um problema. Condição que difi cilmente se estende aos casos em que a função não se refere ao uso estrito, nomeadamente ao das artes plásticas, cujas obras são desprovidas de uma denotação funcional, restritas que estão à conotação simbólica145. Porém, se analisarmos a função da arte sob um ponto de vista comunicacional (apesar das particularidades que já descrevemos), podemos admitir que a obra de arte corresponde a uma necessidade comunicativa146. Lembramos que Lewis Mumford distinguia as signifi cações da arte das signifi cações da ciência e da técnica ao considerar que as primeiras nasciam de uma necessidade específi ca do homem, a de partilhar “os profundos mananciais subterrâneos da sua experiência”147 e de permitirem-lhe “criar para si próprio, para além de qualquer exigência da mera sobrevivência animal, um mundo válido e pleno de signifi cado”148. As artes, afi rma Mumford, repousam na capacidade ancestral do homem de criar símbolos, concluindo que a função comunicativa precede a função de trabalho, tendo “um signifi cado de muito maior importância para o desenvolvimento da sociedade humana”149. Mesmo sem subscrever o argumento e juízo do autor americano, e sem nos restringirmos ao caso particular das artes plásticas, podemos reconhecer a importância da conotação simbólica em objectos com uma denotação funcional. Veja-se o exemplo do trono150, em que a função simbólica é essencial ao próprio objecto, como confi rma a raiz etimológica do termo que o designa. À luz de uma necessidade comunicativa, vemos tanta utilidade nas denotações funcionais como nas conotações

77 30. Violin Bar Case,

n/d, n/d.

comunica? O princípio de que a forma segue a função parece indicar-nos que sim, que “a forma do objecto não deve somente tornar possível a sua função, mas também denotá-la de uma maneira tão clara que se torne evidente e fácil”152.

De que modo é que o objecto comunica a sua função? Pela sua forma, diríamos, uma vez que é através dela que associamos o conteúdo153 a uma expressão. Diante do objecto - de um signifi cante - o sujeito lê o seu semema, ou conjunto hierarquizado de signifi cados possíveis (denotações e conotações154) de acordo com o seu grau de probabilidade. O potencial comunicativo de um signifi cante reside, por isso, no semema que este transporta consigo, funcionando como o conjunto nebuloso de signifi cados a que vários códigos o associam, e no qual as denotações funcionais estão integradas. Por seu lado, é a leitura circunstancial e contextual155(fi g. 31) que estrutura esse semema de acordo com os signifi cados mais prováveis. Uma vez que cada sujeito é relativamente livre de organizar um semema respectivo para cada signifi cante, em cada situação particular o objecto recebe um sentido156 autónomo do signifi cado previsto pelo processo comunicativo. Por esse motivo é que a função inicialmente concebida pelo fabricante para o objecto pode não ser reconhecidapor outro sujeito157, quando a inscrição do utilizador e objecto no esquema funcional previsto não ocorre. Nesse caso poderemos considerar que o propósito inicial desse objecto funcional – visto enquanto tipo particular de objecto – não foi cumprido, uma vez que não foi prevista a cumplicidade158 entre objecto e utilizador. A cumplicidade ocorre tanto no caso da caverna (em que não reconhecemos uma intenção comunicativa), como no caso da escada (em que reconhecemos essa intenção) porque, em primeiro lugar, ambos são contemporâneos159, e porque, por um lado, o objecto ofereceu-se ao uso e porque, por outro, o sujeito assumiu o seu papel de usuário160, ou utilizador. No caso da escada, contudo, reconhecemos uma segunda cumplicidade, neste caso entre utilizador e fabricante ou, mais concretamente, projectista. O projectista será aquele que tenta prever161 uma determinada leitura por parte do utilizador, ao atribuir uma forma ao objecto que concebe. Prevê essa relação baseando-se no sistema de signos que julga partilhar com o utilizador. Partindo de uma perspectiva semiótica, observamos que o projectista atravessa o semema no sentido contrário ao do utilizador. Enquanto o utilizador parte de um signifi cante para chegar às suas conotações mais vastas, viajando no sentido da

79

nos como uma sobredeterminação de leituras possíveis, cada uma dependente de um contexto e circunstância163 e, sobretudo, de um destinatário.

Como pudemos extrair da análise do processo comunicativo, a transmissão da informação é determinada por vários aspectos. Em primeiro lugar, a convenção – ou o código, que determina a atribuição de forma por parte do projectista – é, em rigor, uma convenção por ele representada, não sendo por isso defi nida absolutamente. Do mesmo ponto de vista, também o destinatário lança uma visão própria sobre a mesma convenção, convertendo-a numa mensagem inevitavelmente subjectiva. Em segundo lugar, a intenção subjacente à emissão de uma mensagem não tem necessariamente que eliminar a sobredeterminação que referimos mas preferir a conservação de um certo estado de ambiguidade, como no caso da mensagem artística. Em terceiro lugar – e este aspecto parece-nos fundamental para a caracterização do arquitecto - uma mensagem refere-se muitas vezes a uma subcultura, cuja compreensão requer a aprendizagem de um 31. Modelo Semântico Reformulado,

Umberto Eco, 1976.

código específi co. Referindo-se a esta aprendizagem, Gorjão Jorge recorre ao exemplo do instrumento técnico164, colocando em causa a competência do sujeito para usar o instrumento em conformidade com o esquema funcional previsto por aquele que o desenhou. De acordo com essa conformidade, o sujeito precisará de adoptar um “comportamento técnico que o habilita a usar plenamente o objecto”165, isto é, de se constituir como seu usuário. Um avião não será a mesma coisa, continua Gorjão Jorge, “para um piloto experimentado ou para o passageiro comum, ainda que ambos a designem pelo mesmo nome”166.