• Nenhum resultado encontrado

2. CAPÍTULO 2: A ENTRADA DA EDH NA AGENDA DA CIDADE

2.1. Como agendas são construídas: um debate da Ciência Política

2.1.1. O modelo de Múltiplos Fluxos

Para responder questões referentes à entrada da EDH na agenda de São Paulo recorreremos ao Modelo de “Múltiplos Fluxos” (“Multiple Streams Model”) de John Kingdon (1995). Esse modelo representa uma importante ferramenta para a análise de processos de formulação de políticas públicas e mudanças na agenda governamental. A

46 escolha do mesmo se deu porque sua construção derivou da tentativa do autor em alcançar respostas para as seguintes questões, as quais dialogam com as perguntas centrais de nossa pesquisa: Por que alguns problemas se tornam importantes para um governo? Como uma ideia se insere no conjunto de preocupações dos formuladores de políticas, transformando-se em uma política pública? Por que certas alternativas são escolhidas ao invés de outras? (KINGDON, 1984).

De acordo com o modelo proposto por Kingdon, a mudança da agenda é o resultado da convergência entre três fluxos, os quais se desenvolvem de maneira, relativamente, independentes. São eles: problemas; soluções e dinâmicas políticas.

No primeiro fluxo, Kingdon busca analisar de que forma as questões são reconhecidas como problemas e por que determinados assuntos passam a ocupar a agenda governamental. Considerando que um(a) formulador(a) de políticas públicas possui um grande volume de decisões a serem tomadas diariamente e sua incapacidade de lidar com todas as questões ao mesmo tempo, a atenção desse(a) depende basicamente da forma como ele(a) percebe e interpreta cada uma dessas questões e, principalmente, como as define enquanto problemas. Alguns mecanismos, como indicadores produzidos sistematicamente (monitoramento de políticas governamentais, relatórios de desempenho) e grandes eventos (tragédias, desastres naturais e acidentes) contribuem para focalizar a atenção dos(as) formuladores(as) sobre determinadas questões. O primeiro fluxo proposto pelo modelo de Kingdon será, particularmente, importante para a nossa análise, pois a partir dele buscaremos compreender quais foram os motivos que levaram os(as) formuladores(as) do programa de governo de Fernando Haddad a considerarem a EDH como uma possível solução aos problemas de direitos humanos a serem enfrentados na cidade de São Paulo.

O segundo fluxo nos leva para a reflexão da construção da política em si, pois esse considera o conjunto de alternativas viáveis para o enfrentamento de determinado problema público. No entanto, Kingdon considera que essas alternativas não são necessariamente relacionadas à percepção de problemas específicos, mas tratam-se de ideias que circulam por comunidades de especialistas, e, enquanto algumas são descartadas, outras sobrevivem, chegando a serem consideradas por atores governamentais com autoridade e capacidade de tomada de decisão (CAPELLA, 2016). Essa percepção de Kingdon é resultante do modelo “Garbage Can” ou “Lata de Lixo”,

47 desenvolvido por Cohen, March e Olsen em 1972. Segundo esses autores, políticas públicas são desenvolvidas a partir de soluções que estão numa “lata de lixo”. Em suma, o modelo “Garbage Can” afirma que soluções procuram por problemas e não o contrário (SOUSA, 2006).

Kingdon reforça essa percepção ao afirmar que no fluxo de soluções nem sempre as pessoas que estão orbitando em torno do governo ou as que estão dentro dele resolvem problemas. Muitas vezes, elas defendem soluções de seus interesses, o que ele denomina de “pet solutions” ou “soluções de estimação”, e acabam por procurar problemas para tais soluções. O segundo fluxo será utilizado em nossa análise na medida em que buscaremos compreender porque certas soluções foram consideradas durante o processo de formulação da política, enquanto outras foram descartas, assim como também por que alguns temas e abordagens de direitos humanos passaram a fazer parte da mesma, enquanto outros permaneceram de fora.

Finalmente, o terceiro fluxo é composto pela própria dimensão da política. Segundo Kingdon, independentemente do reconhecimento de um problema ou das alternativas disponíveis, o fluxo político segue sua própria dinâmica. Nesse fluxo, três elementos exercem influência sobre a agenda governamental. São eles: 1) a opinião pública (percepção geral sobre determinadas questões); 2) forças políticas organizadas, exercidas principalmente pelos grupos de pressão; 3) mudanças no próprio governo (Mudança de pessoas em posições estratégicas dentro da estrutura governamental, mudanças de gestão, mudanças na composição do Congresso etc.) (CAPELLA, 1996; 2016). Essa terceira variável, a qual se refere às mudanças dentro do governo será de grande importância para nossa análise, pois dialoga com o fato de que não só a vitória do Partido dos Trabalhadores (PT) na cidade de São Paulo em 2012, mas particularmente de Haddad, abriu uma “janela de oportunidade” para que novos temas, dentre eles a EDH, a qual já havia sendo uma das prioridades na área de direitos humanos do governo federal, entrasse na agenda do município por meio do programa de governo daquela gestão.

Segundo Kingdon, o conceito de “janela de oportunidade” trata-se de um momento oportuno específico, que se forma a partir da convergência dos três fluxos expostos acima, para que defensores(as) de uma determinada causa ofereçam suas soluções ou chamem atenção para problemas que consideram especiais. Porém, de acordo com esse autor, apenas a abertura da “janela de oportunidade” não é suficiente para a concretização da

48 mudança institucional ou de uma nova política pública. Para isso é necessário que certos(as) atores(atrizes), os(as) quais ele chama de empreendedores(as), sejam criativos(as) para aproveitarem o espaço deixado pela janela e apresentarem suas soluções (KINGDON, 1984). É por esse motivo que consideramos que a compreensão do papel dos(as) atores(atrizes) que participaram do processo de construção da política municipal de EDH entre 2012, ainda durante o programa de governo de Haddad como candidato, e 2016 se faz fundamental, tornando-a uma importante lente de análise para nossa pesquisa. Veja abaixo (Figura 3), a demonstração do modelo de “Múltiplos Fluxos” de Kingdon (1984):

Figura 3 - Modelo de Múltiplos Fluxos

Fonte: Adaptado de Capella, A. C.(2007). Perspectivas teóricas sobre o processo de formulação de políticas públicas. In: G. Hochman, M. Arretche, & E. Marques (Orgs.), Políticas Públicas no

Brasil (pp.87-122), Rio de Janeiro: Fiocruz.

Como descrito no modelo acima, o papel dos(as) empreendedores(as) políticos(as) é relevante para Kingdon, pois para ele se faz necessário que esses(as) sejam sensíveis ao espaço deixado pela “janela de oportunidade” a fim de incluir suas propostas e alternativas na agenda governamental. Assim, no modelo de “Múltiplos Fluxos”, os(as) empreendedores(as) políticos(as) são indivíduos que defendem ideias e percebem a existência de momentos oportunos para conectá-las à problemas e soluções,

49 produzindo mudanças em políticas públicas. Os(as) empreendedores(as) políticos(as) podem estar posicionados em qualquer lugar da comunidade política, seja fora ou dentro do governo, em posições eleitas ou nomeadas, e investem seus recursos (tempo, energia, reputação, recursos financeiros) na defesa de suas propostas (KINGDON, 1984).

Dessa forma, ao buscarem seus propósitos, os(as) empreendedores(as) políticos(as) unem problemas, soluções e contexto político, os três fluxos do modelo de Kingdon, aproveitando assim as oportunidades que se abrem, operando um papel central no modelo de “Múltiplos Fluxos”. Nas palavras do autor:

Sem a presença de um(a) empreendedor(a), a ligação entre os fluxos pode não ocorrer. Boas ideias ficam paralisadas pela falta de alguém que advogue por elas (KINGDON, 2003, p.182 – tradução livre realizada pela autora).

Apesar dos(as) empreendedores(as) políticos(as) terem um papel central no modelo de Kingdon, o próprio autor ressalta que esses(as) não controlam os processos de mudança na agenda, pois são muito mais influenciados(as) por grandes eventos e pelas estruturas (CAPELLA, 2016). Segundo Kingdon (1984), a “janela de oportunidade” se abre por causa de algum fator externo ao indivíduo e o(a) empreendedor(a) político(a) é aquele(a) que sabe aproveitá-lo em favor de seus interesses. Aqui existe uma limitação do modelo de Kingdon para nosso trabalho, pois ele considera que a ação empreendedora está limitada à estrutura. É por esse motivo que traremos outros(as) autores(as) para nosso debate, pois cremos que a ação empreendedora de determinados indivíduos, a qual resultou na entrada da EDH na agenda do município de São Paulo em 2012, foi além do aproveitamento de uma “janela de oportunidade”, já que em alguns casos esses(as) mesmos(as) criaram a oportunidade.

Com o objetivo de situar teoricamente o conceito de empreendedorismo político, faremos abaixo uma breve explanação sobre o debate que vem sendo realizado pela Ciência Política em torno do tema e como o utilizaremos na presente pesquisa.