Mais do que revelar os interstícios do visível, ao expor como linha, forma,
movimentos, profundidade, são ramos do Ser, Merleau-Ponty nos mostra dessa forma,
também, que todos esses elementos que compõem a pintura estendem-se sobre o mesmo
solo, fazem parte da mesma Carne, e que, portanto, podem trazer consigo toda a
ramagem do Ser. Já vimos como a cor, por exemplo, com sua dimensionalidade, pode
expressar profundidade, ou como a linha não é simplesmente um contorno limitador do
objeto.
Sobre essa conclusão, de que a pintura estende-se sobre um mesmo solo cujo
logos estético consagra-se à visão, Merleau-Ponty afirma, finalmente, que a
continuidade da pintura, a passagem do antigo para o clássico, e desse para o moderno,
não constitui uma evolução.
Esse caráter estacionário da pintura é revelado pela constatação de que,
construindo-se sob um mesmo solo, o de sentido bruto, e dispondo-se de um mesma
“ferramenta” de apreensão, a visão, todos os problemas da pintura têm um parentesco,
assim como os caminhos, ou suas soluções. “Já que profundidade, cor, forma, linha,
movimento, contorno, fisionomia são ramos do Ser, e cada um deles pode trazer
consigo toda a ramagem, não há em pintura ‘problemas parciais, nem progresso por
acumulação, nem opções sem retorno” (OE, p. 45-88)
O pintor, dirá Merleau-Ponty, pode retomar problemas antigos, ou elementos
esquecidos da pintura, sem que essa retomada tenha um significado retrógrado.
Os sistemas de equivalências descobertos pelo pintor fazem com que ele perceba
que abriu “um outro campo em que tudo o que pôde exprimir antes precisa ser dito de
outro modo”. (OE, p. 45-89)
Pintores, escultores, artistas, estão ligados numa única rede do Ser, e se retomam
um problema já exaustivamente trabalhado no passado, não é para, como seus
antecessores, buscar um solução já encontrada. Por outro lado, sua solução, seus estudos
também não constituirão uma descoberta inteiramente nova e independente.
Tal como o mundo se oferece para nós, também na pintura nada é jamais
adquirido, resolvido e acabado. O pintor é capaz de retomar um problema, encontrar
uma nova solução para ele sem que essa solução seja definitiva ou autônoma, pois, de
alguma forma, “o verdadeiro pintor subverte sem o saber os dados de todos os outros.”
(OE, p. 45-89)
Dessa forma, “a idéia de uma pintura universal é desprovida de sentido. Mesmo
daqui a milhões de anos, o mundo, para os pintores, se os houver, ainda estará por
pintar, ele findará sem ter sido acabado” (OE, p. 45-90)
Essa historicidade da pintura, que não é evolutiva, não expõe uma deficiência do
trabalho do pintor, ou que ele simplesmente está perdido sem saber o que quer. Antes,
revela-nos que ele ultrapassa esse mundo de sentidos construídos, um mundo cultural, e,
de certa forma, expõe ou re-configura o mundo sobre o qual a cultura há de construir,
pois “(...) o que ele quer está aquém dos objetivos e dos meios, e comanda do alto a
nossa atividadeútil.” (OE, p.26-90)
Portanto, mais do que desvendar essa historicidade da pintura que não se
constituiu como uma evolução, mas sim através de imbricações, Merleau-Ponty nos
mostra que no fundo toda cultura, todo pensamento, todas as ciências possuem esse
caráter estacionário.
“E se [tal como Merleau-Ponty o fizera], nos responderem que nenhum
pensamento se separa inteiramente de um suporte, que o único privilégio do
pensamento falante é ter tornado o seu manejável, que as figuras da literatura e
da filosofia tampouco são como as da pintura realmente adquiridas, não se
acumulam num tesouro estável, e que mesmo a ciência ensina a reconhecer uma
zona fundamental povoada de seres espessos, abertos, dilacerados, impróprios a
ser tratados exaustivamente, (...), e, enfim, que não estamos em parte alguma em
condições de fazer um balanço objetivo nem de pensar um progresso em si, que é
toda a história humana que num certo sentido é estacionária. (...) Será o mais
alto ponto da razão constatar que o chão desliza sob nosso passos, chamar
pomposamente de interrogação um estado de estupor continuado, de pesquisa
um caminho em círculo, de Ser o que nunca é inteiramente?” (OE, p. 46-91)
É de um falso imaginário, ou talvez de uma idéia clássica de adequação
intelectual, que concluímos erroneamente que esse estado que a pintura revela, e que, de
alguma maneira, é o estado de toda nossa cultura, é uma vã paralisia. E que por isso a
pintura nada nos tem a ensinar.
Merleau-Ponty esclarece:
“Se nem em pintura nem alhures podemos estabelecer uma hierarquia das
civilizações ou falar de progresso, não é que algum destino nos retenha atrás, é
antes que, em certo sentido, a primeira das pinturas ia até o fundo do futuro. Se
nenhuma pintura completa a pintura, se mesmo nenhuma obra se completa
absolutamente, cada criação modifica, altera, esclarece, aprofunda, confirma,
exalta, recria ou cria antecipadamente todas as outras. Se as criações não são
uma aquisição, não é apenas que, como todas as coisas, elas passam, é também
que elas têm diante de si quase toda a sua vida.”(OE, p. 46-92)
Conclusão
Do estilo
Em vista do discurso merleau-pontiano sobre a relação entre o estilo e a
significação de uma obra
56, discurso concentrado principalmente em seu ensaio A
linguagem indireta e a vozes do silêncio, não é de todo despropositado iniciar essa
conclusão ponderando sobre as ligações entre as teorias e o estilo ensaístico de
Merleau-Ponty.
De um modo geral, podemos notar que definir e delimitar conceitos é uma
prática pouco freqüente nos textos de Merleau-Ponty.
Tal como em suas teorias sobre a percepção, onde uma relação ambígua entre
perceber e percebido, e entre figura e fundo é fundamental na construção do significado,
o significado de um conceito em um texto de Merleau-Ponty estará entretecido, de uma
forma ambígua, em toda o obra, pois enquanto dá sentido para as teorias apresentadas
no texto, ele será também clarificado e desenvolvido por esse mesmo texto.
Assim, a revelação dos conceitos nos escritos merleau-pontianos, quase sempre,
não se dará de uma forma direta, definida e delimitada, e sim por alusões, metáforas e
imbricações com outros termos e temas recorrentes no texto, ou até mesmo em toda a
obra do autor.
Ainda sobre como os significados dos conceitos são apresentados na obra de
Merleau-Ponty, e, agora, também sobre como suas teorias são desenvolvidas, vale
mencionar uma tipo de estrutura, frequentemente analisada por comentadores, que
consiste em uma crítica e, posteriormente ou paralelamente, em uma reconstrução de
termos e teorias das correntes filosóficas então criticadas.
Essa estrutura insistentemente utilizada por Merleau-Ponty envolve, sobretudo,
uma crítica a pólos dados como opostos, como o empirismo e o intelectualismo, por
56