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SUMÁRIO

2.2 HABITUS, CAMPO E CAPITAL

Um autor central nesta perspectiva que trabalha o conceito de habitus é Pierre Bourdieu. Para que se entenda o conceito de habitus do autor, faz- se necessário retomar alguns conceitos principais de sua obra à luz dos autores que o embasaram, pois o contexto sócio-histórico se apresenta relevante, haja vista que “uma teoria nunca se elabora num vazio social: inscreve-se num contexto particular, que modela as problemáticas” (BONNEWITZ, 2003).

Bourdieu desenvolve uma proposição teórica específica para fundamentar suas pesquisas, apropriando-se e redefinindo algumas contribuições de três grandes sociólogos: Marx, Weber e Durkheim (GONÇALVES; GONÇALVES, 2010; BONNEWITZ, 2003). De acordo com Bonnewitz (2003), as relações entre Bourdieu e o marxismo não são simples de descrever. De Marx há a forte influência do paradigma da dominação e das relações de força e conflitos sociais daí gerados. No entanto, conforme Gonçalves e Gonçalves (2010) e Bonnewitz (2010), Bourdieu estabelece rupturas e questionamentos quanto a tradição marxista. Valle (2007, p.123) destaca que

As análises marxistas vêem o mundo social como um espaço unidimensional, onde tudo é orientado e conduzido, direta ou indiretamente, em função do modo de produção econômica e das contradições dele geradas. Para Bourdieu, o mundo social é um espaço multidimensional, que não pode ser reduzido a um determinismo econômico de classe, pois se apresenta diferenciado em campos relativamente autônomos, no interior dos quais os indivíduos ocupam posições determinadas.

Apesar das críticas, há uma familiaridade entre a sociologia de Bourdieu e o marxismo. Ambos pensam a ordem social por meio do paradigma da dominação, ou seja, não é possível ter acesso a uma compreensão clara do espaço social sem evidenciar os antagonismos de

classe. Além disto, a sociologia de Bourdieu também tem uma vocação crítica e, consequentemente, um uso político (BONNEWITZ, 2003).

Segundo Gonçalves e Gonçalves (2010) a partir das críticas a Marx, e visando superar seu limite analítico, Bourdieu utiliza de Weber as noções de representação4 e de legitimidade5. Para os autores, essas noções de Weber são aplicadas em Bourdieu para a compreensão dos mecanismos de dominação e de seu processo de produção, transmissão e manutenção na sociedade.

Já no que diz respeito a Durkheim, conforme Gonçalves e Gonçalves (2010), Bourdieu retoma a discussão e defesa da constituição da Sociologia como ciência, buscando identificar as “leis objetivas” que orientam a realidade social, no entanto, evita “armadilha do positivismo absoluto e do universalismo atemporal” (BONNEWITZ, 2003, p.26).

Em seu livro Coisas Ditas, Bourdieu (2004, p.41) discorre sobre as contribuições desses autores da seguinte forma: “De minha parte, mantenho com os autores uma relação muito pragmática: recorro a eles como “companheiros” [grifo do autor], no sentido da tradição artesanal, como alguém a quem se pode pedir uma mão nas situações difíceis”, ou seja, apesar das críticas feitas a cada um desses autores, Bourdieu aproveita o que de melhor cada um tem a contribuir sob o seu ponto de vista.

Bourdieu desenvolve diversas críticas tanto epistemológicas, quanto metodológicas e umas das principais delas é quanto a oposição entre os partidários da abordagem objetivista ou positivistas e os partidários da abordagem subjetivista (BONNEWITZ, 2003). Para Misoczky (2011) uma das maiores dificuldades no entendimento das formulações de Bourdieu é o fato de que o autor articula duas tradições epistemológicas opostas: o positivismo e a hermenêutica. Segundo a autora, entre os obstáculos a serem superados no caminho de uma ciência da sociedade se encontrava a oposição entre duas dimensões teóricas aparentemente contrárias: objetivismo e subjetivismo. Enquanto que na perspectiva objetivista predomina a concepção de que a realidade social se constitui de conjuntos de relações e forças que se impõem aos agentes, para as abordagens predominantemente subjetivistas, a realidade social é o agregado de inumeráveis atos de interpretação por meio dos quais as pessoas, em conjunto, constroem linhas significativas de ação (MISOCZKY, 2011).

4 Em relação ao sentido conferido pelos agentes para suas ações (dimensão simbólica) (GONÇALVES; GONÇALVES, 2010, p. 38).

5 Qualidade de adesão, aceitação e reconhecimento de algo pelos agentes (GONÇALVES; GONÇALVES, 2010, p. 38).

O objetivismo considera que “os fatos falam por si mesmos” e reflete o empirismo. Os procedimentos desta forma são determinados pelas ciências naturais ou físicas. Tais procedimentos consistiriam em procurar leis objetivas que governam todos os comportamentos humanos, independentemente dos sujeitos e de suas representações, ou seja, insiste-se nos determinismos que pesam, de fora, sobre os sujeitos (BONNEWITZ, 2003). Já o subjetivismo é a tendência a privilegiar o individual e a centrar a análise sobre o sujeito, principalmente sobre sua personalidade. O subjetivismo na sociologia se traduz pelas teorias individualistas que insistem sempre na noção de liberdade do sujeito, indicando com isso, que o sujeito está livre de qualquer determinação (BONNEWITZ, 2003).

Desse modo, o mundo social seria passível de duas leituras aparentemente contraditórias: uma estruturalista e outra construtivista. Conforme demonstra Misoczky (2011), Bourdieu defende que a oposição entre essas duas abordagens é artificial e mutiladora (WACQUANT, 2006). É a partir de sua abordagem metodológica denominada conhecimento praxiológico que Pierre Bourdieu busca superar este dilema clássico do pensamento sociológico (VALLE, 2007).

O conhecimento praxiológico não se restringiria a identificar as estruturas objetivas externas aos indivíduos, tal como o faz o objetivismo, mas buscaria investigar como essas estruturas encontram-se interiorizadas nos sujeitos constituindo um conjunto estável de disposições estruturadas que, por sua vez, estruturam as práticas e as representações das práticas. Essa forma de conhecimento buscaria apreender, então, a própria articulação entre o plano da ação ou das práticas subjetivas e o plano das estruturas. (NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2004, p. 26). Tem como objeto não somente o sistema das relações objetivas que o modo de conhecimento objetivista constrói, mas também as relações dialéticas entre essas estruturas e as disposições estruturadas, nas quais elas se atualizam e que tendem a reproduzi-las, isto é, o processo de interiorização da exterioridade e de exteriorização da interioridade (BONNEWITZ, 2003).

Bourdieu (2004) utiliza a expressão estruturalismo construtivista para caracterizar o seu trabalho, expressando desta forma, a articulação dialética entre objetivismo e subjetivismo. Conforme o autor

por estruturalismo ou estruturalista, quero dizer que existem, no próprio mundo social e não

apenas nos sistemas simbólicos - linguagem, mito, etc., estruturas objetivas, independentes da consciência e da vontade dos agentes, as quais são capazes de orientar ou coagir suas práticas e representações. Por construtivismo, quero dizer que há, de um lado, uma gênese social dos esquemas de percepção, pensamento e ação que são constitutivos do que chamo de habitus e, de outro, das estruturas sociais, em particular do que chamo de campos e grupo, e particularmente do que se costuma chamar de classes sociais (BOURDIEU, 2004, p.149).

De acordo com Misoczky (2011), para efetivar esta síntese dialética entre objetivismo e subjetivismo, Bourdieu precisou desenvolver um conjunto teórico-conceitual que se ancora nas noções de capital, campo e habitus. Bourdieu e Wacquant (1992) salientam que os conceitos de habitus, campo e capital não podem ser definidos em isolamento, pois estão interligados.

No que diz respeito ao capital, Bourdieu não limita seu uso somente à área econômica. Conforme Bonnewitz (2003, p. 53-54) é possível distinguir quatro tipos principais de capital: o capital econômico, que é constituído pelos diferentes fatores de produção (terras, fábricas, trabalho) e pelos conjuntos de bens econômicos (renda, patrimônio, bens materiais); o capital cultural, que corresponde ao conjunto das qualificações intelectuais produzidas pelo sistema escolar ou transmitidas pela família, podendo existir sob três formas: em estado incorporado, como disposição duradoura do corpo (por exemplo a facilidade de expressão em público); em estado objetivo, na forma de bens culturais (a posse de quadros, de obras); e ainda, em estado institucionalizado, ou seja, socialmente sancionado por instituições (títulos acadêmicos, por exemplo); o capital social, que se define essencialmente como o conjunto das relações sociais de que dispõe um indivíduo ou grupo. A detenção deste capital implica um trabalho de instauração e manutenção das relações, ou seja, um trabalho de sociabilidade (convites recíprocos, lazer em comum); e por fim, o capital simbólico, que corresponde ao conjunto dos rituais (como as boas maneiras ou o protocolo) ligados à honra ou ao reconhecimento. Segundo Bourdieu (1996), o capital simbólico fornece poder ou legitimidade (poder simbólico), ao agente ou grupo que o possui, a partir de seu reconhecimento dentro de determinado campo, ou seja, é o poder

atribuído àqueles que obtiveram reconhecimento suficiente para ter condição de impor o reconhecimento.

O campo por sua vez, é tanto um campo de forças, cujas necessidades se impõem aos agentes que nele se encontram envolvidos, quanto um campo de lutas, no qual os agentes se enfrentam, com meios e fins diferenciados conforme sua posição na estrutura do campo de forças, contribuindo desta forma, para a transformação ou conservação de sua estrutura (BOURDIEU, 1996, p.50).

Segundo Thiry-Cherques (2006) o campo pode ser conceituado como um segmento do social, cujos indivíduos e grupos têm disposições específicas, a que Bourdieu denomina habitus. A teoria do habitus e a teoria do campo são entrelaçadas, ou seja, uma é o meio e a consequência da outra. O conceito de habitus constitui uma via de mão dupla com a noção de campo e para entendê-los, não se pode dissociá- los (WACQUANT, 2006). Thiry-Cherques (2006) acrescenta, também, que o campo é delimitado pelos valores ou formas de capital que lhe dão sustentação, isto é, relacionam-se com os gostos compartilhados que fazem sentido ao grupo.

O que determina a existência de um campo e demarca os seus limites são os interesses específicos, ou seja, os investimentos econômicos e psicológicos entre os agentes dotados de um determinado habitus e as instituições inseridas nesse campo. O interesse é condição de funcionamento de um campo (campo científico, campo da alta- costura, campo intelectual, campo artístico, campo militar), na medida em que isso é o que estimula as pessoas, o que as faz concorrer, rivalizar e lutar (BOURDIEU, 2004). Os campos resultam de processos de diferenciação social, da forma de ser e do conhecimento do mundo. Cada campo cria o seu próprio objeto (artístico, educacional, político) e o seu princípio de compreensão, os campos são “espaços estruturados de posições” em um determinado momento e podem ser analisados independentemente das características dos seus ocupantes. São microcosmos sociais, com valores, objetos e interesses específicos (BOURDIEU, 2004).

Para Thiry-Cherques (2006) o conceito de campo é fruto do “estruturalismo genético” de Bourdieu. Um estruturalismo que se detém na análise das estruturas objetivas dos diferentes campos, mas que as estuda como produto de uma gênese, isto é, da incorporação das estruturas preexistentes (BOURDIEU, 2004). O autor discorre ainda, que os agentes aceitam os pressupostos cognitivos e valorativos do campo ao qual pertencem e o direito de entrada no campo é dado pelo reconhecimento dos seus valores fundamentais e pelo conhecimento das

regras do jogo. Portanto, percebe-se que todo campo se caracteriza por agentes dotados de um mesmo habitus. O campo estrutura o habitus e o habitus constitui o campo (BOURDIEU, 2009). Desta forma, a seguir será abordado o conceito de habitus, haja vista ser uma das categorias do presente estudo.

2.2.1 O HABITUS

O habitus é um conceito central da sociologia bourdieusiana, que fornece a articulação, a mediação, entre o individual e o coletivo e garante a coerência entre a concepção da sociedade e a do agente social individual (BONNEWITZ, 2003). Conforme o autor, o conceito de habitus permite compreender de que maneira o homem se torna um ser social e é um fator explicativo da lógica de funcionamento da sociedade. Bourdieu (2003) compartilha da ideia de Marcel Maus de que as estruturas sociais imprimem suas marcas no corpo. Assim como Mauss reconhece a dimensão corporal da hexis como porte ou postura, a noção de habitus serve para referir o funcionamento sistemático do corpo socializado (BOURDIEU, 2003).

Parece-me, com efeito, que os utilizadores da palavra habitus se inspiravam numa intenção teórica próxima da minha, que era a de sair da filosofia da consciência sem anular o agente na sua verdade de operador prático de construções de objeto [...] no caso como Mauss, o qual reconhece a dimensão corporal da hexis como porte ou postura, a noção serve para referir o funcionamento sistemático do corpo socializado (BOURDIEU, 2003, p. 62).

Bourdieu (re)introduziu em 1962 no artigo Célibat et condition paysanne, a antiga noção aristotélico-tomista de habitus. O autor descreve a disjunção traumática entre as competências e expectativas incorporadas do homem rural e das mulheres locais, que, estando mais abertas à influência cultural da cidade, tinham passado a perceber e avaliar esses homens sob uma ótica urbana que desvalorizava radicalmente os seus modos, tornando-os, “incasáveis”(WACQUANT, 2002b; 2006, grifo do autor). Neste artigo publicado posteriormente com o nome Le paysant et son corps6, Bourdieu (2006) demonstra como as

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posições econômicas e sociais influenciam no crescimento da taxa de celibato, graças a mediação da consciência incorporada que os homens adquirem de sua posição social.

Baseado em um estudo realizado nos anos 1960 no Béarn, cidade no Sudoeste da França, o autor retrata a cena de um baile local7 e demonstra o choque cultural entre o campo e a cidade e a consequente desvalorização dos jovens do campo quando as categorias urbanas de julgamento penetram no mundo rural. O camponês internaliza a imagem desvalorizada que os outros formam de si a partir das categorias urbanas, e passa a perceber seu próprio corpo como um corpo “encamponizado”, carregado dos traços das atividades e das atitudes associadas à vida rural. A má consciência que o camponês tem de seu corpo leva-o a romper a comunhão com ele e a adotar uma atitude introvertida que amplia a vergonha e o sem-jeito produzidos pelas relações sociais marcadas pela extrema segregação dos sexos e pela repressão do compartilhamento das emoções (BOURDIEU, 2006).

Com base em uma observação feita por um sujeito em sua pesquisa, Bourdieu (2006) demonstra como as técnicas corporais constituem verdadeiros sistemas solidários a todo um contexto cultural e que a observação popular apreende essa hexis, que serve de fundamento aos estereótipos:

“Os camponeses de antigamente”, dizia um idoso da cidadezinha, “andavam sempre com as pernas arqueadas, como se tivessem os joelhos virados para dentro, com os braços curvados” (P. L.-M.: 88 anos, natural de Lesquire; residente no bourg; solteiro; educação: nível primário). Para explicar essa atitude, ele alude à postura do ceifeiro. A observação crítica dos moradores da cidade, hábeis para perceber o habitus do camponês como uma verdadeira unidade sintética, dá ênfase à lentidão e ao peso do andar; o homem da brane [região das montanhas] é, para o habitante do bourg, aquele que sempre caminha em um solo

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Na sociedade antiga, o casamento era, sobretudo, assunto da família, ao passo que hoje a busca do parceiro é, como se sabe, reservada à iniciativa do indivíduo. Em virtude da separação radical entre a sociedade masculina e a sociedade feminina, em virtude do desaparecimento dos intermediadores e do afrouxamento dos laços sociais tradicionais, os bailes que periodicamente se realizam no bourg ou nos vilarejos vizinhos se tornaram a única ocasião socialmente aprovada de encontro entre os sexos (BOURDIEU, 2006, p. 84).

irregular, acidentado e lamacento, mesmo quando anda no asfalto da carrère [rua principal]; é aquele que arrasta galochas enormes ou botas pesadas, mesmo calçando seus sapatos de domingo; é quem sempre avança com passos lentos e largos, como quando anda com uma vara no ombro, virando-se às vezes para chamar o gado que o segue. [...] por um lado, essa etnografia espontânea dos moradores da cidade apreende as técnicas corporais como elemento de um sistema e postula implicitamente a existência de uma correlação, no nível do sentido, entre o peso do andar, o mau corte da roupa e a falta de jeito na expressão; por outro lado, essa etnografia indica que é, sem dúvida, no nível dos ritmos que se encontraria o princípio unificador (apreendido de maneira confusa pela intuição) do sistema das atitudes corporais características do camponês (BOURDIEU, 2006, p.85).

Dessa forma o autor afirma ser a hexis corporal, antes de tudo, um signum social e demonstra por meio de outros relatos, que aquilo que se denomina “jeito camponês” é, sem dúvida, “o resíduo irredutível de que mesmo aqueles camponeses mais abertos ao mundo moderno, isto é, mais dinâmicos e inovadores em sua atividade profissional, não chegam a se livrar” (BOURDIEU, 2006, p.86).

Co. dançava de forma conveniente, mas sem que jamais tivesse podido – e isso apenas por sua classe – fazer um convite a outras moças, senão às camponesas, para uma dança (P. C.).

Dele se diz o seguinte: n’ey pas de hère, ou seja, ao pé da letra, “ele não é de feira” (para ir ao festival, vestia-se o que se tinha de melhor), ele não é bem apresentável. Assim, particularmente atentas e sensíveis, devido a toda sua formação cultural, aos gestos e atitudes, aos trajes e ao conjunto do comportamento (tenue), prontas para deduzir a personalidade profunda a partir da aparência (apparence) exterior, as moças, mais abertas aos ideais da cidade, julgam os homens segundo critérios que lhes são alheios; avaliados segundo esse padrão, eles são desvalorizados.

Com isso, Bourdieu (2006) afirma que o camponês é levado a introjetar a imagem que os outros fazem dele, mesmo quando se trata de um mero estereótipo, passando a perceber seu corpo como corpo cunhado pela impressão social, corpo rude, carregando o traço das atitudes e atividades associadas à vida camponesa, e, em consequência, fica embaraçado em relação a seu corpo e em seu corpo.

Esses relatos demonstram de que forma as práticas cotidianas vão se interiorizando e enfatizam, assim como no conceito de Bourdieu (1980), que o habitus é um sistema de disposições duradouras adquirido pelo indivíduo durante o processo de socialização.

Os condicionamentos associados de uma classe particular de condições de existência produzem habitus, sistemas de disposição duradouros e transponíveis, estruturas estruturadas dispostas a funcionar como estruturas estruturantes, isto é, como princípios geradores e organizadores de práticas e representações que podem ser objetivamente adaptadas ao seu objetivo sem supor a visada consciente de fins e o controle expresso das operações necessárias para atingi- los, objetivamente reguladas e regulares, sem ser em nada o produto da obediência a regras e sendo tudo isso, coletivamente orquestradas sem ser o produto da ação organizada de um maestro (BOURDIEU, 1980, p. 88-89).

Na medida em que os comportamentos e valores aprendidos são considerados óbvios, naturais, quase instintivos, a interiorização permite agir sem ser obrigado a lembrar-se explicitamente das regras que é preciso observar para agir (BONNEWITZ, 2003).

O autor distingue, a partir dos conceitos de Bourdieu, dois componentes do habitus: o ethos e a hexis corporal. O ethos designa os princípios ou os valores em estado prático, a forma interiorizada e não- consciente da moral que regula a conduta cotidiana, ou seja, são os esquemas em ação, mas de maneira inconsciente. Já a hexis corporal diz respeito às posturas, disposições do corpo, interiorizadas pelo indivíduo ao longo de sua história. Bourdieu (2007) identifica ainda como elemento do habitus o eidos, que seria um modo de pensar específico, apreensão intelectual da realidade. Para o autor, o habitus é simultaneamente a referência pela qual percebemos e julgamos a

realidade e o produtor de nossas práticas e está na base do que define a personalidade de um indivíduo.

O habitus é a categoria mediadora entre o objetivo e o subjetivo e a utilização do seu conceito auxiliou Bourdieu a romper com o determinismo estruturalista de sua época (WACQUANT, 2006).

O habitus é condicionante e condicionador das nossas ações e é adquirido mediante a interação social sendo, ao mesmo tempo, o classificador e o organizador desta interação (THIRY-CHERQUES, 2006). Conforme Bourdieu (2007), o habitus como sistema de disposições de ser e de fazer constitui uma potencialidade, um desejo de ser que, de certo modo, busca criar as condições de sua realização. Segundo Wacquant (2007) o habitus pode ser entendido como um sistema de disposições duráveis e transponíveis que, integrando todas as experiências passadas, funcionam em cada momento como uma matriz de percepções, apreciações e ações que torna possível cumprir tarefas infinitamente diferenciadas, graças a transferência analógica de esquemas adquiridos numa prática anterior.

Figura 1: O habitus

Portanto, conforme figura 1, o habitus é princípio gerador de práticas objetivamente classificáveis e, ao mesmo tempo, sistema de classificação de tais práticas, sendo nessas relações, que se constitui o estilo de vida. Bourdieu (2008) exemplifica que a visão de mundo de um velho artesão marceneiro, sua maneira de administrar o orçamento, o tempo ou o corpo, sua utilização da linguagem e sua escolha de roupas estão presentes em sua ética do trabalho impecável, aplicado, caprichado e bem acabado.

Bourdieu discorre sobre o habitus primário e o habitus secundário (BOURDIEU; PASSERON, 1977; WACQUANT, 2013). O habitus primário diz respeito às disposições adquiridas lentamente e de forma imperceptível quando criança na imersão familiar. Este habitus