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Convergências e divergências sobre o fazer teatral no Recife: Valdemar de

Capítulo 4: Ariano Suassuna entre o modernismo e o regionalismo: Teatro e

4.3. Convergências e divergências sobre o fazer teatral no Recife: Valdemar de

Apesar das discordâncias, tanto Valdemar de Oliveira quanto Hermilo Borba Filho compartilhavam concepções que claramente apontavam para uma relativa emancipação do fazer teatral na cena cultural da cidade. Em primeiro lugar, enfatizavam a autonomia com relação a imperativos de ordem comercial. Os grupos profissionais de teatro no país, até fins dos anos 1930, dedicavam-se quase que exclusivamente a um repertório de forte apelo comercial (TEIXEIRA, 2007). Isso significava, na maioria dos casos, a encenação recorrente de peças humorísticas ou melodramas que prezavam pela repetição de fórmulas já consagradas e de ampla aceitação do grande público. Pouco espaço havia para a produção de espetáculos que exigissem um maior apuro técnico ou formal, pois os imperativos mercadológicos impunham sérias limitações de tempo e recursos para a preparação das peças. Essa situação restritiva se constituía em um obstáculo à exploração das potencialidades da

linguagem artística, dificultando a acumulação e sistematização de saberes específicos do fazer teatral pelas companhias profissionais da época no país.

Teixeira (2007) considera que a popularização do cinema, no final dos anos 1930, contribuiu para pôr em crise o modelo de teatro comercial voltado exclusivamente ao entretenimento em todo o mundo ocidental. Observa nessa época a disseminação de grupos amadores de teatro em vários países, que tinham como objetivo principal a consolidação e a renovação de uma linguagem especificamente teatral. Em concordância, Reis afirma:

Mais livres da preocupação com a bilheteria, caberia aos amadores e aos estudantes trazerem aos espectadores brasileiros peças desses autores modernos que as companhias profissionais, em sua maioria especializadas em comédias ligeiras ou em dramalhões, ainda não tinham interesse em encenar (REIS, 2009, p.34).

Em segundo lugar, Valdemar de Oliveira e Borba Filho prezavam por um teatro que não estivesse subordinado à ingerência de questões especificamente políticas. “Hermilo sempre se manifestou contra todo tipo de censura e de interferência sobre a arte, provenientes da esquerda ou da direita”, afirma Reis (2009: 37). Oliveira, por sua vez, apesar de alinhado com as forças políticas conservadoras do estado e militante anticomunista, tinha como preocupação primordial a arte. Uma evidência disso está nas diversas montagens que o TAP produziu com textos de autores considerados “malditos” pelos mais conservadores, como Dias Gomes, Nelson Rodrigues ou o próprio Lorca.

Oliveira chegou até mesmo a criticar em Borba Filho o que julgava ser uma submissão das atividades do Teatro do Estudante a objetivos extra-artísticos: para ele o ideal de democratização do teatro em nada contribuía para o desenvolvimento da arte, servindo apenas a motivações políticas. Integrantes do TEP, por sua vez, reagiram veementemente a tal insinuação, pois de fato não concordavam com a utilização instrumental da arte para fins de doutrinação política. O que não quer dizer que não houvesse também um componente motivacional político no substrato das ações do TEP. Contudo, havia claramente uma hierarquia de valores entre o estético e político, na qual o primeiro desempenhava papel preponderante (REIS, 2009). Essa hierarquia vai tornar-se mais evidente em fins dos anos 1950, quando Borba Filho cria o Teatro Popular do Nordeste (TPN), grupo que retoma os princípios do TEP numa época em que os conflitos político-ideológicos estavam ainda mais acirrados. Sobre o envolvimento de membros do TEP com a política, Teixeira comenta:

É sabido que quase todos eles tinham uma aguda sensibilidade política, em que prevaleciam as lealdades de esquerda. É sabido, igualmente, que mais de um deles se envolveu em campanhas

políticas, como a de Pelópidas Silveira para prefeito (embora essa campanha só tenha se dado após o fim do grupo, em 1955). Mas o grupo, enquanto tal, manteve-se afastado das questões políticas. Sua arena era a artístico-cultural, e lá procurou se manter. (TEIXEIRA, 2007, p. 315)

Em suma, tanto Oliveira quanto Borba Filho prezavam por uma relativa independência da arte tanto com relação às pressões mercadológicas quanto diante dos imperativos político-partidários. Embora ocupando posições diferentes no campo, há afinidades que consistem numa visão da especificidade da práxis artística e sua relativa autonomia com relação a fatores extra-artísticos. E isso se refletia diretamente tanto na produção do TAP quanto do TEP.

Possuíam uma visão moderna do fazer artístico, segundo a qual seria condição necessária para se produzir um teatro de qualidade o apuro formal e o amadurecimento técnico dos grupos teatrais. Tomavam como padrão técnico a ser alcançado o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) de São Paulo, embora Borba Filho fizesse ressalvas às suas concessões mercadológicas43 e ao caráter realista da linguagem teatral encenada pelo grupo.

Outro aspecto comum ao pensamento desses dois intelectuais de referência na cena teatral pernambucana da época é a visão do teatro como uma atividade que cumpre a função de impulsionar o desenvolvimento cultural da sociedade, ou seja, uma “função civilizatória”. (REIS, 2009, p. 38)

A idéia de pedagogia por meio da arte revela a atitude paternalista diante do público que caracterizava tanto o TAP quanto o TEP. Ambos tinham objetivos de “educação artística” e “elevação do gosto” com relação a seus respectivos públicos. (TEIXEIRA, 2007)

Todavia, não só os públicos eram diferenciados, mas também as formas de se implementar essa pedagogia artística eram distintas nos dois grupos. Se as intenções pedagógicas do TAP se limitavam à escolha do repertório para um público previamente selecionado, no TEP iam muito além disso. A dificuldade, por exemplo, de encenar clássicos para um público deveras heterogêneo forçou o TEP a criar estratégias alternativas de interação:

Em Otelo (Shakespeare) e, já antes, quando encenaram Édipo-Rei (Sófocles), talvez temerosos de que a natureza das peças (seu contexto histórico, etc.) viesse a trazer maiores dificuldades de acompanhamento/compreensão, optaram por fazer palestras públicas sobre

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Borba Filho criticava o fato de, apesar da qualidade técnica das produções do TBC, o grupo se dedicar por vezes, em função de interesses, segundo ele, comerciais, a atender a um eventual gosto superficial de certa elite paulistana que compunha grosso modo o seu público.

as peças, seus autores e o universo cultural em que estavam inseridos (indo, até mesmo, às rádios locais para proferi-las, como foi o caso durante a encenação de Édipo). Em outras oportunidades , abriram-se para o diálogo com o público – seja recolhendo sugestões e opiniões através de encartes apensos aos programas das peças, como se deu ao encenarem A sapateira prodigiosa (Garcia Lorca) seja instaurando um espaço de debate com o público assistente, como aconteceu com as representações de A casa de Rossner, de Ibsen. O importante a observar é que, partindo de uma posição de superioridade, de quem se sente obrigado a servir de guia, dando uma boa orientação “artístico-cultural”, o TEP soube levar isso a suas últimas conseqüências, abrindo, até mesmo, canais de diálogo e trocas com seu público. (TEIXEIRA, 2007, p. 112-113)

Além disso, o TEP se dedicava a promover palestras e debates sobre Teatro, muitas vezes trazendo artistas e intelectuais de outros estados, denotando um desejo de movimentar a cena cultural e intelectual da cidade de modo mais amplo, o que de fato conseguiu.

Para isso, muito contribuiu a relevância das artes cênicas no contexto cultural do Recife da época. O Teatro era, de fato, uma das poucas atividades artísticas economicamente viáveis no restrito mercado de bens culturais da província. Por sua própria natureza, permitia que, a um investimento relativamente baixo de recursos materiais, houvesse um retorno significativo depois de repetidas apresentações de um mesmo espetáculo. Isso explica o fato de que já nos anos 1940 o Teatro se destacasse no ambiente cultural da cidade por um maior desenvolvimento das estruturas e das dinâmicas de produção. A mobilização de recursos materiais e simbólicos para a produção teatral da época na cidade não se comparava a nenhuma outra atividade do campo artístico.

Depois de consolidado o Teatro como bem de consumo no mercado cultural, surgem grupos que se insurgem contra o formato típico das produções populares da época. Buscam um apuro formal e uma qualidade estética que tentavam fugir às limitações formais derivadas dos modelos enquadrados ao gosto médio de um mercado amplo, de perfil popular. A aparição tanto do TAP quanto do TEP evidencia esse processo, que guarda características análogas à estruturação de um campo, de acordo com o conceito de Bourdieu (2010 [1992]).

Em suma, na cena teatral da época conviviam diferentes tendências: companhias como a de Barreto Jr., dedicadas ao teatro de perfil mais popular e comercial, o Teatro de Amadores de Pernambuco, cuja proposta era produzir montagens clássicas ao gosto da elite local, e o Teatro do Estudante de Pernambuco, com uma proposta mais ousada, tanto em seu afã de levar às classes populares espetáculos clássicos do teatro, como também em sua proposição de elaborar uma nova linguagem teatral de cunho nacional, a partir de pesquisas sobre a dramaturgia popular. Cada uma dessas posturas tinha implicações específicas sobre o

modo de fazer teatro e em função delas surgiam debates sobre questões especificamente técnicas e estéticas. Esta tradução de problemas filosóficos, econômicos e políticos dentro da lógica específica da linguagem teatral, e as questões daí provenientes são algumas das características que configuram um campo em formação. É esse campo teatral que, em Pernambuco, traduziu em suas práticas, pela primeira vez, de modo mais consistente, os balizamentos estruturadores da visão de mundo que desde a década de 1920 pautavam o debate cultural local em torno das posições de Gilberto Freyre e Joaquim Inojosa. Uma evidência do considerável peso que tinha a cena teatral no conjunto de atividades artísticas realizadas em âmbito local.

Neste contexto, o TEP representava a iniciativa mais inovadora não só no panorama das artes cênicas locais, mas também em todo o cenário cultural da província. O impacto de sua atuação transcendeu em muito o âmbito do Teatro, reverberando em outros movimentos importantes que viriam posteriormente a marcar a vida cultural da cidade, como o Gráfico Amador e o próprio Movimento Armorial.

Contudo, a falta de apoio material e as dificuldades em viabilizar financeiramente de modo autônomo suas atividades fizeram com que o grupo, durante toda a sua curta existência, estivesse sempre atolado em dívidas. A situação obrigou o TEP a fechar as portas em 1953, mesmo ano em que Hermilo Borba Filho recebe um convite para trabalhar em São Paulo e deixa o Recife por tempo indeterminado.

O Teatro do Estudante de Pernambuco e o Gráfico Amador44 funcionaram como verdadeiras escolas de arte e fóruns culturais para seus integrantes. Os jovens da Faculdade de Direito aglutinados em torno de Hermilo Borba Filho, que integrariam ambos os grupos, liam e discutiam juntos sobre teatro, arte e literatura, sempre respeitando a pluralidade de posições e opiniões. Dentre eles, Ariano Suassuna talvez tenha sido um dos mais influenciados pelos princípios do TEP, que levou adiante mesmo depois das divergências estéticas que viria a ter no futuro com Borba Filho.

Além de tomar como uma de suas preocupações centrais a construção de um teatro brasileiro nacional e popular, Suassuna compartilha com Borba Filho a admiração por Federico García-Lorca, um autor de referência para o TEP, devido à sua poética onírica

44 O Gráfico Amador foi uma tipografia artesanal fundada por jovens recifenses, muitos deles oriundos do TEP,

e que funcionou entre 1951 e 1961. A inexistência de editoras locais levou aquele grupo de jovens a criar os próprios meios para publicação de suas obras. Enquanto alguns, como Aloísio Magalhães e Gastão de Holanda, se dedicavam ao trabalho técnico e criativo da produção bibliográfica artesanal, outros como José Laurenio de Melo e Orlando Costa Ferreira dedicavam-se à elaboração e seleção do material a ser publicado.

baseada nas narrativas e mitos populares da Espanha, mas também por suas iniciativas de divulgação do teatro entre as classes populares.

Suassuna relembra Lorca para exemplificar a diferença entre uma arte popular “original” e a sua recriação por artistas eruditos. Em várias oportunidades ressalta que apenas o “povo pobre do Brasil real” tem a capacidade de produzir arte popular, e que qualquer artista de elite que o pretendesse, não conseguiria ir além de uma mera falsificação. É interessante observar, na descrição que o autor faz do trabalho de García Lorca e do compositor Manuel de Falla, como muitas dessas características podem ser identificadas nos princípios do Movimento Armorial e das políticas de cultura que ele implementaria a partir da década de 1970.

A postura que podemos assumir (nós, que pertencendo ao Brasil oficial, desejamos, no entanto, ligar nossa arte à do Brasil real) é mirar-nos no exemplo de um García Lorca ou de um Manuel de Falla, entre outros. García Lorca pertencia à classe privilegiada de seu país. Como nós, desejava que se acabasse aquela cisão dilaceradora, causada pelo capitalismo e que separa o povo de nós. Lutou contra ela do modo que lhe era possível (e foi por causa disso que o fuzilaram). Mas, mesmo em plena vigência da cisão, amava profundamente a arte de seu povo. Uniu-se ao seu amigo Manuel de Falla e os dois, juntos, fizeram pesquisas que duraram muito tempo, anotando romances, cantares e “descantes” do povo espanhol. Foi daí que surgiram obras de gênio como o “Romanceiro Cigano” de Lorca, e “O retábulo de mestre Pedro”, de Manuel de Falla; um livro de poemas e um espetáculo de música, teatro e canto tão profundamente espanhóis e apesar disso (ou por isso mesmo) tão universais. É claro que García Lorca não copiava. Partia do romanceiro popular espanhol, de suas formas e de seu espírito. Mas recriava e transformava tudo, valendo-se de sua arte refinada e poderosa (...)45

É sintomático o sentimento de identificação que Suassuna revela ter em relação a Garcia Lorca. Assim como o autor espanhol, ele é oriundo de uma camada social privilegiada, mas dedica-se a pesquisar, valorizar e recriar manifestações do Romanceiro popular de seu país. Ao descrever Lorca, Suassuna descreve a ele próprio e seu próprio modo de fazer arte.

Em sua hierarquia estética particular, Suassuna considera García Lorca o maior poeta do século XX, bem como Heitor Villa-Lobos o maior compositor brasileiro de todos os tempos. Ambos conseguiram, segundo ele, a partir de uma reelaboração formal das culturas populares, produzir uma cultura erudita a um só tempo nacional e universal. Segundo a sua perspectiva, a única alternativa de se atingir a universalidade, ou, mais especificamente, o

reconhecimento artístico internacional - enquanto artista brasileiro - seria buscando traduzir a especificidade de um espírito nativo imanente às culturas populares numa linguagem artística erudita, ao mesmo tempo original e integrada aos cânones da grande arte universal. No que diz respeito à musica, explica:

A música erudita é o fruto sedimentado da superação da música popular, superação essa realizada pelos grandes espíritos através dos tempos. Na Espanha, a arte popular vive nas raízes da erudita: é o caso de Manuel de Falla, na música, e García Lorca na poesia, ambos tão universais e ao mesmo tempo tão espanhóis.46

O aproveitamento da arte popular como matéria-prima para uma reelaboração formal eruditizada seria um imperativo moral para o artista nacional, ou seja, uma missão. Deste modo, o artista cumpriria uma dupla tarefa: manteria vivo o espírito da cultura popular, eternizando-a na arte erudita; ajudaria desta forma a construir uma arte nacional que seria, por sua singularidade, digna de integrar o panteão da grande arte universal.