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CAPÍTULO 4: LIMITES E POSSIBILIDADES PARA A GESTÃO

4.5 Envelhecimento e o Contexto Sociofamiliar na Região de Pirituba/Perus

4.5.2 Convívio familiar e comunitário, um direito ou uma obrigação?

O convívio familiar e comunitário estabelecido na legislação social brasileira, é repleto de contradições, pois, ao mesmo tempo que é definido como um direito, é também utilizado como um mecanismo para punição das famílias.

Recorremos a Teixeira (2012, p. 115-116) para salientar que os paradoxos da centralidade da família nas políticas sociais tornam-se mais evidentes quando a família “ora é tomada como sujeito de direitos e merecedora de proteção social, ora como agente dessa proteção social e provedora de assistência e cuidado aos seus membros”.

Conforme abordado no capítulo 2, o “familismo” centraliza na família a responsabilidade pela proteção social a seus membros no intuito da redução de gastos sociais. Baseia-se em um modelo padronizado de família, que desconsidera as mudanças ocorridas nos arranjos familiares na contemporaneidade.

Assim, há uma sobrecarga para as famílias, especialmente para as mulheres, tendo em vista que alguns papéis são sustentados culturalmente no cerne das relações familiares, e que a tarefa de cuidar acaba sendo desempenhada por meio do trabalho – “não pago”42– da mulher.

Tal panorama reflete-se no cotidiano dos serviços e pode representar uma armadilha para os profissionais que basearem suas atuações exclusivamente na aplicabilidade da lei – que é conservadora.

Utilizamos a expressão armadilha, pois, no cotidiano de atendimento direto aos usuários das políticas sociais, os profissionais são chamados a dar respostas, na maioria das vezes, imediatas, e em virtude do “familismo”, bem como de não haver alternativas para o atendimento à população idosa com dependência, alguns profissionais acabam por reforçar a responsabilização das famílias quanto ao provimento do cuidado.

Exemplificando com o relato da Usuária 6:

No início deste ano [2014], eu estava muito cansada, um estresse muito grande [a usuária cita o acompanhamento que realiza ao seu companheiro, depois que ele sofreu um AVC, há 2 anos]. [...] e cansada de olhar o meu marido, sabe. Também tinha alguns exames que nunca conseguia ir fazer [...], então, liguei naquele serviço do CRAS e perguntei se não teria um lugar do Estado que pudesse atendê-lo por uns dez dias, enquanto eu fazia os meus exames e descansava um pouco. Mas ainda bem que eu só liguei, porque a moça que atendeu, quase bateu o telefone na minha cara, falou que quem tem que cuidar de doente é a família. Também não sei qual foi a pessoa que atendeu, e acabei deixando para lá (Usuária 6, entrevista. Grifos nossos).

Salientamos que esse tipo de resposta não se restringe ao atendimento de uma ou outra secretaria, pois, além de ser um reflexo do “familismo”, tais abordagens (realizadas com mais ou com menos sutileza), também podem ser decorrência da falta ou da insuficiência de criticidade social a respeito da realidade na qual as famílias e/ou as pessoas idosas estão inseridas.

Foge, ao alcance desta pesquisa, uma análise aprofundada acerca do conservadorismo nas UBSs, nos CRASs, CREASs, dentre outros serviços que realizam atendimentos à população.

No entanto, é essencial apontar brevemente alguns desses posicionamentos, para um melhor embasamento acerca da precariedade constatada na rede de serviços no atendimento às pessoas idosas.

Conforme aponta a Técnica 6 do CREAS A, a única opção possível de ser adotada frente à falta de alternativas para o atendimento à população idosa com dependência acaba sendo a “procura pela família”.

Exemplificando com o seu relato:

[...] Nós, enquanto profissionais que buscamos a garantia dos direitos dos usuários, precisamos conversar com a família e falar: Olha, você não é obrigado a conviver com esse idoso, mas deve propiciar o mínimo de bem- estar para ele (Técnica 6, do CREAS A, entrevista).

No mesmo discurso:

Já aconteceu de termos que explicar para a família que eles poderiam burlar a lei, mas que, fazendo isso, estariam cometendo um crime [...] Não é questão de eu quero. Primeiramente, a obrigação é da família. [...] Então, o poder público só intervém quando não tem família, ou quando o idoso sofre violência (Técnica 6, do CREAS A, entrevista. Grifos nossos).

Atendi o caso de uma família que não tinha noção que estava sendo negligente. Tratava-se de um idoso que era bem turrão. Os filhos até iam na casa dele, e ele os mandava embora, queria ser independente - na verdade. Até que, em dado momento, os filhos o deixaram ser independente. Só que, nessa de ser independente, ele sofreu uma queda e acabou tendo um ferimento na perna, e, em decorrência do diabetes [que não estava sendo controlado] a lesão se agravou e ele teve essa perna amputada e depois de um tempo veio a falecer. [...] No período em que ele estava internado, conversei com os filhos [...] e, no decorrer da conversa, eu disse que a família de certa forma foi negligente, porque tudo bem, vamos respeitar a decisão dele, mas também não deveriam ter largado mão (Técnica 6, do

CREAS A).

Entendemos que o poder público também é responsável pelo acompanhamento e proteção da saúde daquele idoso, e que não cumpriu o seu papel.

Aquele usuário recebeu algum atendimento no domicílio, por parte de uma UBS de Ação Programática, ou de Saúde da Família43, para controlar o diabetes? A

família recebeu algum suporte do poder público para conversar, com aquela pessoa idosa, acerca da necessidade do controle do diabetes?

A profissional não tinha a informação se, na área em que está localizada a residência do usuário, havia o atendimento pelo PSF. No entanto, a não existência do programa não isenta a responsabilidade do poder público.

A falta de alternativas enfrentada pelos profissionais no cotidiano dos atendimentos nos serviços de UBS, CRAS e CREAS, acabam tornando inevitáveis discursos como o transcrito a seguir:

As vezes a gente precisa usar da estratégia, para tentar, não sei, sensibilizar um pouco mais a família. E acaba falando da questão judicial [...] informamos que, caso não tenhamos a colaboração da família, teremos que oficiar o Ministério Público, e que, para evitar isso, deveríamos tentar resolver por aqui [...] Mesmo sabendo que algumas vezes as famílias não têm as condições objetivas para assumir essa proteção, porque trabalham, ou porque não tem mais vínculos com aquele idoso, enfim. [...] Mas a gente acaba não tendo alternativa (Técnica 7, do CREAS B, entrevista. Grifos

nossos).

Na mesma ordem de ideias:

Às vezes, o filho vira para a gente e fala: ‘Tudo bem, já que eu vou ter que cuidar, eu cuido, mas vai ser do meu jeito!’ [...] Então, ele se sente obrigado a cuidar de uma pessoa que muitas vezes o abandonou na infância, até aí,

a gente tenta entender também o lado da família. [...] Mas a gente se questiona: Como será que vai ser esse cuidado? Porque essa obrigação de cuidar, pode acabar gerando uma situação de violência (Técnica 6, do

CREAS A, entrevista. Grifos nossos).

Ainda:

A gente tenta conversar que talvez eles não tenham o mesmo carinho, mas que precisam tentar fazer o mínimo por aquela pessoa - o mínimo que falamos é limpeza, moradia, higiene, essas coisas. E, em último caso, vamos para as vias judiciais [...]. Mas, com relação à pessoa idosa, é impressionante, quando ocorre o afastamento por um período, a família não dá importância depois. Por mais que a gente ligue para os filhos e fale que vai denunciar, não temos retorno (Técnica 3, da UBS C, entrevista. Grifos

nossos).

Se a família é a principal responsável, quais são as demais opções?

Foi unânime, entre os técnicos, o relato de que a falta de alternativas para a garantia de acesso aos direitos das pessoas idosas com dependência, faz com que seja inevitável a postura profissional voltada à questão da lei – que acaba por obrigar a família a desempenhar aquele cuidado.

Recorremos a Sierra (2011, p. 262) para apontar que vem ocorrendo um processo de “judicialização” da questão social, que se expressa tanto pela “criminalização” da pobreza, em que a justiça é utilizada como instrumento de punição das famílias e indivíduos; como também pela possibilidade de requerimento judicial (por parte de usuários e profissionais) dos direitos de cidadania, no intuito de obrigar o poder público a prover as condições para o acesso a esses direitos.

A Técnica 7, do CREAS B, relatou um caso no qual a falta de respaldo para atendimento a uma usuária idosa implicou que fosse requerido o cumprimento do papel do poder público, pelas vias judiciais, conforme o seu discurso:

Tivemos o caso de uma idosa acamada, que ainda não tem um diagnóstico definido, mas que não deambula. [...] É um caso de negligência, e ela também foi agredida pelo genro, enfim, uma situação calamitosa! [...] Tentamos conversar diversas vezes, com a filha dessa usuária, e ela sempre respondia: ‘Ela não cuidou de mim, então, porque vou cuidar dela’. [...] Até que chegou um momento em que percebemos que não existia vínculo familiar, então, pensamos em tentar a ILPI. E foram feitas todas as articulações para que ela fosse para uma ILPI. Mas, devido ao fato dessa idosa ficar muito tempo deitada, e sem ter ninguém que fizesse os cuidados [como, por exemplo, mudança de decúbito e curativos], ela estava com muitas escaras - e a ILPI não atende idoso com esse tipo de quadro. Os responsáveis pela ILPI até vieram aqui, mas chegaram à conclusão de que ela não era perfil (Técnica 7, do CREAS B, entrevista).

Novamente, a questão do “perfil”, que exclui a maioria dos idosos da possibilidade de atendimento pelas ILPIs.

Retomando o seu relato:

Na busca de alternativas, pensamos: ora, essa idosa foi vítima de violência, afinal, ela apanhou do genro, e também tem a questão do conflito familiar, é um caso de violência doméstica, vamos procurar o Centro de Cidadania da Mulher [CCM], conversar com o defensor e solicitar a ele que uma unidade de saúde interne essa mulher, até pelo menos ela se recuperar das escaras, depois tentamos novamente a ILPI. [...] Até aí deu certo, saímos do CCM, com o documento do Defensor, fomos até o Hospital Municipal e a equipe deles veio buscá-la. [...] Essa usuária ficou internada por um período de aproximadamente um mês. E, nesse período, todos os dias eu recebia uma ligação do Hospital. [...] De verdade, era uma pressão absurda!

Porque nós tínhamos que conseguir uma ILPI de qualquer jeito, que ela não deveria mais permanecer internada. Mas a ILPI não teria como atender por causa das escaras, que ainda persistiam. Então, como última saída, tentamos fazer a permuta de um idoso que estava no Centro de Convalescença do Boraceia. Colocaríamos essa idosa lá e o idoso iria para a ILPI. Assim, pelo menos a gente tiraria aquela idosa do Hospital. Olha só: a gente iria colocar a usuária num serviço que é para população em situação de rua. [...] Mas aí, o pessoal do Centro de Convalescença do Boraceia também avaliou que não tinha como, porque ela não deambula. [...] E aí a gente não sabia mais o que fazer, e o Hospital ligando e cobrando. E a gente sem mais nenhuma alternativa. [...] No final, o que acabou acontecendo: nesse intervalo, a filha ficou preocupada com a questão do documento do Defensor e do ofício que encaminhamos para o Ministério Público, então, acredito que foi o que acabou dando um peso maior. E ela acabou se propondo a colocar essa idosa em um quartinho, colocar um colchão um pouco melhor. E essa usuária voltou para a casa da filha. [...] Mas eu ainda acho que ali não é o melhor lugar para ela. E que ela não deveria estar lá! Mas para onde a gente pode encaminhar? (Técnica 7,

do CREAS B, entrevista. Grifos nossos).

Assim, mesmo recorrendo à esfera judicial, nem sempre são respeitados os direitos de cidadania, tendo em vista que a usuária retornou para um ambiente no qual já foi vítima de violência, e no qual, de acordo com a análise da Técnica 7 do CREAS B, ainda há riscos de ocorrerem novas situações de violência.

Foi frequente, entre os técnicos, o relato sobre a necessidade de encaminhar denúncias para o Ministério Público e para a Defensoria Pública, para que os usuários pudessem acessar serviços como a ILPI, por exemplo. O fato salienta a escassez das políticas sociais, que não vêm assegurando os direitos de cidadania à população idosa.

No entanto, é necessário ressaltar que a “judicialização” da questão social vem aumentando significativamente o número de ações judiciais, e sobrecarregando o Sistema Judiciário (SIERRA, 2011, p. 257).

Conforme a situação apresentada pela Técnica 7, do CREAS B, mesmo quando se recorre à esfera da justiça, na maioria das vezes a situação permanece a mesma.

A Técnica 3, da UBS C, também exemplifica: “já encaminhei vários casos para o Ministério Público, mas confesso que acabou não mudando muita coisa”.

Voltamos ao discurso da Usuária 6, para conhecimento do desfecho da situação anteriormente apresentada:

Depois da resposta do CRAS, conversei com meu filho sobre os exames que eu precisava fazer, falei que eu precisava de pelo menos dez dias, porque aí eu também conseguiria dar uma respirada, e ele concordou [...]. Ele me ajudou a pagar a Casa de Repouso. Mas só nesses dez dias a gente pagou R$ 1.500,00, e a atendente ainda deu um desconto porque nós levamos as fraldas e a medicação, se não teria ficado mais caro [...] E, assim, eu precisava mesmo, agora estou melhor, mas estava muito cansada. Nesses dois anos que eu cuido dele, foram só esses dez dias que eu tive para mim (Usuária 6, entrevista).

Entendemos que, nas políticas sociais de cunho “familista”, a adoção da centralidade da família termina por reduzir a responsabilidade do Estado quanto ao provimento de alternativas para o atendimento à população idosa com dependência, uma vez que intervém apenas na falta da família.

E, conforme os discursos dos sujeitos desta pesquisa, até mesmo nas situações em que há ou houve situação de violência, bem como quando não há vínculos familiares: “[...] muitas vezes, o único recurso acaba sendo a família mesmo” (Técnica 7, do CREAS B, entrevista).

A Técnica 6, do CREAS A, exemplifica:

Tem o caso de uma idosa, que estava internada em um Hospital da Zona Leste, ela estava inconsciente e de repente teve um lapso de memória, e falou que morava em um endereço. E como o hospital precisa liberar leitos, trouxe-a para um endereço que ela disse ser o dela – aqui próximo. Chegando no endereço, os vizinhos falaram para a equipe da ambulância, que ela já havia morado naquele endereço, mas que já tinha mudado há alguns anos. [...] Mas, segundo a pessoa que veio fazer a denúncia, ‘um vizinho resolveu assinar, porque ficou com dó’, e o hospital deixou essa senhora lá. [...] Após recebermos a denúncia, fomos fazer uma visita domiciliar e ficamos chocados! Ela estava dopada de calmantes, com um quadro de desidratação, um calor muito intenso e ela no quarto, com um monte de moscas em volta dela, e o olho dela [...] não tinha vida o olho dela [...]. Nós chamamos o SAMU [Serviço de Atendimento Móvel de Urgência], mas teve um agravamento do quadro de desidratação e ela morreu no hospital. [...] Então, você entende! Está tudo errado! Não poderiam ter deixado aquela mulher lá com aquelas pessoas que praticamente a mataram. Mas também, caso houvesse um serviço que recebesse essa

idosa, talvez a equipe do hospital não a tivesse deixado lá com aquelas pessoas que, em nosso entendimento, mataram ela (Técnica 6, do CREAS A, entrevista).

Essa falta de condições, de alternativas e de respaldo por parte das políticas sociais, para o atendimento às pessoas idosas44, provoca sentimentos de desânimo

e angústia entre os profissionais (que precisam dar respostas urgentes e necessárias, relacionadas à vida, à integridade e aos direitos dos usuários). Mas, especialmente, coloca a vida das pessoas idosas em risco, uma vez que esses usuários podem permanecer em ambientes nos quais sofrem ou já sofreram algum tipo de violência.

Assim, conforme o relato de todos os técnicos entrevistados (bem como, com a realidade empírica), as pessoas idosas permanecem com a família mesmo quando essa não é – em determinadas situações – a melhor alternativa. Isso ocorre devido à escassez da rede de serviços, pois, no que tange ao acesso às ILPIs, além do estabelecimento de um “perfil”, que exclui a maioria das pessoas idosas que necessitam do atendimento, o número de vagas é reduzido. E, com relação ao PAI, a região de Pirituba/Perus ainda não oferece essa modalidade de atendimento.

Com isso, os profissionais que atuam em UBSs, CRASs, CREASs, dentre outros serviços, ficam sem as respostas e as alternativas para o atendimento à população idosa que tem comprometimento para realizar as AVDs. E as pessoas idosas acabam não vivenciando a etapa da velhice em condições de dignidade45.

Partilhamos do posicionamento da Técnica 7, do CREAS B, quando afirma que: “quando chega algum caso de idoso vítima de violência, os profissionais viram para mim e falam: ‘e agora?’”.

4.6 Articulação Intersetorial das Políticas Sociais no Atendimento à População

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