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O CORPO COMO FERRAMENTA DO POLICIAL MILITAR O corpo é fundamental para o exercício da função de policial

SUMÁRIO

2.3 O CORPO COMO FERRAMENTA DO POLICIAL MILITAR O corpo é fundamental para o exercício da função de policial

militar. Flores-Pereira, Cavedon e Davel (2006) afirmam que o corpo humano pode ser entendido sob a perspectiva anatômica do esqueleto, músculos, órgãos, sistemas, líquidos e peles, mas também como artefato impregnado de símbolos, representações e de significados. Sendo assim, quando nos deparamos nas organizações com demais corpos, estamos diante não somente de pessoas com constituições biológicas, mas de sujeitos repletos de símbolos e significados, que trazem consigo diversos aspectos subjetivos.

Desde o edital para inscrição no Concurso Público para o Curso de Formação de Soldados (CFSD), exige-se um corpo saudável, com características específicas para investidura no cargo. Além das fases de prova objetiva com conhecimentos específicos, do Questionário de Investigação Social (QIS) e do Exame de Avaliação Psicológica, há também, em caráter eliminatório, o Exame de Saúde e o Exame de Avaliação Física.

De acordo com o item 9.2.2 do Edital n° 008/CESIEP/2011 (ANEXO F), os candidatos que obtiverem o conceito NÃO APTO no Exame de Saúde serão considerados reprovados no Concurso Público. O Item 9.4. do mesmo, discorre sobre os exames necessários a serem entregues no dia da inspeção de saúde.

Segundo o item 9.9 do Edital, o candidato será considerado NÃO APTO pela Junta de Inspeção de Saúde Especial para o serviço e o cargo de soldado da Polícia Militar, bem como para frequentar o CFSD, se:

a. Não preencher os índices mínimos e/ou incidir nas condições incapacitantes ou exceder a proporcionalidade de peso e altura exigidos pelo presente Edital de Concurso Público;

b. Apresentar alterações nos exames complementares consideradas incompatíveis com o serviço e o cargo de Soldado da Polícia Militar, bem como para frequentar o Curso de Formação de Soldados;

c. [...].

d. Incidir em condição clínica que embora não conste do presente Edital, seja considerada inapto para o serviço e o cargo de Soldado da Polícia Militar, bem como para frequentar o Curso de

Formação de Soldados, pela Junta de Inspeção de Saúde Especial.

Para aprovação no Concurso Público para a PMSC e ingresso no CFSD, os candidatos devem preencher um vasto requisito. Os índices mínimos exigidos para o exame de saúde podem ser observados no anexo f, de acordo com o EDITAL n° 008/CESIEP/2011.

Quanto ao Exame de Avaliação Física, as exigências também são diversas. Esta fase do concurso visa avaliar a capacidade dos candidatos para desempenharem as tarefas típicas do cargo. Os itens 10.3 e 10.4 do Edital n° 008/CESIEP/2011 (ANEXO F) descrevem a respeito.

Por meio dessas exigências que constam no edital, é possível afirmar o quanto o corpo é requisito para o exercício da função de policial militar. No entanto, partimos do pressuposto que este corpo objeto, material, do qual são exigidas diversas condições físicas, é também um corpo subjetivo, dotado de diversas sensações, aprendizagens e emoções. O corpo está exposto ao mundo, a sensação, ao sentimento, ao sofrimento, a dor (BOURDIEU, 2007). Para Corbin (2009) o corpo ocupa um lugar no espaço e é ele mesmo um espaço com seus desdobramentos. A pele, as ondas sonoras da voz, a aura de sua perspiração. Esse corpo material, físico, pode ser contemplado, sentido, tocado. É esta ‘coisa’ que os outros veem e sondam em seu desejo, mas que ao mesmo tempo desgasta-se com o tempo. É objeto da ciência, o qual os cientistas manuseiam, dissecam, medem sua massa, sua densidade, seu volume, sua temperatura, analisam seu movimento e transformam-no. No entanto, este corpo apenas objeto dos anatomistas e dos fisiologistas é diferente do corpo subjetivo do prazer, da dor, do sentimento e das sensações.

Um trabalho pioneiro sobre o corpo, foi desenvolvido por Marcel Mauss (1950) e publicado sob o título ‘Les Techniques du Corps’, primeiramente no ‘Journal de Psychologie’ em 1934 e representa o primeiro esforço em estudar o corpo humano a partir da perspectiva de artefato (FLORES-PEREIRA, 2007). Neste trabalho que influenciou diversos pesquisadores contemporâneos, o autor abordava os modos como o corpo é a matéria-prima que a cultura molda e inscreve de modo a criar diferenças sociais. Além disso, chama a atenção para a mutabilidade das técnicas corporais a partir do contexto sócio-histórico- cultural em que se vive, ou seja, trabalha a ideia de que mais do que obedecer a uma demanda biológica, as técnicas do corpo são constituídas a partir da construção cultural que permeia o tempo-espaço habitado por esses sujeitos (MAUSS, 2003; FLORES-PEREIRA, 2007).

Para Mauss (1934), as técnicas corporais variam de acordo com o sexo e a idade. Primeiramente os princípios de classificação das técnicas do corpo se dividem em quatro ‘pontos de vista’: divisão das técnicas corporais entre os sexos; variação das técnicas corporais com a idade; classificação das técnicas corporais por comparação ao desempenho, e; forma de transmissão das técnicas. Quanto a estas categorias, o autor considera que existe uma sociedade dos homens e uma das mulheres, o que implica diferentes técnicas corporais para cada uma delas. Observa, ainda, a importância de se estudar as formas pelas quais as técnicas corporais são transmitidas e o processo de educação e adestramento, que leva os indivíduos de uma sociedade a aprender e saber o que fazer com o corpo nas situações sociais. Conforme o autor, as técnicas corporais podem ser classificadas em relação ao seu desempenho, em comparação com os resultados do adestramento. Ou seja, os resultados obtidos com este adestramento do corpo estão diretamente relacionados com o desempenho das aplicação das técnicas corporais durante o processo.

Além desta classificação, Mauss (1934) faz uma enumeração biográfica em quatro grupos que inclui: técnicas de nascimento e obstetrícia , no qual aborda formas diferentes de nascimento dos bebês, a forma de segurar a criança e a do corte do cordão umbilical; técnicas da infância, que dizem respeito ao modo como as crianças são transportadas pela mãe, tempo e tipo de amamentação e desmame; técnicas da adolescência, que é um momento importante de educação do corpo, pois é nesta fase que se aprenderá as técnicas do corpo que serão mantidas na vida adulta, e; técnicas da idade adulta, as quais o autor explora um pouco mais e as subdivide em sete grupos: técnicas do sono , técnicas de repouso , técnicas de atividade ou movimento , técnicas de cuidados com o corpo , técnicas de consumo , técnicas de reprodução e técnicas de medicação . Para Flores-Pereira (2007) é desta forma que Mauss (1934) trabalha a ideia de que mais do que obedecer a uma demanda biológica, as técnicas do corpo são constituídas a partir da construção cultural que permeia o tempo-espaço habitado por esses sujeitos, trazendo pela primeira vez aos estudos do corpo a noção da natureza social do habitus.

Com o intuito de desenvolver uma pesquisa para entender como o corpo pode ser considerado um artefato e em decorrência da ausência de estudos no campo da cultura organizacional a respeito, Flores-Pereira (2007) buscou subsídios na Antropologia. A partir da análise de estudos que consideram o corpo como um artefato em relação à cultura local, ela desenvolveu um entendimento do ‘corpo artefato’ a partir de dois aspectos particulares: artefato dinâmico e artefato hierarquizado.

No que diz respeito ao artefato dinâmico, uma das tendências de estudo abordada pela autora, refere-se a representantes do estruturalismo e do simbolismo, que demonstram uma constante troca de significado entre o mundo “natural” e o social. Por meio do estabelecimento de relações entre o corpo humano e a sociedade, pensavam a cultura a partir da forma como contexto cultural é impresso nas dinâmicas do corpo. Os estudos abordavam as práticas (medicação, repouso, ornamentação, movimento, cuidados, consumo, sexualidade, gestualidade, expressões dos sentimentos, dentre outros); os produtos (sangue, sêmem, suor, lágrimas, urina, fezes, dentre outros); os processos (menstruação, ereção, gravidez, nascimento, morte, dentre outros); e, os sentidos (visão, olfato, paladar, audição, tato) (FLORES- PEREIRA, 2007). Autores como Hertz (1980), Le Breton (2002) e Mauss (1934) estudavam suas práticas, Farmer (1988) os produtos, Leal (1995) e Lock (1996) seus processos e Achutti (1995) os sentidos. Para este corpo que é estudado a partir de suas práticas, produtos, processos e sentidos, Flores-Pereira (2007) oferece a nomenclatura de ‘corpo artefato dinâmico’. Algumas destas categorias foram adotadas na presente tese, para analisar o processo de incorporação, encarnação e inculcação do habitus militar.

Quanto ao artefato hierarquizado, discorreu sobre a preocupação da Antropologia Estrutural com os processos sócio-culturais de classificação. Autores como Émile Durkheim e Marcel Mauss preocupavam-se, por exemplo, com o que denominavam função classificadora (FLORES-PEREIRA, 2007). Para os autores “toda classificação implica uma ordem hierárquica da qual nem o mundo sensível nem nossa consciência nos oferecem um modelo” (DURKHEIM; MAUSS, 1978, p. 403). A possibilidade de pensar o corpo humano a partir desse referencial teórico se faz presente em estudos das Ciências Humanas e Sociais com autores como (SCHEPER- HUGHES; LOCK, 1987; SCHIEBINGER, 1987; FISCHLER, 1995; BOURDIEU, 1999; SANT'ANNA, 2001; FARIAS, 2002; FRY, 2002; GOLDENBERG; RAMOS, 2002). Nesta perspectiva, acredita-se que o corpo deve ser pensado na forma de artefato para o qual é atribuída uma ordem hierárquica social, permitindo com isso, o reconhecimento de hierarquias sociais, desigualdades étnicas, opções sexuais e relações de poder (FLORES-PEREIRA, 2007).

A autora acrescenta, ainda, que estudos os quais pensam o corpo como algo sobre o qual é aplicada essa função classificadora tratam, por exemplo, temas como cor de pele (FARIAS, 2002; FRY, 2002), estética (SCHEPER-HUGHES e LOCK, 1987; FISCHLER, 1995;

SANT'ANNA, 2001; GOLDENBERG e RAMOS, 2002), sexo e gênero (SCHIEBINGER, 1987; BOURDIEU, 1999). A ideia central desses estudos, segundo Flores-Pereira (2007), é a de que o corpo emite símbolos que permitem a rápida classificação em relação ao grupo social ao qual esse corpo pertence, por meio de sua cor, seu sexo, seu gênero, seus ornamentos e seu volume. Para essa corrente de estudos, preocupada em estudar as formas como as sociedades e as culturas se utilizam do corpo humano como um dispositivo classificador e hierarquizador, Flores-Pereira (2007) apresenta a nomenclatura de ‘corpo artefato hierarquizado’, que também traz categorias que foram analisadas na tese.

A partir do embasamento teórico, então, as principais interfaces entre os conceitos de identidade e habitus que foram abordadas no presente estudo, relacionam-se a serem processos de socialização, que pressupõem a interaração entre os indivíduos e grupos e que levam em consideração a historicidade nas relações. Observou-se, ainda, as aproximações entre os conceitos de habitus primário e secundário e socialização primária e secundária. Para observar de forma prática esses conceitos, utilizou-se como ‘ferramenta de investigação’ o corpo do policial militar. Para que se entenda melhor o trajeto percorrido na pesquisa, o próximo capítulo caracterizou o campo estudado.

3 O CAMPO DE PESQUISA: A POLÍCIA E SUA HISTÓRIA