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Capítulo 4: Ariano Suassuna entre o modernismo e o regionalismo: Teatro e

4.13. Suassuna, a política e os militares

Apesar de nos anos 1970 o país ter vivido um momento economicamente próspero sob a ditadura, a unificação de um mercado cultural nacional teve como uma de suas consequências o fim das produções televisivas e fonográficas locais, cujos maiores expoentes no Recife, ao longo dos anos 1960, haviam sido a TV Jornal do Commercio e a gravadora

Rozenblit. Centrada no eixo Rio-São Paulo, essa nova indústria cultural brasileira

transformava em meros satélites consumidores as demais regiões do país, instaurando uma relação centro-periferia no que se refere à organização dos fluxos de mercado.

Essa reorganização dos fluxos midiáticos em escala nacional vai se refletir numa atrofia do mercado cultural local. Cada vez mais, o artista se vê obrigado a sair da região para alcançar notoriedade na esfera pública dos meios de comunicação. Um outro dado importante é que, como as políticas da época estavam voltadas para o desenvolvimento de um mercado interno, as barreiras de importação eram muitas, e o acesso direto a bens culturais que

circulavam no mercado internacional era restrito. Diante de todas essas limitações dos fluxos culturais, o peso relativo do Movimento Armorial na cena cultural da cidade acabou sendo muito grande. Deste modo, a consolidação de Suassuna como símbolo de uma intelectualidade recifense que pensa e produz cultura se efetiva na década de 1970.

Lastreado por esse peso simbólico, Ariano Suassuna assume, de 1975 a 1977, o cargo de secretário municipal da cultura no Recife, a convite do então prefeito Antonio Farias.

O plano de política cultural adotado na época, intitulado Projeto Pernambuco-Brasil, tem fortes afinidades com os princípios armoriais. É permeado por uma preocupação fundamental em construir uma identidade nacional calcada nos elementos das culturas populares do nordeste. Com essa atuação na secretaria municipal de cultura, Suassuna optou por ampliar o escopo de ação do Movimento Armorial. Sua política de pesquisa e criação artística agora teria como agentes órgãos do poder público municipal, como a Orquestra Sinfônica e o Balé Popular do Recife. (SANTOS, 1999)

Apesar de Suassuna sempre afirmar estar a gestão acima de qualquer tendência em particular, as orientações da secretaria se traduzem na composição do Conselho Municipal de Cultura da época. Dos seis membros, quatro eram artistas ligados ao Movimento Armorial.

Diante da intensa atuação de Suassuna tanto à frente do DEC (1969-1974) quanto à frente da Secretaria de Cultura do Recife, boa parte da dimensão alcançada pelo Movimento Armorial deve ser creditada ao papel desempenhado por Suassuna nesses órgãos públicos ao longo dos anos 1970.

Suassuna se impõe nesse momento histórico, simultaneamente como intelectual, a partir dos artigos periodicamente publicados em jornais locais da época em que versa sobre os mais diversos assuntos, como artista, ao publicar o romance da Pedra do Reino, um dos marcos da Literatura moderna brasileira, como articulador de um Movimento Cultural que domina a cena artística da cidade, o Armorial, e como gestor de políticas culturais. Ao assumir o cargo de secretário de cultura do Recife, entre 1975 e 1977, torna-se aparentemente o mais poderoso personagem do campo cultural local.

De 26 de junho de 1977 a 9 de agosto de 1981, Ariano Suassuna escreve coluna opinativa dominical no Diário de Pernambuco, em espaço intitulado “A confissão desesperada”. É a sua última contribuição à imprensa como colunista regular de periódico de grande circulação antes do período em que se torna colunista da Folha de São Paulo, entre 1999 e 2001. Naquela década, identificamos uma aproximação de Suassuna em relação ao regime militar, expressa em trechos compilados pelo pesquisador Antonio Brito (2005).

Ao dar indícios de que não se filiaria a nenhum dos dois partidos legalizados na época, que eram o Movimento Democrático Brasileiro (MDB) e a Aliança Renovadora Nacional (Arena), Suassuna justifica sua posição afirmando não conseguir enxergar propostas claramente nacionalistas no programa de nenhum daqueles partidos. Por outro lado, acreditava ser o exército a única instituição capaz de livrar o país da ingerência estrangeira e defender princípios nacionalistas. O trecho abaixo é parte de um artigo publicado nas páginas de Opinião do Diário de Pernambuco, no dia 04 de Setembro de 1977:

Sei que afirmando e reafirmando a importância que dou às forças armadas no campo da política brasileira, incorro nas iras, ou, nos melhores casos, no desagrado daqueles que veem o exército brasileiro como uma espécie de ‘expressão do mal’. (...) O motivo principal de eu, em princípio, dar apoio aos Soldados é que, não tendo partido, meu partido é o Brasil – e o único partido que eu vejo com organização e força suficientes para comandar o nosso processo de emancipação é a força armada brasileira. (SUASSUNA Apud BRITO, p. 147, 2005)

Na época, já se fazia sentir de forma mais intensa no cotidiano brasileiro a disseminação de bens simbólicos de procedência sobretudo norte-americana, tanto na indústria fonográfica quanto na televisão. Fica clara a opção do regime pela estratégia de formação de um mercado nacional consumidor, que tinha na TV um de seus eixos de comunicação fundamentais. Comandados por especialistas em marketing que tratavam a cultura como um negócio, os canais de televisão eram a face mais evidente da sociedade de consumo emergente no Brasil. Segundo Suassuna, tal estratégia era orquestrada por setores do MDB e da Arena em conluio com a burguesia paulista e o governo norte-americano.

Em 24 de setembro, Suassuna publica outro artigo no Diário de Pernambuco, no qual manifesta seu apoio à candidatura do General Euler Bentes para a sucessão de Ernesto Geisel. Bentes era considerado por Suassuna um nome mais adequado para consolidar o projeto “nacionalista e social” iniciado, segundo ele mesmo declara no texto, pela revolução de 1930. A derrota de Bentes para João Figueiredo marca o início de um gradual afastamento de Suassuna em relação à política do regime.

Com o objetivo de mapear os posicionamentos políticos de Suassuna nesses artigos, Brito (2005) identifica também trechos nos quais o autor Armorial defende a institucionalização da monarquia no Brasil como uma espécie de mediador simbólico para conciliação de interesses de grupos políticos antagônicos, em analogia ao papel desempenhado pelo rei Juan Carlos, da Espanha, no período posterior à ditadura de Franco. Para exemplificar o poder simbólico da monarquia encarnado na figura do rei espanhol,

Suassuna ressalta o carisma do monarca e a sua experiência pessoal ao ter servido, na juventude, o exército de seu país, “escola de ascese e grandeza na qual Cervantes fez suas provas na Batalha de Lepanto e com a chama de Quixote a arder e iluminar a sua grande alma” (SUASSUNA Apud BRITO, 2005, p. 143). Apesar de não acreditar na possibilidade de restauração no Brasil daquela época, Suassuna afirma:

Dentro de minhas trevas e hesitação acredito que, para os latinos em geral e para os brasileiros em particular, a Monarquia, em princípio, é o regime que mais corresponde à psicologia do Povo e aquele no qual as crises violentas podem ser mais absorvidas em soluções políticas. (SUASSUNA Apud BRITO, p. 144, 2005)

Brito avalia que o afastamento de Suassuna da política do Regime Militar, a partir da eleição do General João Figueiredo, acontece em paralelo ao abandono gradual, por parte do autor, da pretensão de instalar uma Monarquia no Brasil, em termos de realpolitik. Todavia, conforme constatamos, Suassuna continua propalando sua admiração pela beleza da simbologia tradicional monárquica, expressa em artefatos e rituais.

Havia, efetivamente, ao longo dos anos 1970 uma ambiguidade fundamental que caracterizava a Política Cultural do governo militar. Ao mesmo tempo em que reunia no Conselho Federal de Cultura alguns intelectuais vinculados à tradição nacional-popular, herdeira do Modernismo paulista e do Regionalismo - tais como Gilberto Freyre, Josué Montello e o próprio Ariano Suassuna - o governo estimulava a produção comercial veiculada através dos meios de comunicação de massa como forma de promover a integração nacional em consonância com os valores da sociedade de consumo.

Ao analisar sociologicamente as ambiguidades da política cultural da época, Brito (2005) as interpreta como expressão das contradições do pacto estrutural de classes que deu suporte ao governo militar nos anos da ditadura, cujos blocos principais eram as tradicionais elites proprietárias de terras e os setores urbano-industriais condutores do progresso técnico e econômico. A formação do pacto implicou uma conciliação de interesses no qual o estado, posicionado na situação de propulsor do desenvolvimento econômico e principal mediador de forças do bloco histórico, buscou consolidar sua hegemonia ao atrair discursos legitimadores que atendessem aos interesses de todos os setores que davam sustentação política ao governo. Como toda estratégia de hegemonia, a tentativa de conciliar num projeto global o desenvolvimentismo com o romantismo nacionalista da intelectualidade tradicional iria produzir tensões e contradições.

A crise do pacto estrutural que dá sustentação a este bloco histórico resulta na desagregação do regime político autoritário. A crescente hegemonia das elites empresariais na condução dos rumos econômicos e políticos do país se reflete, no campo da cultura, por um lado, na consolidação de um aparato de comunicação de massa de dimensões nacionais cujo vetor mais poderoso seria a televisão, e por outro lado, na extinção do Conselho Federal de Cultura como órgão formulador e executor de políticas culturais de cunho nacional- popular.

A ascensão do general João Figueiredo ao poder coroa esse processo, e faz com que Suassuna reveja suas posições políticas de apoio ao regime. Critica o fracasso da política econômica dos militares, lamenta o que considera a desagregação em curso da identidade cultural brasileira em nome de interesses estrangeiros e, por fim, desanca os modelos políticos hegemônicos no cenário internacional da época: “Que me perdoem o aparente pessimismo: a Rússia comunista é uma prisão, o mundo capitalista ocidental é um bordel. O Brasil está pretendendo ser, ao que parece, um misto de prisão e bordel, ainda por cima de propriedade estrangeira”54 (SUASSUNA, Apud BRITO, 2005, p. 150).

No campo da cultura, o redirecionamento da política cultural efetivado pelo então novo ministro Eduardo Portela, empossado em março de 1979, ratifica o afastamento das propostas do Conselho Federal de Cultura (CFC), do qual Suassuna fez parte, e não deixa dúvidas quanto à opção do governo de privilegiar o mercado consumidor de cultura massiva. Decepcionado com os rumos do novo governo, Suassuna desabafa:

Durante muito tempo acreditei - santa ingenuidade! – que, tentando nós, por nossa parte, fortalecer a Cultura brasileira através de uma Arte e uma Literatura realmente nacionais, os nossos dirigentes, que nos aplaudiam, poderiam tirar conclusões semelhantes e adotá-las no campo político. Foi por isso que, entre outras coisas, criei o Movimento Armorial. Descobri depois, amargamente, que o Governo alijava sistematicamente dentro de si, como indesejáveis, todos os políticos e militares nacionalistas, não se dando mais sequer ao trabalho de acusá-los de comunistas: eram expulsos por serem patriotas mesmo. E descobri também que ninguém se incomodava absolutamente que nós escrevêssemos nossos livros, pintássemos nossos quadros ou compuséssemos nossas músicas na linha brasileira. Os meios de comunicação de massa, dominados pelo capital estrangeiro, destruíam com grande eficácia tudo o que construíamos penosamente. Que força teria um Quinteto Armorial diante das discotecas? Além disso, talvez fosse até bom para o governo que assim agíssemos: poderíamos talvez distrair um pouco os que nos ouviam, enquanto ele entregava tranquilamente aos de fora a economia e até enormes porções do território nacional55. (SUASSUNA, Apud

BRITO, 2005, p. 151).

54

SUASSUNA, Ariano. Opinião. Diário de Pernambuco. Recife, 9 set. 1979, p. A-11.

55

A visão dicotômica de que havia uma cisão irreconciliável entre o projeto nacional- popular e a produção cultural massiva era corrente nos anos 1970. Contudo, na prática, tanto nas produções televisivas quanto na indústria fonográfica era flagrante a presença de intelectuais e artistas que haviam se engajado em movimentos políticos e culturais nos anos 1950 e 1960. Os casos da Rede Globo e das produções da Som Livre são ilustrativos da significativa participação de intelectuais de esquerda nos quadros do jornalismo, da teledramaturgia e da produção musical dos anos 1970. Sacramento & Roxo (2008) atribuem esse fenômeno a diversas razões, decorrentes do que chamam de “midiatização da esfera pública” em escala nacional. A relevância cada vez maior adquirida pelo aparato televisivo na função mediadora do debate público cotidiano da nação em consonância com uma política governamental direcionada a consolidar, entre os diversos segmentos da população, um imaginário nacional comum, a necessidade de legitimação da Rede Globo como produtora de conteúdo de reconhecida qualidade e o interesse dos próprios artistas engajados em viabilizar sua produção para um público amplo vão resultar na estranha configuração de uma indústria criativa constituída por artistas e intelectuais posicionados ideologicamente à esquerda do regime ditatorial então em vigor no país. Eram nomes como Eduardo Coutinho, Ferreira Gullar, Dias Gomes, João Batista de Andrade, Paulo Pontes e Oduvaldo Viana Filho, só para citar alguns.

Suassuna, afastado dos movimentos engajados de esquerda desde o rompimento com o MCP no início dos anos 1960, talvez em consequência disso, não teria nenhuma de suas obras adaptadas para a televisão no período em questão. As primeiras adaptações televisivas de suas peças viriam apenas na década de 1990.

O autor continuaria escrevendo sua coluna semanal no Diário de Pernambuco até 1981. Depois disso, faria uma longa pausa em colaborações para a imprensa, só retornando como articulista aos jornais em 1999, nas páginas da Folha de São Paulo.