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Corpo romanceado versus corpo carnavalizado

Além da paródia, outro aspecto observado no romance O dia das moscas é a imagem grotesca do corpo. Cabe lembrar que assim como a paródia, o grotesco encontra-se estreitamente ligado à carnavalização, pois são categorias discursivas de destronamento da cultura oficial.

Tratamos neste momento da valorização/exaltação do corpo feminino em

Iracema, em contrapeso ao corpo grotesco em O dia das moscas. Lembramos que a

concepção do grotesco e sua relação com a carnavalização literária tem uma subseção a ela destinada, na seção três de nossa dissertação.

Retomando o olhar para Iracema de José Alencar e o romance O dia das

claro, do diálogo de contestação, que continua se descortinando a partir da perspectiva do corpo. As personagens femininas, Iracema (de Alencar) e Hosana (matriarca da família Cançado) são confrontadas esteticamente. Esse confronto proposital feito por Nei Leandro coloca em oposição de modo direto duas imagens: a da mulher como objeto de desejo, destinada a amar e sofrer e de feições idílicas encontrada na primeira personagem, em contraste com a segunda, representada através de um corpo grotesco, que através do tesão, da copulação, fecundação e no ato de dar à luz, revela sua historicidade. Vejamos nas passagens de ambas as obras.

Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna, e mais longos que seu talhe de palmeira. O favo da jati não era doce como seu sorriso; nem a baunilha recendia no bosque como seu hálito perfumado. Mais rápida que a corça selvagem, a morena virgem corria o sertão e as matas do Ipu, onde campeava sua guerreira tribo, da grande nação tabajara. O pé grácil e nu, mal roçando, alisava apenas a verde pelúcia que vestia a terra com as primeiras águas (ALENCAR, 2013, p. 27).

A descrição da personagem feminina advinda da tradição romântica condiz com o ideário do autor para a obra, que prevê elementos do romantismo, como o sentimentalismo, o impasse amoroso, a visão do índio como puro e, neste caso, a mulher como pudica, heroína, exaltada e destinada ao amor e ao sofrimento. Do ponto de vista da imagem do corpo, nos é mostrada uma personagem plana, sem deformações ou hiperbolizações, com formas isentas de contrastes, um corpo individual. Sobre esse corpo e suas características, Bakhtin já o havia pensado em sua descrição sobre o cânon corporal na literatura e na arte: “[...] é um corpo perfeitamente pronto, acabado, rigorosamente delimitado, fechado, mostrado do exterior, sem mistura, individual e expressivo [...]” (BAKHTIN, 2010, p. 279), ou seja, em Iracema os elementos corpóreos se apresentam como termos acessórios que ajudam a fermentar a idealização da figura da mulher como um elemento de pureza nacionalista. Esse corpo por não conter contrastes, distancia-se da realidade e não mantém relações exteriores que o afetam, tampouco dualidades. O narrador, inclusive, caracteriza-o a princípio como casto e puro e, mesmo quando este o deixa de ser, ainda o discurso do recato o acompanha:

A filha de Araquém escondeu no coração a sua alegria. Ficou tímida e inquieta, como a ave que pressente a borrasca no horizonte. Afastou-se rápida, e partiu. As águas do rio depuraram o corpo casto da recente esposa.

A jandaia não tornou à cabana. Tupã já não tinha sua virgem na terra dos tabajaras (ALENCAR, 2013, p. 84).

O momento da entrega do corpo casto da índia ao lusitano foi romântico e alheio às expressões diretas, o desvirginamento é narrado magistralmente através do uso de metáforas. Os corpos são descritos apenas em suas ações voluntárias e jamais tem suas imagens comprometidas com ações involuntárias ou com marcas de dualidade, o corpo pelado dá índia, na descrição do narrador não estava nu de pudores.

Completamente ao revés se dá o encontro e a relação entre as personagens de Nei Leandro de Castro. Vejamos.

A índia foi champrada sob o sol das cinco da tarde, seus pés tocando na água morna e transparente do Rio Doce. Não foi uma festa de amor nem um canto de himineu, mesmo porque ninguém por aquelas bandas conhecia o pássaro romântico chamado himineu. O que houve foi tesão recíproco, porque ela abriu as pernas sem resistência e riu alto com a resfolgada do caçador - ãi, ãi, ãi em cima dela (CASTRO, 2008, p. 11).

A cena vem enviesada pelo instinto erótico, tendo em vista que não se tem nela uma ação envergonhada ou com vestígio de pudores, o que se tem além do encontro entre os corpos é a inventividade (marcada, inclusive, pela estratégia da onomatopeia), dada à vontade do momento: “ela abriu as pernas sem resistência e riu alto com a resfolgada do caçador - ãi, ãi, ãi em cima dela”.

Ao analisarmos o comportamento da índia, veremos aí uma afronta ao sistema social e à imagem da mulher pura, representada pela narrativa de José Alencar. O romance de Nei Leandro de Castro é, nesse sentido, uma aberração à cultura oficial e aos “bons costumes”. O riso da índia pode ser visto como uma gargalhada, um extravasar de seu mundo mais íntimo, que a cultural oficial não quer ouvir e insiste em silenciar.

A linguagem direta e nada recatada usada pelo autor se aproxima de um contexto mais real da vida, energiza a descrição do encontro entre os pares e influencia diretamente na quebra das hierarquias. A apresentação do corpo em ação através do ato despudorado da índia ao abrir as pernas é um traço da carnavalização que faz brotar no texto a livre expressão do desejo sexual “[...] — Hosana! — disse ele, com palmo e meio de língua pra fora. — Hosana! — ela repetiu, rindo, batendo

no meio dos peitos generosos”. Por meio de uma linguagem despudorada, o narrador faz emergir as proibições do cotidiano, como a concretização do desejo sexual.

É importante ressaltar que a sexualidade, historicamente, sempre se deparou com interdições sociais. No livro O erotismo de Baitaille (1987), o autor aponta que desde cedo a atividade sexual desperta interesse do homem e que mesmo o assunto estando entre um dos principais eixos da vida, os mascaramentos em torno dele tornaram a conduta sexual do homem subordinada a regras. Baitaille também discorre sobre a oposição do homem à liberdade animal da vida sexual e aponta para o fato de que desde sua origem, a liberdade sexual teve que ser podada pelo que o autor chama de interditos.

O escritor francês assinala como um dos interditos sexuais, o trabalho e o tempo a ele dedicados. A atividade sexual estaria na contramão da laboral, tendo em vista o caráter impulsivo da primeira e o caráter sistemático da última. Seria a sexualidade uma violência perturbadora ao sistema produtor, o autor acrescenta que “[...] desde a origem, a liberdade sexual teve de ser limitada pelo que se pode chamar de interdito, sem, no entanto, nada podermos dizer dos casos em que ele se aplicava” (BAITAILLE, 1987, p. 33). Ou seja, a sexualidade, que tem ligação íntima ao prazer do homem, está na esfera do proibido/pecaminoso, enquanto que o trabalho, advindo de um saber sistemático, transita livremente na vida em sociedade. Além do trabalho, o autor prossegue a citar e refletir a respeito de outros interditos.

Essas restrições variam grandemente de acordo com as épocas e os lugares. Todos os povos não sentem da mesma maneira a necessidade de esconder os órgãos da sexualidade; mas escondem geralmente da visão o órgão masculino em ereção; e, em princípio, o homem e a mulher procuram a solidão no momento da conjunção. A nudez, nas civilizações ocidentais, transformou-se no objeto de um interdito bastante pesado, bastante geral, mas o tempo presente questiona o que parecia ser um fundamento. A experiência que temos de mudanças possíveis não mostra, aliás, o sentido arbitrário dos interditos: ela prova, ao contrário, um sentido profundo que eles têm, apesar de mudanças superficiais que incidem sobre um ponto que em si mesmo não teve importância. Conhecemos hoje a fragilidade dos aspectos que demos ao interdito informe de onde decorre a necessidade de uma atividade sexual subordinada a restrições geralmente observadas. Mas adquirimos nessa ocasião a certeza de uma regra fundamental que exige nossa submissão a certas restrições em comum. O interdito que se opõe em nós à liberdade sexual é geral, universal; os interditos particulares são os seus aspectos variáveis (BAITAILLE, 1987, p. 34).

O modo pelo qual o humano enxerga a sexualidade e se relaciona com os interditos a ela impostos está diretamente ligado ao seu contexto de inserção. Não existe uma cartilha social de interditos, e sim interditos que se apresentam sob diferentes pontos de vista em sociedades distintas. Aqui não temos por intuito discorrer sobre cada um deles (trabalho, incesto, nudez, sangue menstrual e sangue do parto, entre outros) e sim concordar com a existência dos interditos, que mesmo manifestados de modos diferentes, devido às inferências culturais, interferem de modo direto na maneira pela qual observa, julga e se relaciona com a sua sexualidade e com a do outro.

Fazendo alusão ao pensamento de Baitaille (1987), tomamos como referência as diferentes posturas assumidas pelos autores dos romances aqui confrontados, escritos em diferentes épocas. O canônico no século XIX e o contemporâneo no século XX. Quando analisados, a abordagem recatada em torno da sexualidade tida no primeiro é completamente rebaixada e subvertida no segundo.

Em o dia das moscas, o amor recíproco propagado pelo discurso oficial é trocado pelo tesão recíproco e torna-se componente da experiência carnavalesca. No contexto do romance de Nei Leandro de Castro, o sexo não é tabu e os valores separados pela sociedade dão vez à permissividade e aos desejos perecíveis da índia, com uma dualidade biunívoca; o pudor e a falta dele, a fuga e a liberdade sexual.

O discurso parodístico obtido pelo autor se utiliza do baixo corporal para destronar a imagem idealizada da mulher em torno da atividade sexual criada em

Iracema “ dou-lhe uma, dou-lhe duas, dou-lhe três. E a formidável matriz do seu útero

começou a fabricar ali mesmo o primeiro de uma prole imensa, corpo fértil que só a carta de Caminha, nunca se viu igual” (CASTRO, 2008, p. 11). Também nessa citação aparecem os excessos por intermédio da personagem feminina. É erguida a imagem ligada ao exagero de um corpo que produz de maneira excedente, através do seu, também excedente poder de fecundação, se comparado, obviamente, a imagem do corpo e ao ideal de família “padrão” considerados pelo mundo ordinário.

Outro fato marcante é a morte das personagens femininas nos romances. Ainda em oposição à escrita do romancista cearense, a escrita parodística e irreverente de Nei Leandro ao narrar a morte de Hosana pelo luto de seu marido, o caçador de socós, Cançado é completamente ao revés da morte da índia Iracema.

Já nos últimos capítulos do romance, quando Martim retorna, mesmo inserida numa atmosfera de sofrimento, solidão e angústia por sentir-se abandonada por seu

amado, a índia de Alencar é descrita num plano de lisuras e sua beleza é endeusada até o momento de sua morte, esse endeusamento moldura a índia numa atmosfera de ser superior:

Pousando a criança nos braços paternos, a desventurada mãe desfaleceu como a jetica se lhe arrancam o bulbo. O esposo viu então como a dor tinha murchado seu belo corpo; mas a formosura ainda morava nela, como o perfume na flor caída do manacá. Iracema não se ergueu mais da rede onde a pousaram os aflitos braços de Martim. O terno esposo, em que o amor renascera com o júbilo paterno, a cercou de carícias que encheram sua alma de alegria, mas não a puderam tornar à vida: o estame de sua flor se rompera (ALENCAR, 2013, p. 149).

A índia que teve suas formas exaltadas durante toda a narrativa alencariana não poderia ter uma morte com moldes opostos. Mesmo em estado de debilidade e inserida num contexto completamente desfavorável (a índia teve que deixar seu filho, devido sentir-se debilitada com os presságios da morte), a formosidade de sua imagem ganha grande espaço na caracterização da cena e permanece sendo valorizada. Em um dado momento o narrador ainda enseja descrever a languidez do corpo da índia, mas a tentativa logo é atravessada pela inserção da conjunção adversativa, mas, que injeta novamente o enaltecimento ao corpo de Iracema: “O esposo viu então como a dor tinha murchado seu belo corpo; mas a formosura ainda morava nela, como o perfume na flor caída do manacá”. Mesmo com a morte o corpo da índia não cai em declínio, ele permanece envernizado aos padrões clássicos/românticos da estética feminina. Desaguando no que nos diz Bakhtin sobre a morte do corpo no novo cânon, veremos que:

Por consequência, todos os acontecimentos que o afetam, tem uma única

direção: a morte não é mais que a morte, ela não coincide jamais com o

nascimento; a velhice é destacada da adolescência; os golpes não fazem mais que atingir o corpo, sem jamais ajudá-lo a parir. Todos os atos e acontecimentos só têm sentido no plano da vida individual: estão encerrados nos limites do nascimento e da morte individuais desse mesmo corpo, que marcam o começo e o fim absolutos e não podem jamais se reunir nele (BAKHTIN, 2008b, p. 281).

Também na narrativa de Alencar, a morte é vista como uma escolha certa, pois escoa para conclusão do romance e a solução do problema apresentado, portanto, esta não carrega um sentido de continuidade, e sim um sentido de conclusividade, desfecho e encerramento do sofrimento.

Hosana, ao contrário de Iracema, não é descrita como bela em nenhum momento do romance. A sua imagem não é de uma bela mulher, pois a imagem que o leitor tem dela é grotesca: “Saiu magra e nua de seu luto, os peitos quase arrastando no chão”. Nessa narrativa, a índia potiguar nasce e morre feia e no intervalo entre vida/morte tem suas formas corpóreas apavorantes destacadas pelo autor.

Saiu magra e nua de seu luto, os peitos quase arrastando no chão. Peitos pendurados como meias, como limões negros nas extremidades. Os escuros e secos limões das tetas, chupados até o bagaço pelos curumins que ela pariu. [...] sua nudez era tão sinistra que ninguém a tocou, a não ser o vento irreverente que lhe assanhou o que lhe restava dos cabelos, lambeu seus ossos, sua dignidade, as vergonhas [...] dias depois maçaricos corriam perto do cadáver dela, rapidíssimos, equilibrados no varapau das canelas. Davam gritinhos histéricos quando trincavam um chama - maré incauto, mas não ligavam a mínima para o corpo morto de Hosana, espantalho nu e molhado (CASTRO, 2008, p. 11-12).

Como se vê na citação acima, o perfil de mulher que vem aos olhos do leitor pelo romance de Nei Leandro foge a uma espécie de padrão de beleza e de doçura aos moldes clássicos e românticos. A morte de Hosana tem uma proposital discrepância com a de Iracema, as dualidades entre as personagens aparecem na superioridade dada ao corpo “perfeito” de Iracema e a inferioridade dada ao corpo apavorante de Hosana “sua nudez era tão sinistra [...] não ligavam a mínima para o corpo morto de Hosana, espantalho nu e molhado”.

A figura da índia potiguar é desenhada de maneira sinistra e assustadora, aliás, a vida da índia na obra tem como marca enfatizada pelo autor a sua feiura, descrita por deformidades e exageros, tanto na perspectiva do corpo: “Peitos pendurados como meias, como limões negros nas extremidades [...] Os escuros e secos limões das tetas”, quanto no aspecto comportamental, tendo em vista a intensidade dos sentimentos vividos pela personagem.

A exagerada feiura de Hosana proporciona liberdade à personagem para viver de modo intenso sentimentos propriamente humanos, como o amor, a dor e o tesão. O sofrimento da índia não é magistral, tampouco cinematográfico. Ao contrário, causava repulsa aos que viam. Se conferirmos os sentimentos vividos por Iracema, veremos que estes eram descritos pelo narrador sem nenhuma extrapolação ou intensidade, “pousando a criança nos braços paternos, a desventurada mãe desfaleceu como a jetica se lhe arrancam o bulbo [...] O lábio emudeceu para sempre;

o último lampejo despediu-se dos olhos baços”, mesmo o sofrimento vivido pela mulher era narrado de modo brando, quase silencioso.

Os elementos encontrados na figura da mulher, representada por Hosana, ilustram o quanto de grotesco o autor traz na sua personagem, reforçando a ideia de contrassenso à imagem da mulher ideal e destronando o mito da beleza e do comportamento brando feminino e representados na idealização de Iracema. Esse conjunto de características é responsável pelo coroamento da categoria do corpo grotesco.

A personagem feminina que dá início ao romance do escritor potiguar é desemoldurada do estereótipo de perfeições e lisuras para carregar um corpo assimétrico, de formas exageradas repletas de deformidades. Esse mesmo corpo em sua descrição aponta para continuidades. Os peitos extremamente caídos devido ao excesso de amamentação sugerem fertilidade e abundância de filhos. O corpo da personagem aponta também para o sexo em sua face procriadora, em que “[...] a vida inteira do guerreiro branco e da índia foi trepar, emprenhar, limpar bunda de curumins, alimentar a legião dos pequenos potiguares que vinham a luz a cara da mãe, cagados e cuspidos” (CASTRO, 2008, p. 13). A índia de feições mal desenhadas pelo narrador, levava a vida em torno de seu sexo e dos desdobramentos por ele trazidos. Mesmo sem vida o corpo da índia carregava características que reverberavam a sua existência e apontavam para continuidades, característica essa teorizada sobre o corpo grotesco. “Pelo contrário, a morte no corpo grotesco não põe fim a nada de essencial, pois ela não diz respeito ao corpo procriador; aliás, ela renova-o nas gerações futuras” (BAKHTIN, 2008, p. 281).

Apesar do corpo da mulher ser discursivizado no romance potiguar de modo negativado (se pensado sob a ótica da estética idealista), esse mesmo corpo não estabelecido pelo discurso oficial, concede à personagem feminina a liberação dos desejos e a concepção de várias vidas, inclusive pode-se inferir a relação do sexo como procriador em ambos os romances analisados, ressaltando, obviamente que em

O dia das moscas o discurso do sexo também está a serviço do prazer.

Ainda se formos pensar que a quantidade de filhos dos personagens tem relação direta com a frequência sexual dos pares nos romances, teremos mais uma oposição evidenciada: a de uma relação com pouco tesão e morna (Iracema e Martim tiveram apenas um filho), em contraste com uma relação cuja vida sexual ativa é comprovada através da numerosa prole. Considerando que quanto mais se transa,

mais se tem filhos, tomando, obviamente os contextos dos romances analisados já apresentados anteriormente, veremos que em Hosana cabiam dois extremos: a permissividade em relação à sexualidade e à procriação, fruto da prática do sexo.

Outro ponto importante é que a morte de Hosana, diferente da de Iracema, não tem como princípio a terminação da história. A esse fato emerge mais um caráter ambivalente: morte e vida. A partir de sua morte é que são dadas as vidas a inúmeras personagens, através, agora, do ventre de sua filha caçula Anunciada, que depois de enterrar sua mãe Hosana prometeu para si algo que é a verdadeira oposição a morte: ter a mesma vastidão de filhos que sua mãe. É através do corpo procriador/multiplicador da índia, a maioria das personagens dessa história.

Anunciada saiu do quarto arrasada pelo jejum e pela dor. As olheiras faziam dois círculos marrons debaixo dos olhos, até a bunda tinha diminuído de tamanho. Saiu com uma decisão que era a própria negação da morte: iria ter tantos filhos quanto a mãe, emprenharia toda hora, aceitaria casar-se com o tabelião meio maluco que vivia olhando para ela, cantando loas, procurando adivinhar com seus olhinhos claros o real volume da bunda que ela encobria sob mil panos (CASTRO, 2008, p. 15).

Bakhtin (1983) aponta para o fato de que os símbolos carnavalescos sempre apontam para a dubiedade da vida e da morte. “O nascimento é prenhe de morte, a morte, de um novo nascimento” (p. 107). Ou seja, o romance comunga com a visão de Bakhtin da morte como elemento de renovação e, na história, ela não se fecha em término ou conclusividade. A morte dos patriarcas da família possibilita o nascimento de uma nova geração para os Cançado, com novos costumes, problemas, intrigas, verdades e mentiras. O ciclo se transforma e se renova através do sim da filha de Cançado e Hosana.

4.3 Mésalliances carnavalescas em O Dia das moscas: romance de maus

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