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Capítulo 2: Raízes do eixo discursivo romântico-regionalista nordestino

2.4. Suassuna e Freyre

As afiliações do pensamento de Suassuna com a tradição regionalista dos anos 1920 são flagrantes. Arriscamos afirmar que, se a experiência do Regionalismo não tivesse marcado tão profundamente o campo cultural recifense a partir dos anos 1920, um autor e crítico da estirpe de Suassuna provavelmente não teria conseguido alcançar tamanha proeminência no campo cultural local nas décadas de 1960 e 1970. Em várias passagens de suas colunas publicadas na Folha de São Paulo, Suassuna faz alusão ao Regionalismo e a Gilberto Freyre como sendo duas importantes referências em seu pensamento e obra. Contudo, demarca precisamente seu lugar no campo cultural se opondo a certas características daqueles que considera como referências.

Como demonstramos anteriormente, a história familiar de Suassuna e as experiências vivenciadas em sua infância e adolescência no sertão se constituíram em importantes fatores a influenciar sua visão de mundo. A família sertaneja, ao se despojar das propriedades rurais para investir na educação formal dos filhos no Recife, reproduz aspectos de uma trajetória de vida típica dos autores regionalistas da geração de 1930, em boa parte descendentes de uma aristocracia rural decadente que almejava converter o capital material relativo às suas propriedades rurais em capital simbólico adequado às exigências da vida urbana. (MICELI, 2008).

De uma geração mais jovem, Suassuna desponta como autor teatral apenas na década seguinte, mais precisamente em 1946. Contudo, diferente da grande maioria dos autores da geração regionalista - e até mesmo da maioria de seus contemporâneos - Suassuna não se estabelece no sudeste do país. Permanece por toda a vida no Recife, cidade na qual constrói uma carreira artística, acadêmica e política, e a partir de onde se projeta nacionalmente como autor e crítico cultural.

Porém, as experiências sociais que moldaram suas disposições individuais como artista e intelectual não teriam resultado na aceitação de Suassuna como um autor de

referência em sua época se não houvesse, na cidade do Recife, instituições culturais estabelecidas aptas a reconhecer valores positivos em seu estilo e a legitimar simbolicamente sua obra. A semente regionalista, plantada nos anos 1920, havia fixado no ambiente cultural da cidade padrões de valoração e reconhecimento associados à romantização de manifestações de cultura tradicional rural. Portanto, a ascensão de Suassuna como autor se dá em função de afinidades eletivas entre suas disposições individuais e certos padrões de valoração e legitimação estética vigentes no campo cultural recifense de sua época.

Suassuna descreve sua relação com os autores regionalistas em várias passagens de suas coluna semanais na Folha de São Paulo. Vejamos algumas delas.

Diante das diversas conotações atribuídas ao termo “Regionalismo”, Suassuna se identifica com ele apenas na medida em que representa uma “posição inicial: a daquele que quer criar a partir da realidade que o cerca”18. Reproduzindo em sua coluna trecho que houvera publicado em 1962, afirma:

“(...), gostaria de fazer uma distinção entre dois tipos de regionalismo que pressinto. Os de ‘posição’ e os ‘históricos’. O primeiro é uma posição fundamental, que inclui, de certo modo, uma atitude de vida e que tem, como decorrência, entre outras coisas, uma posição artística. Os do segundo tipo são esta posição enquanto assumida por indivíduos ou por grupos num movimento, como o que Gilberto Freyre desencadeou aqui, por volta de 1926. Quando, por exemplo, o jovem ensaísta pernambucano Mozart Siqueira ataca o Regionalismo, classificando-o de ‘assunto de ontem’ no título de uma conferência, quer-me parecer que não leva esta distinção na devida conta. O Regionalismo não é de hoje nem de ontem, é de sempre, como o classicismo ou o barroco. Um estilo não se liga somente à momentânea predominância histórica que gozou neste ou naquele momento: é uma posição que pode ser adotada com a maior liberdade por qualquer artista, sem preocupação de moda ou anacronismo.”19

Em outro trecho reproduzido na Folha de São Paulo, desta vez publicado originalmente em prefácio a uma obra do poeta Maximiano Campos, presta tributo a Freyre e a seu regionalismo:

“Todos nós que escrevemos, no nordeste, depois da geração de escritores dos anos 30, temos uma grande influência dos regionalistas, reunidos em torno de Gilberto Freyre, sendo que, tanto no meu caso quanto no de Maximiano Campos, a influência de José Lins do Rego foi a mais profunda de todas.”

18

SUASSUNA, Ariano. Almanaque Armorial. Folha de São Paulo. São Paulo, 4 set. 2000. Ilustrada, E8.

19

Indica, em outras passagens, que ao lado de Euclydes da Cunha e Guimarães Rosa, Gilberto Freyre estaria “entre os grandes escritores brasileiros”20 de sua admiração. A reverência cultivada por esses três autores repousa sobre uma premissa fundamental para o pensamento de Suassuna: o artista é, para ele, antes de tudo, um criador de mitos. Dentro do espírito romântico que guia suas convicções, a arte enquanto criadora ou recriadora de mitos coletivos se opõe à arte intimista, formalista, psicológica e filosófica que estaria em voga na modernidade. Serviria, assim, a uma missão superior, quase sagrada, a saber, a construção de imagens míticas que pudessem representar a nação.

Se, para Suassuna, Os Sertões, de Euclydes da Cunha, é “(...) o ensaio mais importante até hoje escrito para interpretar o Brasil e seu povo”21 , o romance Grande Sertão

Veredas, de Guimarães Rosa, pelo tom épico, pela proximidade com as tradicionais

narrativas sertanejas e pelo trabalho de recriação da linguagem popular é “um grande romance profundamente brasileiro”22. Ambos os autores, cada qual à sua maneira, contribuem para a recriação de uma mitologia associada aos sertões do país. Suassuna traça possíveis relações entre as duas obras, consideradas por ele seminais na tradição literária brasileira:

“Logo quando surgiu o Grande Sertão, os críticos saudaram a obra como alguma coisa de absolutamente nova na Literatura Brasileira (como, aliás, já acontecera antes com o livro de Euclydes da Cunha). E tinham razão, porque como toda grande obra literária, aquele grande romance é profundamente pessoal (e, ao mesmo tempo, universal). Mas, a meu ver, o fato de que ele está profundamente inserto, também, na tradição da literatura brasileira, nem enfraquece sua novidade nem diminui o gênio do autor. Pelo contrário: tornando-se, assim, obra nacional, é cume e resumo de obras menores e inscreve-se, ao lado de Os Sertões, no livro-de-ouro de nossas mais altas linhagens, no armorial-de-honra de nossa literatura (...)”23

Prossegue enfatizando o caráter épico-nacional de ambos os escritores, traçando uma série de analogias entre as duas obras e inscrevendo-os numa espécie de linha evolutiva da literatura brasileira:

A presença de Os Sertões é visível, pelo menos no subconsciente de João Guimarães Rosa, quando ele concebeu o Grande Sertão e alguns outros contos (...). Tanto em Euclydes da Cunha quanto em Guimarães Rosa está presente o espírito épico e guerreiro, um recriando o sertão nordestino, o outro o mineiro, mas ambos com heróis que não são mais ibéricos, nem índios, nem negros, nem mouros, mas uma mistura de tudo isso e mais alguma coisa, porque são brasileiros. Pajeú, herói-guerreiro de Os Sertões, é

20 SUASSUNA, Ariano. Almanaque Armorial. Folha de São Paulo. São Paulo, 20 nov. 2000. Ilustrada, E8. 21 SUASSUNA, Ariano. Almanaque Armorial. Folha de São Paulo. São Paulo, 12 mar. 2001. Ilustrada, E8. 22 SUASSUNA, Ariano. Almanaque Armorial. Folha de São Paulo. São Paulo, 15 jan. 2001. Ilustrada, E8. 23 SUASSUNA, Ariano. Almanaque Armorial. Folha de São Paulo. São Paulo, 12 fev. 2001. Ilustrada, E8.

um personagem tão forte e verdadeiro quanto Riobaldo. Antonio Conselheiro, herói-pai, é tão presente a Canudos quanto Joca Ramiro nos “campos gerais” de Minas. Tanto em Os Sertões como no romance de Rosa encontramos o processo épico da enumeração dos chefes guerreiros, que depois reaparecem, já nossos conhecidos, e ganham, assim, em vida e intimidade ante nossa simpatia. Ambos repetem, como se isso fosse uma necessidade intrínseca ao épico, o processo homérico de enumera, um por um, como armas, bagagens e o número de apaniguados que se lançariam ao assalto de Tróia. (Idem)

Por fim associa os dois à Ilíada, poema épico da antiguidade clássica, interpretado, no período pós-homérico, como uma das principais narrativas mitológicas fundadoras da unidade cultural dos povos gregos. Para Suassuna, o principal critério para a avaliação da relevância de uma obra intelectual ou artística é a capacidade de condensar significações míticas agregadoras e representativas de uma idéia de nação. “Se fôssemos chamados a escolher o espanhol ou o inglês do milênio, acho que ninguém teria dúvida: os eleitos seriam Cervantes e Shakespeare, porque os artistas são aqueles que melhor encarnam, resumem e simbolizam seus povos”24

Apesar de não ser romancista ou poeta, Gilberto Freyre teve intensa atuação como crítico cultural, principalmente no Recife. Além disso, sua obra sociológica adquiriu status internacional como clássico da língua portuguesa, aproximando-se não raro dos estilos ensaístico e literário. Casa Grande & Senzala, publicado em 1933, marca a reconfiguração da problemática racial no Brasil como signo de nacionalidade. O alto índice de mestiçagem da população brasileira, até então interpretado como raiz das mazelas nacionais, a exemplo do que defendia Sílvio Romero, passa a ser valorizado por Freyre como uma singularidade positiva e potencialmente criadora.

Para o autor, a mestiçagem permanecia como traço fundamental da identidade nacional, o que permitiria aos indivíduos “das diferentes classes sociais e dos diversos grupos de cor, interpretar, dentro do padrão proposto, as relações que eles próprios vivenciam” (ORTIZ, 2000, p. 43). Contudo, Freyre abandona as teorias eugênicas, substituindo-as pelo culturalismo de Franz Boas e de outros cientistas sociais contemporâneos. Assim, “transforma a negatividade do mestiço em positividade, o que permite completar definitivamente os contornos de uma identidade que há muito vinha sendo desenhada” (ORTIZ, 2000, p. 41). Nesse sentido, Suassuna reconhece a importância do sociólogo “que foi o primeiro a chamar, de modo sistemático e constante, a nossa atenção para o fato de que

24

significávamos algo, dando dignidade a uma cultura, a uma maneira de vida e a uma arte até então desprezadas e colocadas de lado”25

A transformação do fenômeno histórico da mestiçagem nos trópicos num emblema positivo da unidade nacional é apenas um dos exemplos nos quais a sensibilidade romântica de Freyre busca, no passado, elementos para a construção de imagens míticas que simbolizem a identidade nacional ou regional. Suassuna resgata, nas páginas da Folha de São Paulo, passagem na qual Freyre, em artigo publicado em 1925, discorria sobre as potencialidades estéticas de uma pintura regionalista, e aproveita para traçar analogias com o que viria a ser produzido décadas depois pelo artista plástico Francisco Brennand:

“Quanto à pintura, num artigo publicado, se eu não me engano, antes de 1930, a respeito da nossa natureza como fonte de recriação para nossos pintores, fala Gilberto Freyre de ‘amarelos e roxos espessos, oleosos, gordos, às vezes dando vida a formas que são meios-termos grotescos entre o vegetal e o humano, verdadeiros plágios da anatomia humana, do sexo do homem e da mulher, formas no verão alto chupadas pelo sol de todo esse sangue, de toda essa cor, de toda essa espécie de carne; e quase reduzida aos ossos dos cardos; a relevos duros, ascéticos, angulosos, assexuais.’ Essas palavras são cheias de sugestões para um grande pintor disposto a se abrir diante de nossas formas. E não posso me impedir de lembrar a pintura de Francisco Brennand, que elas pareciam anunciar. Imagino sua novidade no tempo em que foram escritas, porque elas são novas ainda hoje”26

Onde se lê “ainda hoje”, entenda-se 1962, ano em que Suassuna publicou originalmente seu comentário sobre Freyre num artigo que integrou a coletânea Gilberto

Freyre – sua ciência e sua arte: ensaios sobre o autor de Casa Grande & Senzala e sua influência na moderna cultura do Brasil. Observamos que esse texto sobre Freyre está na

base de muitas de suas referências ao sociólogo nas colunas publicadas na Folha de São Paulo quase quarenta anos depois.

Em outros momentos, porém, Suassuna procura demarcar sua distinção tanto com relação à geração de romancistas regionalistas que o precedem (e com a qual é constantemente confundido) quanto com relação a Gilberto Freyre. Embora identifiquemos uma sensibilidade romântica comum a ambos tanto em suas idealizações das culturas populares pré-modernas da região quanto na reação a aspectos culturais dominantes na civilização burguesa, há significativas diferenças estéticas e políticas entre os dois.

25

SUASSUNA, Ariano. Almanaque Armorial. Folha de São Paulo. São Paulo, 28 ago. 2000. Ilustrada E8.

26

A primeira peça escrita por Ariano Suassuna, Uma mulher vestida de sol, venceu em 1947 um concurso promovido pelo Teatro do Estudante de Pernambuco. Integrante da comissão julgadora, Gilberto Freyre votou contra a premiação da obra do então autor iniciante. Suassuna descreve o episódio transcrevendo na Folha de São Paulo mais um trecho de seu ensaio originalmente publicado em 1962:

“Uma mulher vestida de sol ganhara o primeiro prêmio num concurso, contra o voto de Gilberto Freyre. Eu explicava esse voto contrário dele ‘por dois fatos que nos separam; em primeiro lugar, Gilberto Freyre é antes um romântico do que um clássico; ele próprio considera o movimento regional- tradicionalista como ‘neo-romântico’; depois, ele é um homem da zona do açúcar, visceralmente ligado às formas, cores e coisas de sua região, enquanto eu sou um sertanejo da civilização do couro. E, apesar de suas tendências apolíneas à harmonia, ele nunca pôde esconder, por exemplo, que simpatiza mais com Joaquim Nabuco do que com Euclydes da Cunha, em quem viu, com muito acerto, um sertanejo a quem, carinhosamente, censura por comer à força, sendo um asceta de cara fradesca, como todo sertanejo. Ora, a minha peça, sertaneja, com tendências antes clássicas (e barrocas) do que românticas, concorria com outra da Zona-da-mata em que o sexualismo dos engenhos estava presente. (...) E, entre duas experiências falhadas, é natural que Gilberto Freyre tenha se inclinado por aquela que aflorava seu mundo, novamente impaciente de vê-lo vivificado e eternizado nas formas de arte.”

A dicotomia que Suassuna estabelece entre zona da mata canavieira e sertão como regiões física e climaticamente distintas, a condicionar expressões estéticas e comportamentais também distintas faz ecoar as teorias do determinismo ambiental vigentes ainda no início do século XX, na obra de autores como Euclydes da Cunha. O argumento é utilizado para justificar as diferenças entre o ascetismo e a moral sertaneja presentes na obra de Suassuna e a sensualidade dos escritos de Freyre, carregados de alusões ao calor e à umidade dos trópicos como elementos que compõem o cenário de uma vida cultural marcada por relações afetivas e sexuais entre mestres e escravos.

Porém, as diferenças estilísticas e temáticas entre os dois autores podem ocultar uma semelhança estrutural que reside na sensibilidade romântica comum a ambos. Conforme declara Peter Gay a respeito dos autores românticos, é flagrante a diversidade de posições estéticas e políticas expressas em suas obras. Segundo ele, os “românticos não formaram um exército de fanáticos ou uma escola: criaram uma atmosfera, e não um movimento – uma atmosfera que fez história” (GAY, 1999, p. 50). As noções individualistas que estão na base do espírito romântico representam um obstáculo à formação de um grupo caracterizado por um estilo ou uma ideologia política homogêneos. Entendemos, desta forma, que a semente regionalista neoromântica plantada por Gilberto Freyre ainda na década de 1920 se instala na

atmosfera cultural da cidade do Recife de modo a propiciar o surgimento e contribuir para a legitimação de posições estético-políticas que, se não seguem à risca a receita Freyreana, com ela compartilham valores de fundo e integram, a seu lado, aquela mesma atmosfera.

Assim, tanto a busca pela representação de luminosidades e texturas específicas das úmidas matas tropicais na pintura pelo viés naturalista quanto a opção barroca que promove elementos da religiosidade de raiz ibérica a símbolos da identidade cultural sertaneja, apesar de aparentemente diferentes, tem em comum aspectos típicos da sensibilidade romântica. Em Freyre, a nostalgia da vida nos engenhos da zona da mata canavieira, onde havia passado a infância, era um dos sentimentos a mobilizar sua crônica afetiva da sociabilidade colonial, da arquitetura, dos utensílios cotidianos e das paisagens. Este sentimento íntimo o levava a pregar a necessidade de uma expressão estética que representasse aquela singularidade cultural em formas, cores e texturas específicas. Em Suassuna, enxergamos uma motivação nostálgica análoga, porém projetada em direção ao universo sertanejo no qual vivenciou sua infância e parte de sua adolescência. Ambos são faces distintas - mas complementares - da mesma perspectiva regionalista e neoromântica vigente na atmosfera cultural recifense. Comungam, por exemplo, da mesma crítica ao Modernismo paulista - sobretudo à vertente de Oswald de Andrade, e ao que tange à sua defesa da arte de vanguarda.

Em oposição a valores dominantes na sociedade burguesa, esses autores garimpam no passado elementos para a construção de uma identidade regional que é, ao mesmo tempo, revelada para o restante do país como cerne da identidade da nação.

CAPÍTULO 3: Tensões em torno do conceito de cultura: o caso da música