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4 EM CAMPO COM OS MILITARES: A TRAJETÓRIA DA PESQUISA

4.3 A OBSERVAÇÃO PARTICIPANTE: PARTINDO PARA O CAMPO COM OS ALUNOS SOLDADOS

Para alcançar o objetivo proposto com a pesquisa realizou-se observação participante. Os dados coletados pelas observações foram registrados em um diário de campo (APÊNDICE B) para que pudessem compor a análise das informações. O diário de campo que gerou quatrocentas e cinquenta páginas no editor de texto, possibilitou registrar acontecimentos do cotidiano dos alunos soldados e continha data, horário de chegada e saída, locais visitados, descrição dos fatos observados, principais relatos informais dos participantes e interpretações da pesquisadora baseadas em possíveis relações com a literatura. Além do diário de campo, foram feitos com autorização prévia dos participantes, conforme Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (APÊNDICE A), vídeos, fotografias e gravação de áudio. O

Termo de Consentimento foi entregue aos alunos soldados no início das observações.

No que diz respeito à observação participante, o primeiro dia de acompanhamento com turma foi 23 de novembro com o CFO. Acordei cedo, pois seria meu primeiro momento acompanhando a turma e sairíamos para ir ao estande de tiro. O comandante me apresentou à turma e disse que eu iria acompanhá-los nas suas rotinas e enquanto aguardávamos o ônibus, ficamos conversando:

aqui têm muitos mestrandos, pessoas que já deram aula e que chegam aqui e se comportam como aluno. Outro fato estranho é eu ser mais novo, ter 26 anos e ter que comandar pessoas mais velhas... antes o CFO era diferente... a gente entrava e ficava 4 anos... hoje em dia passou a ser 2 anos, mas com a exigência de ter formação em direito (TENENTE JACK, DIÁRIO DE CAMPO). Às 07:20 nos dirigimos para o ônibus. Fui sentada conversando com alguns alunos que perguntavam sobre o trabalho e relatavam as percepções deles à respeito e as maiores dificuldades enfrentadas no curso. Chegamos ao estande de tiro perto das 08:00 horas. No primeiro dia já senti no próprio corpo consequências do curso de formação. A subida é muito forte, íngreme, a estrada é de terra e a subida muito cansativa. Alguns alunos se ofereceram para levar minha mochila mas disse que não precisava. Tive bastante dificuldade para subir, pois cansa muito. Cheguei ao estande bem cansada, com dores nas pernas, um pouco de falta de ar e fiquei quase a manhã toda com tontura. Reflexo de um corpo não preparado, com disposições não incorporadas para as funções que a profissão policial militar exige.

O calor também estava muito forte, o que contribuiu para o mal estar. Todos entraram em forma e o instrutor foi passar as instruções da prova. Segundo o instrutor a prova tem 3 intuitos: criar um estresse mental e emocional, criar a automatização, ou seja, tornar o processo automático e checar os procedimentos. Recebemos óculos e protetor auricular para poder se aproximar da linha de tiro. Inicialmente o instrutor pediu que não ficasse muito próximo por segurança, mas no passar da manhã fui me aproximando mais. Ficamos no estande só na parte da manhã e voltei conversando com os alunos no ônibus. Alguns deles falaram das dificuldades da entrada no mundo militar:

é um choque de realidade muito grande. Só sai final de semana, fica mais difícil porque está longe da família, dos 30 alunos do CFO apenas 4 são do Estado, o restante é tudo de fora. Você é submetido a pressões psicológicas, você está sempre com sono porque a rotina é pesada. [...] para você observar bem vai ter que almoçar aqui com a gente também e você vai observar uma diferença grande entre os CFO e os soldados” (DIÁRIO DE CAMPO).

Chegamos no quartel às 12:00, os alunos foram até o alojamento e depois entraram em forma para ir almoçar. O refeitório dos alunos soldados e dos alunos oficiais são separados, mas a comida é a mesma. Almocei com eles e fiquei conversando com os alunos que estavam na mesa e um deles comentou:

é um choque grande de realidade... vejo 2 opções diferentes... uma acho que se torna muito independente porque passa a ter que fazer tudo sozinho... passar farda, engraxar coturno, arrumar cama, coisa que em casa não fazia... outra já acho que é totalmente dependente, pois não pode fazer nada sem autorização... até para ‘peidar’ tem que pedir permissão... não consigo pagar uma conta minha (CADETE, DIÁRIO DE CAMPO).

Depois de conversarmos fui para biblioteca para aguardar a aula da tarde e fiquei conversando com a bibliotecária. Fiquei folheando os livros que a bibliotecária havia separado para mim e quando chegou o horário da aula, me dirigi para a sala. No final da aula, o instrutor veio conversar comigo e disse: “talvez alguns se incomodem com a sua presença em sala de aula... eu estranhei sua presença e o tempo que você falou que ia ficar” (INSTRUTOR, DIÁRIO DE CAMPO). Por ser um ‘corpo estranho’ ao meio, não socializada, minha presença em alguns momentos causa estranheza à alguns.

Dia 24 de novembro de 2011 foi o primeiro dia de acompanhamento com a turma do CFSD (Curso de Formação de Soldados). Cheguei no quartel as 07:10. O Sargento monitor me apresentou para a turma, falou sobre o meu trabalho, disse que eu iria acompanhá-los no dia a dia, que já tinha sido autorizado pelo comando geral e que era para eles colaborarem no que fosse preciso.

Pode-se observar por este relato, que a inculcação e a incorporação do que está prescrito já faz parte desde o momento que adentram a instituição:

Entramos na quarta-feira passada... nossa semana foi aprendendo marchar, cantar os hinos na hora do almoço... a gente acaba de almoçar e vai marchar com a comida ainda na garganta... e vai depois no final do dia também... até a gente aprender... ontem colocaram a gente para correr... dar 4 voltas no campo com bota e mochila nas costas... 7 levaram FON (falta de observação negativa), porque não estava com o pé do cabelo feito direito, a camisa amassada e não sabiam cantar o hino... aí falaram que se até o final do dia a gente soubesse cantar, aí anulariam a falta... Quando tem FON tem que trabalhar no final de semana... a gente tem que bater continência para todo mundo... até para a sombra... como a gente não sabe quem é mais velho, bate para todo mundo, até para a cozinheira... a gente tem hora para entrar mas não tem hora para sair... (CRISTIAN).

A partir desse dia as observações no campo de pesquisa foram frequentes. Primeiramente havia a intenção de se observar uma turma de CFO e uma turma do CFSD. No entanto, com o decorrer da pesquisa em campo constatou-se que o foco deveria ser dado apenas a um tipo de formação e optou-se pelo Curso de Formação de Soldados.

O pelotão escolhido foi observado da primeira semana de curso até o dia de formatura. Foram noventa e um dias de observação, totalizando seiscentas e quarenta e cinco horas e quarenta e cinco minutos, distribuídos em nove meses de acompanhamento, conforme o apêndice F.

A rotina diária de observação era intensa, o que permitiu acompanhar todo o processo de formação. Observou-se tanto o ambiente formal como o informal dos sujeitos de pesquisa. Participava das aulas teóricas e práticas, além de participar também, de eventos externos ao quartel, como festas de confraternização e saídas noturnas, sendo possível, desta forma, traçar um paralelo das mudanças que estavam ocorrendo no processo de transformação da saída do ‘mundo civil’ para entrada no ‘mundo militar’. Com isso foi possível uma boa integração com o grupo pesquisado. No entanto, a ida alternada ao campo, mantendo uma rotina de idas de duas ou três vezes por semana,

possibilitou certo afastamento do campo, para que a pesquisadora não fosse totalmente afetada com o processo de socialização.

Dentre as atividades acompanhadas, foi possível, dentre outras, assistir as aulas teóricas, participar da aula de defesa pessoal, participar da aula de tiro, efetuar atividades de aulas práticas, almoçar no refeitório, estar presente em barreiras policiais, fazer incursão à favela, fazer um curso de direção tática anti-sequestro, no qual ganhei certificado (ANEXO 1) e simbolicamente um brevê, bem como em uma das aulas teóricas, o professor solicitou que eu também fizesse a prova. As fotos a seguir demonstram algumas dessas atividades.

Foto 2: Treinamento no Paintball 1

Foto 3: Hematomas resultantes do treinamento no paintball

Foto 5: Treinamento de técnica de descida

Foto 6: Treinamento de técnica de descida 2

Foto 8: Curso de Ajuda Humanitária

Foto 9: Confraternização de final de ano

Algumas dessas atividades faziam com que eu sentisse no corpo também as reações da incorporação deste ‘vir a ser policial’. A foto 1 demonstra uma aula prática de defesa pessoal. Fazíamos movimentos repetitivos para assimilar a utilização correta da tonfa12. As fotos 2 e 3 são da prática do paintball. Nesta atividade, os alunos combatiam uns com os outros com armas de paintball para colocar em prática as técnicas policiais aprendidas na teoria. Após participar do combate juntamente com os alunos, também fui ‘batizada’ pelos instrutores. Quando entrei no campo de combate um dos instrutores verbalizou: “chegou a vez da senhora, vira de costas, e fecha as perninhas... assim

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como todo mundo tem que ser batizada” (INSTRUTOR) e assim fui ‘batizada’ com 5 tiros, sendo três na perna e dois no braço e como resultado tive os hematomas e dores por alguns dias.

A foto 4 retrata a aula prática de tiro. Participei de dois exercícios. Ao chegar no estande, o instrutor repassou as atividades do dia e disse: “senhores, hoje nossa aluna ouvinte irá dar uns tiros também... só quero ver se ela irá se sair melhor que os senhores” (INSTRUTOR). Fiquei atenta às explicações do instrutor e após os alunos praticarem durante algum tempo, o instrutor solicitou que eu me posicionasse para realizar a atividade. No primeiro exercício dei cinco tiros e acertei três perfeitos conforme era solicitado para os alunos. No segundo, dei quatro tiros e acertei de forma correta três deles, sendo dois no peito e um na cabeça do alvo. Enquanto atirava, o instrutor permanecia ao meu lado dando as instruções corretas. O exercício oportunizou-me experenciar uma prática que é essencial para a profissão. O ‘tranco’ que a arma dá é forte e realmente assim como o Major havia explicado anteriormente nas instruções, tem que se ter muita firmeza na empunhadura para não desviar o tiro. Apesar de ter sido poucos tiros, senti no meu próprio corpo consequências do treinamento tais como: a necessidade de força e firmeza para empunhar a arma, as dores no decorrer da semana na parte interna da mão em razão da firmeza no segurar e da pressão em consequência do disparo e a ansiedade para efetuar os disparos de forma segura e atingindo o alvo esperado.

Nas fotos 5 e 6, os instrutores questionaram se eu gostaria de fazer a atividade prática como os alunos soldados estavam fazendo. Após responder positivamente, os instrutores deram as instruções conforme estavam repassando para os demais alunos e iniciei a atividade. Estava nervosa, ansiosa, as mãos suavam, no entanto, estava focada nas recomendações e realizei a tarefa corretamente. Os alunos soldados ficaram na expectativa e ao final da atividade aplaudiram parabenizando-me pela coragem. A foto 7 demonstra uma aula teórica, já a foto 8 é do Curso de Ajuda Humanitária, no qual ao final, teve um voo de helicóptero. Finalmente a foto 9 retrata uma confraternização de final de ano com alguns alunos e instrutores, no qual pôde-se participar do ambiente informal dos alunos soldados. Os alunos soldados diariamente recebiam algum tipo de missão a ser cumprida. Uma dessas missões era ser guardião da sala e dos materiais em sala de aula enquanto era feito a formatura no pátio do CEPM. Um dos alunos permanecia em sala cuidando dos materiais e os demais iam “formar”. Em determinado dia, ao chegar na sala de aula, o chefe de turma me

disse: “hoje a missão é sua, você ficará com a chave da sala de guardiã cuidando das coisas”. Fiquei surpresa com a “missão recebida” e assim, permaneci na sala fazendo a guarda dos materiais, conforme foto 10.

Foto 10: Missão recebida de guarda de material

Percebe-se desta forma, que a observação participante auxiliou a pesquisadora a compreender de forma prática os processos de socialização do curso de formação de soldados. A abertura dada pela diretoria do CEPM permitiu que todos os processos de formação fossem acompanhados. Todas as sextas-feiras recebia por e-mail juntamente com os alunos, o QTS (Quadro de Trabalho Semanal) da semana seguinte, no qual continha todas as atividades diárias que seriam realizadas.

Os primeiros dias foram de adaptação não somente para os alunos, mas também para a pesquisadora. Conforme relato do diário de campo, nos primeiros dias de aula, o comportamento dos alunos soldados ainda era ‘muito civil’. A disciplina ainda não estava incorporada. Havia muitas conversas paralelas durante a aula, barulho, contestações às regras. Um comportamento que chamou atenção nos primeiros dias de aula foi em um intervalo, quando um aluno soldado desceu a escada escorregando pelos corrimões e gritando (NOTA DE CAMPO), comportamento que não foi mais observado com o decorrer do tempo. Neste momento, a linguagem e a postura ainda não estavam conformadas de acordo com o que é ensinado e exigido durante o Curso. A rotina de observação era cansativa e desgastante. Geralmente chegava cedo no quartel, acompanhava o hasteamento da bandeira e me dirigia para sala de aula juntamente com os alunos. Durante o dia, participava dos lanches nos intervalos da manhã e da tarde e almoçava no refeitório do quartel juntamente com os alunos soldados. Os

instrutores e demais policiais do quartel passaram a se acostumar com a minha presença e com o passar do tempo eu deixei de ser mais um ‘corpo estranho no ninho’. Alguns chegavam a prestar continência e em uma determinada situação, um oficial veio até mim solicitar meu nome e pelotão para me aplicar um FON, já que eu estava andando fora do pelotão.

Em sala de aula cada aluno tinha o seu lugar demarcado com um espelho de classe. Eu também possuía o meu lugar, sentava nos fundos, na última carteira (FOTO 7). No início das aulas o chefe de turma me apresentava para o instrutor e em seguida a aula começava normalmente. No decorrer das aulas era possível fazer intervenções e em alguns momentos era tratada como se fosse ‘um deles’, conforme demonstra a fala de um instrutor: “nós temos duas femininas no pelotão. A aluna soldado Júlia e a Aniele” (INSTRUTOR, DIÁRIO DE CAMPO).

As atividades práticas mais aguardadas pelo pelotão eram a prática no Rio Vermelho e a incursão à favela.

No dia da aula prática no Rio Vermelho, eu, assim como os alunos soldados, estávamos apreensivos. Um dos alunos comentou que estava muito nervoso e que não tinha nem conseguido dormir à noite. Assim como eles, eu também estava tensa e ansiosa, afinal não sabíamos como seria a instrução, tínhamos conhecimento somente do que as outras turmas falavam. Pegamos o ônibus da polícia e nos dirigimos para o local de treinamento. Os alunos soldados procuravam liberar o nervosismo fazendo brincadeiras e alguns comentários: “oh pessoal ninguém abre a janela, porque quando a gente chegar lá eles vão jogar uma bomba de gás dentro” (ERASMO). Fui tensa durante todo o percurso. As mãos suavam, os batimentos cardíacos aceleraram e a respiração ficou ofegante. Quando chegamos no campo de treinamento, encontramos na entrada alguns ‘civis’, alunos da UDESC que estavam acompanhando um dos instrutores para fazer um trabalho. Ao vê-los, os alunos soldados comentaram: “que bom que eles vieram também... é mais gente para estar presente” (INÁCIO). O ônibus continuou entrando e falaram: “ih, viu Aniele, era para tu soltar ali junto com eles... agora não tem mais jeito, vai levar gás junto com a gente” (INÁCIO). Quando estava chegando, fiquei de pé e um dos alunos comentou rindo: “oh, ela já ta de pé pra ver pra onde vai correr” (HAROLDO). No local que o ônibus parou, havia algumas crianças do escoteiro. Eu continuava na expectativa, mas já me sentia livre fora do ônibus com a sensação de que se precisasse poderia ‘correr para longe’.

por diversas práticas sentindo o efeito de gases diversos. Enquanto era dada uma instrução sobre o material, foi disparada uma granada de gás e sem que nos déssemos conta, foi se espalhando rapidamente, até que começamos a sentir os efeitos. Corri para beira do lago, no entanto, já não conseguia ficar com os olhos abertos, pois lacrimejavam e ardiam consideravelmente. Apesar de ter sido pega de surpresa, foi uma experiência válida, que mais uma vez permitia-me estar em contato com a incorporação de determinadas disposições. Em uma outra atividade em que os alunos passavam pela experiência do gás lacrimogêneo, eu estava mais afastada e um dos instrutores me chamou para perto e com um tom de voz como se estivesse dando ordem para um aluno soldado me disse: “a senhora venha até aqui. Acha que é fácil assim? Que vai ficar só em sala de aula e assistindo de longe? Se é para ver o que passam, tem que sentir também” (INSTRUTOR). Obedecendo a ordem me aproximei, com medo do que poderia acontecer falei que tinha bronquite e o instrutor continuou insistindo: “anda, vamos, sem medo”. Ao me aproximar, ele chacoalhou o material que tinha na mão próximo a mim e apesar de não ser muito, senti levemente os efeitos enquanto conversava com o instrutor. As fotos 11, 12 e 13 demonstram essa experiência no campo.

Foto 12: Treinamento no Rio Vermelho 2

Foto 13: Treinamento no Rio Vermelho 3

Já no que diz respeito a outra atividade aguardada pelos alunos, a incursão no morro, primeiramente ocorreu uma incursão diurna e uma