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3. CAPÍTULO 3: A CONSTRUÇÃO DA POLÍTICA DE EDH EM SÃO PAULO

3.1. Explanação teórica: coprodução de políticas públicas sob a perspectiva dos arranjos

3.1.1. Coprodução

Nos últimos anos, as políticas públicas têm adotado arranjos cada vez mais complexos em seus processos de formulação, implementação e avaliação, os quais incluem parcerias com novas redes de atores estatais e não estatais. Esse movimento ocorre a partir da visão de que a incorporação de novos atores na formulação e entrega de políticas públicas produz não apenas maior produtividade e eficiência, mas também um aprofundamento da democracia, dada a maior participação dos(as) cidadãos(ãs) nos processos decisórios do Estado. Na última década, a literatura internacional buscou compreender esses novos modelos de parceria, o que mais recentemente passou a chamar de novos arranjos institucionais aliados à ideia de coprodução de serviços (LOTTA, 2017). Nesta seção buscaremos discutir o conceito de coprodução sob a perspectiva dos novos arranjos institucionais, proposta por Lotta e Favareto (2016), abordagem que será utilizada em nossa análise sobre o processo de construção da política de EDH em São Paulo entre 2013 e 2016.

Nosso trabalho traz importante contribuição para o debate sobre coprodução na medida em que voltará seu olhar para uma política de âmbito municipal, pois de acordo com Lotta (2017), embora no caso brasileiro já tenhamos alguns estudos sobre este movimento e suas configurações em políticas federais, ainda conhecemos muito pouco sobre o impacto dessas iniciativas nos arranjos municipais, onde as políticas de fato se concretizam. Ainda

77 segundo a mesma autora, é conhecida a existência de políticas municipais promovidas por meio de parcerias com outros(as) atores(atrizes), porém ainda há pouca análise teórica sobre como essas têm sido desenvolvidas. Ademais outro diferencial importante do nosso estudo é seu olhar específico para uma política de direitos humanos, o que o diferencia dos demais trabalhos nessa área, geralmente voltados para políticas sociais mais tradicionais, como saúde, educação e assistência social.

A seguir buscaremos apresentar uma síntese da literatura sobre coprodução de políticas públicas. É preciso ressaltar que o desenvolvimento desse conceito ainda está em curso e que há, principalmente no Brasil, poucas pesquisas sobre o tema. Isso acaba por significar um enorme desafio para a nossa análise, mas também uma importante oportunidade de colaboração para o avanço da reflexão sobre políticas públicas desenvolvidas a partir de processos de coprodução no caso brasileiro.

O que é coprodução?

O conceito de coprodução foi originalmente proposto por Elinor Ostrom e seus colegas da Universidade de Indiana no final da década de 1970 (ALFORD, 2014). Segundo John Alford (2014), “a ideia original era fundamental, mas relativamente simples, que não apenas o consumo, mas também a produção de serviços públicos pode exigir a participação dos cidadãos (Ostrom e Ostrom, 1977; Ostrom et al., 1978; Parks et al., 1981; Percy, 1978)”. É a partir dessa definição que diversos(as) outros(as) autores(as) passam a analisar a participação de cidadãos(ãs) não apenas na formulação de políticas públicas, como também na sua produção, o que significou um momento de virada para os estudos de administração pública até então, que viam o Estado como o único responsável pela produção de serviços públicos.

O trabalho de Ostrom foi fundamental para apontar a complexidade e não oposição, como essa era até então vista, da relação entre público e privado, assim como também para a diversidade de arranjos institucionais de governança no setor público (Aligica; Tarko, 2013). De acordo com Bovaird (2012), a revolução dos estudos de coprodução se deu pela mudança do olhar sobre a produção de serviços públicos, os quais eram vistos como “serviços públicos (realizados) para o público” e passam a ser analisados como “serviços públicos (realizados) pelo público”.

78 Na definição inicial de Ostrom, a coprodução era limitada à participação de cidadãos(as) ou como eram chamados(as) por ela, consumidores(as), na formulação de políticas públicas. Porém, a própria autora mais tarde amplia sua visão sobre os(as) atores(atrizes) envolvidos nesse processo. Em sua nova definição, Ostrom afirma que a coprodução se trata do processo pelo qual os insumos usados para produzir um bem ou serviço são contribuídos por indivíduos que não estão na mesma organização (apud Ostrom 1996, 1073; ALFORD, 2014). Sendo assim, como Bovaird (2017) e outros(as) autores(as) explicam, atualmente há um certo consenso sobre o fato de que a coprodução possa ser realizada por diversos(as) atores(atrizes). Isso significa que em uma dada situação pode haver vários tipos de provedores(as) envolvidos(as), com diferentes capacidades e interesses (ALFORD, 2014).

Sendo assim, a literatura de coprodução passou a incorporar à análise sobre a participação de outros(as) atores(atrizes) na produção de políticas públicas, como por exemplo, empresas privadas, organizações não governamentais, movimentos sociais, diferentes governos em contextos federativos, sociedade civil organizada e outros(as) parceiros(as) (EWERT; EVERS, 2012). Segundo Hupe e Hill (2002), coprodução trata-se de uma abordagem na qual um governo nacional ou local envolve cidadãos, organizações sem fins lucrativos, empresas ou outros grupos na produção de uma política pública específica (Apud, LOTTA, 2017). Em nosso trabalho utilizaremos essa definição mais ampla sobre os(as) atores(atrizes) envolvidos(as) no processo de coprodução a fim de compreender a importância de cada um desses(as) para a construção da política de EDH em São Paulo durante a gestão Haddad.

Objetivos da coprodução

O objetivo principal da coprodução é potencializar a ação do Estado, ou seja, colocar em prática aquilo que esse não conseguiria realizar sozinho, seja pela falta de recursos, pessoal ou capacidade técnica. Alford (2014) destaca que a coprodução não se trata de um repasse das tarefas do Estado para os cidadãos, mas sim da potencialização das ações estatais através da capacidade de atores externos, os quais podem dar conta de algumas de suas tarefas com igual ou maior capacidade (LOTTA, 2017). Nas palavras de Bovaird (2012), o processo de coprodução existe quando o setor público e os cidadãos aproveitam os recursos uns dos outros para obter melhores resultados ou melhorar a eficiência de uma política pública. Segundo essa visão, os objetivos principais da coprodução são:

79 resultados mais efetivos e a obtenção de custos mais baixos. Essa perspectiva será particularmente importante para nossa análise, pois como vimos no primeiro capítulo do presente trabalho, a SMDHC era uma secretaria nova, com poucos recursos financeiros e humanos.

Para Loffler et al. (2008), a coprodução é também em parte um reconhecimento dos limites do estado e acima de tudo de que estamos todos juntos nisso. Em suas palavras, “O Estado e a sociedade civil devem trabalhar juntos para alcançar os resultados desejados por todos. Se você quer andar rápido, vá sozinho, mas se você quiser caminhar longe, viaje com outras pessoas” (apud BOAVAIRD, 2012, p. 1120).

Para Calabro e Vamstad (2012), a coprodução pode contribuir com a eficiência das políticas públicas na medida em que apresenta resultados como: melhor entendimento das demandas dos usuários e do que esses valorizam nos serviços ofertados pelo Estado; melhoria da qualidade na provisão do serviço, resultado de um processo de comunicação entre produtores e usuários; acesso e uso de ativos dos próprios usuários na provisão dos serviços; criação de serviços inovadores, os quais envolvem usuários e outros “stakeholders”(apud LOTTA, 2017, p. 16).

Além da otimização de recursos e ampliação da efetividade da política pública, outro resultado da coprodução apontado pela literatura diz respeito à “accountability” e ao próprio processo democrático. Apesar de não haver um consenso na literatura sobre o assunto, há evidências concretas de que o processo coprodutivo é capaz de estabelecer novas relações entre cidadãos e Estado, essas baseadas em processos de transparência, padrões éticos e confiança. Segundo Lotta (2017), um maior envolvimento de cidadãos(ãs) na produção de políticas públicas pode gerar um aprofundamento da democracia.

Motivações para o envolvimento de atores(atrizes) no processo de coprodução

Uma pergunta central na literatura sobre coprodução é o que leva os(as) cidadãos(ãs) e outros(as) atores(atrizes) a coproduzirem. Esta questão vem sendo muito analisada e há um amplo consenso de que múltiplos fatores motivam a coprodução. Com relação à participação dos usuários, Alford (2009, 2012) afirma que há diversos motivos para que esses se engajem no processo de coprodução, dentre eles estão: auto interesse, ganhos

80 concretos com a política e ganhos intrínsecos como satisfação e sensação de pertencimento (LOTTA, 2017).

Bovaird et al. (2016) demonstram outros fatores que influenciam práticas de coprodução, são eles: sensação de que o envolvimento faz diferença; existência de um governo aberto à interação; governo voltado ao alcance de resultados; percepção de condições mínimas para o estabelecimento de colaboração, como por exemplo, segurança, bem-estar nas relações pessoais, ambiente favorável etc. (apud LOTTA, 2017, p. 14 e 15).

Ainda nesse sentido, para outros(as) autores(autoras) como Sicilia et al. (2015), a coprodução depende de alguns fatores para ocorrer. Em primeiro lugar, é necessário um sistema de alocação de recursos capaz de garantir o seu funcionamento, assim como uma percepção por parte dos(as) atores(atrizes) envolvidos(as) de que essa é prioridade e possui recursos alocados.

O segundo fator é a existência de uma relação de confiança entre os diferentes participantes do processo coprodutivo. Para esses(as) autores(autoras), isso garante que a coprodução não seja encarada como mais um trabalho, mas sim como um envolvimento necessário para a obtenção de melhores resultados.

Ainda segundo o mesmo conjunto de autores(autoras), outra condição para o bom funcionamento da coprodução é a alta capacidade de escuta, diálogo e de construção de práticas de governança que os(as) gestores(as) públicos(as) devem ter (apud LOTTA, 2017). Segundo Bovaird (2012), isso faz com que a forma como esses(as) profissionais são recrutados(as) e treinados(as) se modifique, pois a coprodução exige daqueles(as) que estão envolvidos(as) nela uma alta capacidade de gestão de pessoas, de conflitos etc. Para finalizarmos essa etapa de explanação sobre a literatura de coprodução, é importante ressaltar uma dificuldade encontrada nesse processo, a qual incide de forma particular nas políticas de direitos humanos e será importante em nossa análise sobre a construção da política de EDH em São Paulo entre 2013 e 2016. Uma dificuldade encontrada por alguns estudos sobre coprodução foi a desconfiança dos(as) atores(atrizes) sociais, seja eles(as) usuários(as), ONGs, movimentos sociais e outros(as), em relação ao Estado. Sendo assim, se faz necessário por parte dos(as) agentes estatais um esforço para o estabelecimento de confiança entre os(as) atores(atrizes) envolvidos(as) no processo de coprodução, pois essa pode ser arriscada, incerta e tomar tempo (Yang, 2006, apud Osborne; Strokosch, 2013).

81 Isso é particularmente importante no caso das políticas de direitos humanos, pois o Estado é muitas vezes visto pelos(as) cidadãos(ãs) como o principal violador de direitos, o que pode dificultar a parceria entre eles.

Na próxima seção iremos apresentar a abordagem de arranjos institucionais, quadro analítico pelo qual analisaremos o processo de coprodução que resultou na política de EDH em São Paulo durante a gestão de Fernando Haddad.