• Nenhum resultado encontrado

Compreendemos que toda linguagem é uma continuação de um gesto corporal, e

que, por conseguinte, reflete a mesma estrutura que envolve a percepção: uma ação

corporal inaugural que ganha sentido através da expressão, e fecundidade graças a uma

historicidade.

Portanto, enquanto uma determinada configuração do visível que exprime um

significado e é capaz de suscitar uma série de expressões anteriores, a pintura também é

linguagem.

Conforme Merleau-Ponty, essa comparação da pintura com a fala é proveitosa

para toda linguagem, pois nos mostra que por trás da linguagem sedimentada da fala

empírica, ou fala falada, está essa mesma operação inaugural que vislumbramos até

então através da pintura.

31

Detectamos sob a linguagem falada uma camada expressiva onde, assim como

as coisas visuais, as palavras são coisas que vivem uma vida misteriosa, incerta,

unindo-se e unindo-separando-unindo-se conforme um unindo-sentido indireto que as permeia, para formar, através de

suas correlações, um significado que quando realizado parecerá evidente. Desse modo,

antes dessa fala sedimentada, que gera essa ilusão de que a fala transmite significados

óbvios, temos uma fala operante que experimentou a mesma aventura silenciosa que

todos os outros modos de expressão.

Todavia, se Merleau-Ponty detecta, necessariamente, sob toda linguagem uma

mesma operação expressiva, à fala ele ainda atribui um poder de sedimentação, que, se

não é capaz de diferenciar radicalmente a fala dos outros modos de expressão, pode nos

revelar porque ela nos dá uma impressão de transparência em relação à transmissão do

significado, e aqui talvez nos mostrar alguma vantagem da fala sob as artes mudas.

31

Sobre essa característica originária da arte, fala Marcos Müller: “Ao contrário do que sucede à fala ordinária, as obras de arte não permitem que suas significações possam subsistir, senão na forma dos comportamentos originários. (...) Exprimo significações que, uma vez faladas, passam a existir independentemente dos gestos verbais originários. Trata-se das significações conceituais, também denominadas de pensamento. Posso ensinar uma significação conceitual, assim como retomá-la de outrem, sem precisar reeditar as mesmas palavras, segundo as quais, pela primeira vez, ela passou a existir para mim. Nos comportamentos artísticos, em contrapartida as significações propriamente artísticas não se distinguem das significações existenciais e, por conseguinte, das operações simbólicas

Resta-nos, portanto, perguntar quais são as conseqüências dessa capacidade de

sedimentação da fala.

Questionando-se sobre a possibilidade de que a sedimentação sofrida pela

linguagem falada seja o reflexo de uma mais alta capacidade de acumulação tácita que

teria o “poder de resumir e de encerrar realmente num único ato todo um devir de

expressão”( S, p. 110-95), Merleau-Ponty, através de um paralelo entre pintura e fala,

volta-se para a sedimentação da fala.

Revelando a mesma estrutura envolvida na expressão, um romance, da mesma

forma que um quadro, também exprime tacitamente:

“O romancista mantém com seu leitor, todos os homens com todos os homens,

uma linguagem de iniciados: iniciados no mundo, no universo dos possíveis

detidos num corpo humano, numa vida humana. Pressupõe conhecido o que tem

a dizer, instala-se na conduta de uma personagem e apenas apresenta ao leitor a

sua marca, seu rastro nervoso e peremptório no que a cerca.” (S, p. 110-95)

A princípio, assim como em um quadro, o sentido de um romance, conforme

Merleau-Ponty, se dá como uma deformação coerente imposta ao visível, pois

transporta-nos de um mundo já dito para outra coisa, para um sentido novo. Um

romance assim como um quadro precisa “apresentar-se inicialmente e sempre num

movimento que descentraliza, distende, solicita para um maior sentido a nossa imagem

do mundo. É assim que a linha auxiliar introduzida numa figura abre caminho a novas

relações, é assim que a obra de arte operará sempre em nós.” (S, p. 112-98)

Essa marca silenciosa da fala ainda não sedimenta nos mostra que a palavra

32

não é simplesmente um meio a serviço de um fim exterior, a vestimenta de uma idéia,

que não é possível separar a palavra de seu sentido, ou signo do significado. Antes,

através de sua obliqüidade, a fala nos oferece matrizes de idéias, significados que,

podendo remeter-se a outras coisas, estão sempre em desenvolvimento.

Se até então, em busca de diferenças entre a fala e a pintura, partimos da gênese

de ambas as linguagens e vislumbramos a mesma operação expressiva, será no seu

desenvolvimento que a fala poderá distinguir-se das artes mudas.

32

Definindo a noção de palavra em Merleau-Ponty, escreve Marcos Müller:“(...) as palavras têm um interior, que não é um pensamento fechado sobre si e consciente de si, ou um mecanismo fisiológico a determinar os demais, mas a estrutura espontânea dos diversos comportamentos de minha existência em torno dos dispositivos anatômicos envolvidos na fala.” (MÜLLER, M. J. Merleau-Ponty acerca da expressão. p. 241)

Enquanto as artes mudas apenas contem o passado, como a pintura, por

exemplo, é sempre um recomeço de um idioma próprio onde cada quadro é

simplesmente acrescentado a outro, a fala retoma a língua, sem substituí-la por um novo

idioma e a reconstrói. Ela não apenas contém o passado, enquanto um idioma, ela o

retoma e o continua, sem desvencilhar-se dele para isso. Ela contém o passado num

estado manifesto.

“A palavra, não contente de ir além do passado, pretende recapitulá-lo,

recupera-lo, contê-lo em substância, e como não poderia, a não ser que o

repetisse textualmente, no-lo dar em sua presença, ela o submete a uma

preparação que é a característica da linguagem: oferecenos a verdade dele. Não

se contenta em prolongá-lo arrumando um lugar para si no mundo. Quer

conservá-lo em seu espírito ou em seu sentido. Enreda-se portanto em si mesma

retifica-se, reanima-se.” (S, p. 114-99)

A pintura transforma o passado em pintura, enquanto a fala ao transformá-lo,

conserva seu sentido e utiliza-o. Portanto, a significação na fala é conservada de um

modo diferente em relação às linguagens mudas.

Essa condição da fala nos mostra que nela cada ato parcial de expressão não se

restringe a expressar um acúmulo de sentido, mas recria o sentido que também faz parte

de sua expressão. Há um ultrapassamento dos signos, pois os signos não evocam apenas

outros signos, essa espécie de ultrapassamento nos faz vislumbrar, afinal, o que os

signos querem dizer.

“Portanto, quando se compara a linguagem com as formas mudas de expressão,

é preciso acrescentar que ela não se contenta, como estas, em desenhar na

superfície do mundo direções, vetores, uma ‘deformação coerente’, um sentido

tácito, (...) que se esgota ao produzir, como um caleidoscópio, uma nova

paisagem de ação; não temos aqui somente troca de um sentido por outro, mas

substituição de sentidos equivalentes, a nova estrutura se dá como já presente na

antiga, esta subsiste nela, o passado agora é compreendido.” (S, p. 116-101)

Todavia, esse tipo de acumulação da fala é provisória. Essa sua presunção de

uma acumulação total esbarra-se no tempo, pois ainda que haja uma acumulação de

significados, essa síntese não deixa de ser uma síntese de um sentido, não contendo

efetivamente toda a opulência do sentido em seu habitat, ele não está em sua situação,

ele não é tudo o que continha, ele está sintetizado.

Ainda que acumule sentido, ainda que haja um ultrapassamento do signo, o

escritor não transpassa efetivamente a linguagem

33

. Conforme sugere Merleau-Ponty,

não é para além da linguagem que o escritor atinge as próprias coisas, e sim, é pelo uso

da linguagem que ele o faz.

Ademais, se linguagem tem esse poder de fazer com que suas formulações

pareçam independentes de sua estrutura, como se o sentido fosse apenas designado

pelas palavras; o sentido, como em todos os outros modos de expressão, continua a ser

silêncio e não mera designação óbvia e transparente, pois está engendrado no edifício,

nas obliqüidades, nas contingências da fala, sem a possibilidade de ser disjunto dessa

edificação.

“De qualquer modo, nenhuma linguagem se separa totalmente da precariedade

das formas de expressão mudas, não reabsorve a própria contingência, não se

consome para fazer aparecer as próprias coisas; que nesse sentido o privilégio

da linguagem sobre a pintura ou sobre o uso da vida permanece relativo, que

enfim a expressão não é uma das curiosidades que o espírito pode propor-se

examinar, é sua existência em ato.”(S, p. 113-98)

33 “Como não comparo o que quero exprimir com os meios de expressão, os signos têm um sentido imanente; se a expressão é a passagem de uma significação institucional a uma significação inédita, o resultado da expressão não pode ser realizado previamente em um céu de idéias. Assim, aquém da expressão convencional, que não opera uma verdadeira comunicação, podemos admitir uma ‘operação primordial’ na qual o exprimido não existe à parte da expressão e lhe éinseparável.” (MOURA, C. A. R. Racionalidade e Crise.p. 248)

Capítulo 3

A pintura e o visível