Ainda explicitando como os dados então mencionados constituem a expressão
do pintor, Merleau-Ponty considera um ponto abordado por Malraux, a saber: Como as
ampliações fotográficas revelam um estilo comum tanto às miniaturas ou pequenos
detalhes como às obras de grande porte de um pintor.
Entretanto, simultaneamente a essa questão, Merleau-Ponty nos coloca ainda
outra, que também é abordada por Malraux: Como obras de diferentes épocas e culturas
apresentam semelhanças entre si.
Enquanto as duas questões são consideradas de forma distinta por Malraux,
Merleau-Ponty, rejeitando a noção de um Espírito do Mundo que ao guiar os artistas
seria responsável por esses pequenos “milagres”, prefere uni-las, oferecendo a partir de
sua noção de corpo
29uma resposta para ambas.
Reinstalando o pintor no mundo através da noção de percepção, como
observamos o que o pintor coloca em seu quadro é sua percepção estilizada que é
sempre influenciada por vários fatores, Merleau-Ponty também restaura o corpo como
expressão espontânea.
O que a lupa revela, com suas ampliações que mostram o estilo do pintor mesmo
em pequenos detalhes praticamente invisíveis a olho nu, é justamente que não é apenas
o intelecto que possui conhecimento, o corpo também o possui, e que o estilo não é uma
escolha deliberada do artista.
O estilo também envolve esse conhecimento do corpo, que não é
necessariamente intelectual, que faz com que ele deixe impressa sua marca seja em
quadros, letras ou gesto, como uma típica sempre reconhecível. Até os atos mais
simples que nos situam no mundo, como mover-se ou olhar, encerram um operação
corporal onde o corpo é suscitado pelo mundo e através do movimento instala-se nele, e
29Marilena Chaui explicita a noção merleaupontiana de corpo e a natureza de seu envolvimento com a fala: “O corpo, que não é coisa nem idéia, mas espacialidade e motricidade, recinto ou residência e potência exploratória, não é da ordem do “eu penso”, mas do “eu posso”. É ser sexuado, (...) maneira de existir com ou contra os outros, de viver neles ou por eles, de resgatar ou de perder o passado na criação ou na repetição do presente. É expressivo, pois a linguagem não é processo impessoal do aparelho fonador, nem tradução sonora de essências silenciosas, mas gesticulação vociferante, dimensão da existência corporal em que as palavras encarnam significações, e a fala exprime nosso modo de ser noinspecionando-o, o corpo secreta sempre um sentido em suas operações. É, ainda, uma
operação do corpo que nos instala no mundo e, da mesma forma que o corpo gesticula,
as cores nas pinturas, os traços, as palavras “saem de mim como os meus gestos, são-me
arrancados pelo que quero dizer como os meus gestos pelo que quero fazer.” (S,
p.109-94)
Essa operação que encontramos ao analisar a conduta do corpo está enraizada na
cultura, ou antes, é ele que a inaugura na medida em que foi um primeiro gesto que,
estabelecendo uma relação com o mundo e criando uma perspectiva dele, abriu um
campo de infinitas possibilidades, inesgotável à nossa conduta: um mundo da cultura.
30E esse mesmo corpo que se caracteriza por uma expressão primordial na medida
em que é capaz de em ação distender um sentido, também é apto a retomar o gesto já
fundamentado, instalar-se nele, e continuá-lo, como ocorre justamente com a fala
elaborada de uso empírico, a fala falada e cotidiana.
“O movimento do artista trançando um arabesco na matéria infinita amplifica,
mas também continua, a simples maravilha da locomoção ou dos gestos de
preensão. Já no gesto de designação, o corpo não apenas se extravasa para um
mundo cujo esquema traz em si: ele antes o possui à distância do que por ele é
possuído. Com maior razão recupera o mundo o gesto de expressão, que se
encarrega de desenhar ele próprio e de fazer aparecer exteriormente aquilo que
visa. Porém, com nosso primeiro gesto orientado, as relações infinitas de alguém
com a sua situação já haviam invadido nosso medíocre planeta e aberto um
campo inesgotável à nossa conduta.” (S, p. 99-83)
Entretanto, se essa linguagem capaz de sedimentar-se nos traz essa ilusão de que
para expressar um significado é possível continuar um gesto sem retomar o fundo de
silêncio onde ele foi engendrado, é ainda ao momento fecundo do movimento, enquanto
um gesto de um corpo que se instala no mundo e secreta um sentido, que essa mesma
linguagem implica ao criar um significado.
30 Marcos Müller explicita: “Ao polarizar minha existência em um gesto de mãos, do braço ou da face, ao estender à matéria dada a gestualidade de meus dispositivos anatômicos, ao refazer em meu corpo o sistema de gestos já instituído por outrem, eu não apenas participodas relações de implicação orientadas a partir do mundo, como crio novas orientações, desencadeando totalidades eminentemente abstratas. Ou, o que é a mesma coisa, deflagro totalidades independentes em relação à minha vida perceptiva. Ainda que instituídas por mim, tais totalidades podem ser retomadas por outrem, assim como dele, numa situação inversa, eu as posso aprender. Eis aqui as significações intersubjetivas ou culturais.” (MÜLLER, M. J. Merleau-Ponty acerca da expressão. p. 217)