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Negação e afirmação carnavalesca do discurso canônico/paródia

Corta a fita inaugural o encontro às margens do rio Potengi entre o caçador de socós Cançado e a índia Hosana. É a partir desse encontro descrito como cheio de tesão à primeira vista, que o casal dá início à saga procriadora dos Cançado. Entre os filhos do casal, destaca-se a mais nova, Anunciada Cançado, que mais adiante torna- se esposa do tabelião Honório. A exemplo de sua mãe Hosana, Anunciada teve com Honório 26 filhos, cujos 26 nomes foram organizados pelo narrador em abecedário. Além dos filhos, também serão apresentados mais adiante os parentes e os aderentes que fermentam essa história.

As análises primeiras aqui propostas se dão entre um cânone da literatura brasileira: Iracema, que teve sua obra publicada originalmente no ano de 1865 e o livro O dia das moscas: romance de maus costumes, com publicação original feita no ano de 1983. Aqui usaremos a versão digital de 2013, para o primeiro e a 2ª edição do último, lançada em 2008.

Tratamos, a princípio, da natureza paródica no romance O dia das moscas, de Nei Leandro de Castro. Aqui, assumimos a visão amparada por Bakhtin, de um parodiar carnavalesco, envolto em criticidade, capaz de inverter as formalidades e recriar o objeto parodiado de acordo com o modelo que lhe é pertinente.

Uma das características marcantes, senão a principal, em O dia das moscas, é o recurso parodístico. Em Problemas da poética de Dostoiévski (1981; 2010) Bakhtin nos diz que “o parodiar é a criação do duplo destronante, do mesmo mundo às avessas”. Por isso, a paródia é “ambivalente” (1981, p. 109). E é por meio de um diálogo ambivalente e assimétrico, marcado por contestações e repetições por diferenças, que podemos conhecer um discurso dotado de valores e poderes contrários ao discurso canônico.

Tomando como mote as personagens alencarianas Iracema e Martim, por meio do caçador Cançado e da índia Hosana, o autor potiguar inverte a perspectiva romântica de Alencar. É na paródia que ele articula seu texto logo nas primeiras páginas sobre o do autor cearense, reestruturando-o e exercendo o caráter dialógico pela via da contestação, contribuindo para o destronamento do discurso canônico dos autores, cuja escrita é representativa do idealismo romântico, neste contexto específico, o romance Iracema de José de Alencar. Nesse caso, podemos dizer que

a obra do escritor potiguar assume palavras, imagens ou expressões presentes no romance do escritor cearense, mas não o ponto de vista que elas representam, porque provoca inversão de sentido.

Esses traços começam a aparecer já no aspecto geográfico apresentado em ambas as obras. A movimentação do romance indianista acontece no sentido de serra, sertão e mar. Já na abertura tem-se a descrição pomposa característica do idealismo romântico do ambiente em que nasceu Iracema, em que paisagem humana e paisagem do lugar ganham forma de idealização. Vejamos.

Além, muito além daquela serra, que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema. Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna, e mais longos que seu talhe de palmeira. O favo da jati não era doce como seu sorriso (ALENCAR, 2013, p. 27).

Já a ambientação em O dia das moscas se dá “aquém muito aquém daquela serra que não dá pra ver daqui, começavam as margens plácidas da nação dos potiguares” (CASTRO, 2008, p. 9). Nota-se que, apesar de ambos os termos marcarem pontos referenciais, as suas imagens são apresentadas de maneiras distintas. Nessa direção, enquanto “além” marca para um lugar de maior distância, “aquém” dá ideia de maior proximidade e, dentro da lente do romantismo, o distanciamento, seja do ser amado ou da própria realidade, é sinalizador de idealização. A substituição de “além” por “aquém” não marca só a troca de palavras, mas de sentido.

A alteração enxerta uma inversão proposital, a ambivalência dessa palavra aponta responsivamente para um sentido de oposição entre um lugar descrito por Alencar com ares míticos e edênicos, defronte a descrição racional e nem um pouco mítica, talvez até pejorativa, das terras potiguares.

Hoje o mangue engole tudo, só quem anda por lá são os chama- marés de corpo destamanhinho e patolas enormes acenando para a vazante. Bichos muito insignificantes que nunca entraram em livro nenhum [...] Centenas de luas depois da vida, paixão e morte de Poti (exatamente duas mil, quatrocentas e doze luas), aquilo lá era o lugar que o caçador Cançado escolhia para matar socós (CASTRO, 2008, p. 9).

A iraúna, grande ave popularmente conhecida como graúna, que sobrevoa grande parte do Brasil, especificamente a região nordeste, e o jati, termo do tupi-

guarani que se refere à abelha e que no romance indianista servem para caracterizar liricamente a índia Iracema, são trocados no romance em terras potiguares por animais sem nenhuma importância, pois são considerados minoritários pelo narrador. Sendo assim, ainda que o narrador quisesse comparar as personagens de Nei Leandro a algum animal do romance O dia das moscas essa seria, inclusive, motivo de ofensa, tendo em vista o que o narrador descreve sobre a caçada de Cançado aos socós.

Dois socós caíram estrebuchando, epiléticos, agonizantes. Dois outros patinaram na lama, tentaram a decolagem, mas de repente ficaram mais pesados que o ar, desajeitados como um avião pioneiro. E o caçador vendo tudo e rindo, a espingarda fumegando na mão, sádico que só a peste, pois o desgraçado do socó não tinha serventia nenhuma. Era impossível depená-lo, o couro se despregava todo com um só puxão nas pernas. E se ia pra água quente, que ajuda a tirar as penas de qualquer pássaro, parecia que o falecido socó se vingava. Empestava os ares com cheiro de enxofre, de bosta, de peixe ardido. Ninguém comia aquilo (CASTRO, 2008, p. 10).

É notório que Nei Leandro de Castro se apropria do romance de Alencar para depois ter com ele uma relação de (re)configuração, já que estabelece um duplo movimento em relação à obra romântica: aproxima-se e se distancia, criando o sentido da ambivalência em sua narrativa. O autor devora o texto canônico, para em seguida lançá-lo aos moldes locais, tipicamente potiguares, isso se dá, por exemplo, por meio de falares “a vida inteira do guerreiro branco e da índia foi trepar, emprenhar, limpar bunda de curumins [...] vinham à luz com a cara da mãe “Cagados e cuspidos” (CASTRO, 2008, p.12-13), por meio de lugares “Na beira do rio Potengi, exatamente no lugar onde os dois haviam se conhecido” (CASTRO, 2008, p. 13), também nas tradições “Dois meses antes do Natal, o velho Honório começava a ensaiar o pastoril” (CASTRO, 2008, p. 21) entre outras especificidades. É nesse percurso de apropriação que ele prepara o interlocutor para interagir com a desconstrução do discurso canônico e para a associação de uma imagem paralela de descobrimento, repleta de subversões e contrastes em relação ao índio/homem branco, homem/mulher, ambientação do romance, assim como a estética e o comportamento das personagens. O autor potiguar tratou em seu romance de falar de um “outro mundo”, se comparado ao das páginas alencarianas, enxertando em seu enredo um processo de inversão cultural.

A linguagem desprovida de polidez e que ergue imagens desalinhadas da perfeição romântica corrobora uma ida a outro contexto sócio-histórico, e esse processo de subversão se inicia entre as narrativas, desde a imagem erguida como pano de fundo no início do romance alencariano, até a chegada ao romance contemporâneo, dito maus costumes, do escritor potiguar, que coloca ao reverso os esquemas padronizados da escrita indianista em Iracema.

As personagens de Alencar são citadas por Nei Leandro em seu romance. Uma delas, Poti, considerado um valente guerreiro, amigo de Martim, tem seu laço de amizade satirizado pelo escritor potiguar e sua figura de guerreiro rebaixada a um amigo servil e “babão”, conforme vemos na transcrição abaixo.

Claro que ele, o bravo guerreiro, quase não tinha tempo: Vivia ocupadíssimo nas páginas alencarianas, matando goiamum a flechada, descangotando tabajara com a força de seu tacape e acompanhando, que nem um tonto, o cara-pálida Martim (CASTRO, 2008, p. 9).

Nota-se no trecho o rebaixamento da figura do herói, sendo nele excluído qualquer enaltecimento às ações do índio. Por meio dos adjetivos “ocupadíssimo” e “tonto”, – sendo o primeiro colocado no superlativo –, o autor enxerta um ar de chacota, ironia e zombaria à subserviência e à falta de criticidade do guerreiro Poti a respeito de si (origem e história) e do outro (figura do colonizador/invasor). Esse tipo de riso lembra-nos o riso escarnecedor de zombaria contido em Propp (1992), que se utiliza do sarcasmo e do prazer maldoso para com seu objeto de riso.

Há estudiosos que negam a possibilidade de um riso bom. Bergson, por exemplo, diz: “Aquilo que é cômico, para que sua ação plena se manifeste, requer com o que uma rápida anestesia do coração. Isso quer dizer que só se pode rir tornando-se, ao menos por um momento, cruel e insensível às desgraças alheias”. Esta afirmação é verdadeira apenas quanto ao riso de zombaria, ligado à comicidade dos defeitos humanos(PROPP, 1992, p. 156).

A ausência da empatia é um dos mecanismos do riso de zombaria, considerado como negativo, devido estar ligado à insensibilidade do ser humano e ser impulsionado pelo desnudamento de algo considerado defeito e em relação a algo que julgamos correto. Isso aparece na visão considerada contraditória pelo narrador, a respeito de Poti e de seu posicionamento diante de sua própria origem e história.

O narrador na obra de Nei Leandro segue a distorcer a imagem que fora erguida ao guerreiro original: “[...] como se não bastasse, mudou o nome para Felipe Camarão, morreu metido em briga de branco e, bem feito, terminou entrando na história do Brasil de Pedro Calmon” (CASTRO, 2008, p. 9). A mudança de nome do personagem vem com dosagem de humor vinculado à paródia, e, com isso, implica mudança de identidade da personagem, no plano individual, e alteração de sentido no romance de José de Alencar, no plano geral da obra.

A personagem, que no discurso canônico acompanha de forma direta as personagens principais, agora é ridicularizada duplamente. Primeiro pelo papel subalterno a que foi colocada em relação ao seu amigo e depois, baseada na figura histórica real, como o índio educado pelos jesuítas, batizado e convertido ao catolicismo, onde recebeu o nome de Antônio e adotou o de Felipe Camarão.

Também a figura de Pedro Calmon aparece de modo inusitado no romance e é subvertida por Nei Leandro de Castro. O historiador, nascido em Salvador, foi escritor, jurista e ocupou vários cargos importantes no cenário nacional brasileiro, entre eles o de presidente da Academia Brasileira de Letras, no ano de 1945. Calmon possui vários textos sobre história, que servem de fonte e referência para pesquisas na área acadêmica, portanto, trata-se de uma figura reconhecida na escrita da história nacional. Sobre a produção de Calmon, Rota cita a análise feita por Reis ao livro intitulado História da Civilização Brasileira (1932). Em um dos trechos, Reis nos fala que nessa obra “[...] é destacado o caráter romântico e cristão da civilização, por aliviar as tensões e ver na moralidade cristã uma alternativa” (REIS, 2006, p. 33-54 apud ROTA, 2017). O viés crítico da análise que Reis endossa sobre a escrita do livro de Calmon nos mostra uma perspectiva idealizada sobre a história do país, geralmente privilegiada na literatura canônica, considerada oficial. A crítica a esse tipo narrativa, que transita entre a idealização e a realidade, provavelmente enveredou o narrador potiguar a emergir o nome do estudioso soteropolitano, com sentido escarnecedor em sua obra. A escrita parodística de Nei Leandro de Castro torna o fato de ser citado por Calmon (grande nome da literatura nacional), uma total desvantagem, uma verdadeira ofensa: “bem feito, terminou entrando na história do Brasil de Pedro Calmon” (CASTRO, 2008, p. 9), uma vergonha e por quê não dizer, um verdadeiro castigo.

Temos no discurso de O dia das moscas a ação carnavalesca do destronamento. Para Bakhtin (1981), a coroação-destronamento é um ritual ambivalente, ou seja, não se trata de algo estanque e sim de algo que transita, uma

coisa que leva a outra, que expressa mudança e renovação. O movimento de coroação-destronamento-coroação do qual a fala de Bakhtin está associada, consiste no rebaixamento de tudo que era elevado, considerado sentencioso, autoritário, catedrático, magistral ou sério. Tanto à figura oficial (o soberano) quanto à não-oficial (o rei momo) sofrem permutações hierárquicas, através do destronamento de personalidades e instituições de poder. O autor endossa que na ação da coroação já está contida a ideia do futuro destronamento.

O que vemos no diálogo entre o cânone e o texto contemporâneo do século XX são duas visões completamente opostas erguidas em relação à figura do indígena. Na primeira, o índio Poti e sua associação com Martim eram descritas da seguinte maneira: “O canto da gaivota é o grito de guerra do valente Poti, amigo de teu hóspede!” (ALENCAR, 2013, p. 70). O índio no contexto do século XIX é um sujeito idealizado e dentro desse prisma a ação de Poti em relação a Martim é considerada de extrema nobreza, como um ato de heroísmo de uma figura eleita (índio) como um herói épico, tendo sob pano de fundo a natureza. Vejamos o que nos diz o clássico da literatura, Iracema, no trecho do livro que contém o argumento histórico.

Na primeira expedição foi do Rio Grande do Norte um moço de nome Martim Soares Moreno, que se ligou de amizade com Jacaúna, chefe dos índios do litoral, e seu irmão Poti [...] Poti recebeu no batismo o nome de Antônio Felipe Camarão, que ilustrou na guerra holandesa. Seus serviços foram remunerados com o foro de fidalgo, a comenda de Cristo e o cargo de capitão- mor dos índios. Martim Soares Moreno chegou a mestre de campo e foi um dos excelentes cabos portugueses que libertaram o Brasil da invasão holandesa. O Ceará deve honrar sua memória como a de um varão prestante e seu verdadeiro fundador, pois que o primeiro povoado à foz do rio Jaguaribe foi apenas uma tentativa frustrada (ALENCAR, 2013, p. 19-20).

O protecionismo de Poti à figura do português Martim, no contexto de idealização romântico, não é visto como subserviência, e sim como um ato de bravura. Assumir as vestes e a identidade de um guerreiro português era sinônimo de honraria para o índio. O discurso que aparece é de enobrecimento, de coroação aos feitos do índio, que agora tomara a “honraria” de andar entre os brancos de igual para igual.

Notamos que na perspectiva de Nei Leandro de Castro, o discurso é reestruturado e assume novos meios de representação para a personagem, que se revela agora, entre ação do elogio feito por Alencar e o do insulto escrachado e ardiloso, deferido pelo narrador potiguar. É destronando o discurso anterior sobre o

índio Poti que se ganha uma nova roupagem, encharcada a crítica e que se aproxima da figura histórica do índio brasileiro.

Vejamos mais alguns trechos de Iracema e do romance O dia das moscas, que revelam a natureza da paródia por meio da negação e afirmação carnavalesca do discurso canônico

Rumor suspeito quebra a doce harmonia da sesta. Ergue a virgem os olhos, que o sol não deslumbra; sua vista perturba-se. Diante dela e todo a contemplá-la está um guerreiro estranho, se é guerreiro e não algum mau espírito da floresta. Tem nas faces o branco das areias que bordam o mar; nos olhos o azul triste das águas profundas. Ignotas armas e tecidos ignotos cobrem-lhe o corpo. Foi rápido, como o olhar, o gesto de Iracema. A flecha embebida no arco partiu. Gotas de sangue borbulham na face do desconhecido. De primeiro ímpeto, a mão lesta caiu sobre a cruz da espada; mas logo sorriu. O moço guerreiro aprendeu na religião de sua mãe, onde a mulher é símbolo de ternura e amor. Sofreu mais d’alma que da ferida. O sentimento que ele pôs nos olhos e no rosto, não o sei eu. Porém a virgem lançou de si o arco e a uiraçaba, e correu para o guerreiro, sentida da mágoa que causara. A mão que rápida ferira, estancou mais rápida e compassiva o sangue que gotejava. Depois Iracema quebrou a flecha homicida: deu a haste ao desconhecido, guardando consigo a ponta farpada (ALENCAR, 2013, p. 28).

O trecho acima remete ao encontro da índia Iracema com o guerreiro Martim. Na narrativa é forte a marca do idealismo romântico, que fizeram famosas as palavras de José de Alencar ao descrever a índia, através de uma sinestesia gustativa como “a virgem dos lábios de mel”. A construção feita por Alencar dá um sentido mitogênico à índia, inserida numa esfera harmônica e de equilíbrio com a natureza, tanto que o encontro, mesmo com o sofrimento do guerreiro Martim pela ação inesperada da índia, é floreado por diversas metáforas e encharcado por um texto de linguagem afetiva e emotiva: “Rumor suspeito quebra a doce harmonia da sesta. Ergue a virgem os olhos, que o sol não deslumbra”.

É importante ressaltar que o romantismo no Brasil é conhecido principalmente por seu viés nacionalista, que prima em criar uma identidade nacional. O índio criado por Alencar carrega consigo características que se distanciam dos índios que habitavam as terras brasileiras e ainda não tinham entrado em contato com o homem branco. As imagens e ações de Iracema e Martim são polidas e retilíneas, como superfícies sem defeitos. A violência deferida pela índia torna-se de imediato arrependimento e passividade diante do guerreiro ferido. Esse também, mesmo tendo

sido ferido e estando sangrando, devolve à virgem um olhar complacente de exaltação e respeito à figura da mulher. Em contraposição a essa descrição, há o encontro dos potiguares Cançado e Hosana.

De repente, um rumor suspeito quebra a doce harmonia da festa. Melhor dizendo: o mato estalou como num filme americano. Cançado olhou pra trás e viu a índia gorda, os peitos ubérrimos, idade indefinida de índia. Foi como um raio fúlgido no seu peito lusitano: tesão à primeira vista, fulminante. — Hosana — ele gritou, desarmado, besta, o coração latejando. — Hosana! A índia desembestou pelo mato, um pouco menos ágil do que as índias de Alencar, mesmo assim ligeira que só a peste. E lá vai o caçador atrás, laço na mão, pega, não pega. Quando o sol descambava sobre a crista dos montes, seis quilômetros e meio de corrida, ele laçou a índia [...] — Hosana! — disse ele, com palmo e meio de língua pra fora. — Hosana! — ela repetiu, rindo, batendo no meio dos peitos generosos (CASTRO, 2008, p. 10).

O romancista potiguar dialoga com a tradição romântica brasileira, citando, inclusive de forma explícita, o nome do romancista cearense, mas não se trata de um diálogo de reafirmação de sentido do texto primeiro; o que se vê no romance de Nei Leandro de Castro é uma releitura da tradição romântica com reposicionamento de sentido através da escrita humorística e debochada do autor.

Cançado e Hosana oferecem uma visão e um comportamento completamente libertos e opostos ao que propõe o romance canônico. A índia de Nei Leandro aparece como a versão cômica à índia de Alencar, desconfigurando, negando e rebaixando as formas concretas e abstratas, anteriormente consagradas. As antíteses marcadas nas imagens carnavalescas, nesse trecho, implicam um destronamento da representação romântica do belo e também exploram outros elementos, como o excesso e a corporalidade carnavalesca, são “[...] imagens do corpo, da bebida, da satisfação sexual. São imagens exageradas e hipertrofiadas” (BAKHTIN, 2008, p. 16).Os peitos da índia são marcados por um tamanho hiperbólico. Em comparação ao corpo canônico da forma humana, o corpo da índia consiste em um corpo grotesco, no sentido bakhtiniano do termo.Bakhtin segue a nos dizer que:

Já tivemos oportunidade de falar das particularidades da estrutura da imagem carnavalesca. Esta tende a abranger e a reunir os dois polos do processo de formação ou os dois membros da antítese: nascimento-morte, mocidade- velhice, alto-baixo, face, traseiro, elogio-impropério, afirmação-negação, trágico-cômico, etc. e o polo superior da imagem biunívoca reflete-se no plano inferior segundo o princípio das figuras das cartas do baralho. Isso pode ser expresso assim: os contrários se encontram, olham-se mutuamente, refletem-

se um no outro, conhecem e compreendem um ao outro (BAKHTIN, 2010b, p. 204).

A relação entre as imagens e ações dos personagens nos romances é de extrema ambivalência, Iracema e Hosana, Martim e Cançado se encontram em uma relação propositalmente “anti”, prefixo que marca oposição. Em Iracema temos o encontro à primeira vista, contemplativo entre o guerreiro e a índia de Alencar. O olhar embasbacado do guerreiro branco, descrito pelo narrador como bem aparentado, tanto em sua face como em suas vestes, coloca a índia em estado de assombro, de pavor, o que a faz travar com ele um embate, junto a uma manifestação de resistência. Esse comportamento fica claro ao nos ser narrado o gesto de Iracema ao lançar a flecha que feriu Martim. A figura da mulher em relação ao homem, neste caso, é de

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