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O termo grotesco surgiu no final do século XV. Na Europa, o século XV foi visto como a ponte entre o final da Idade Média e o início do Renascimento e da Idade Moderna. Esse termo ainda hoje controverso e instigante, foi usado para designar os estranhos ornamentos encontrados em escavações feitas em Roma.

Nessa época, precisamente aparece o próprio termo “grotesco”, que teve na sua origem uma acepção restrita. Em fins do século XV, escavações feitas em Roma nos subterrâneos das Termas de Tito trazem à luz um tipo de pintura ornamental até então desconhecida. Foi chamado de grottesca, derivado do substantivo italiano grotta (gruta). Um pouco mais tarde, decorações semelhantes foram descobertas em outros lugares na Itália (BAKHTIN, 2008, p. 28).

As formas encontradas esbarravam no ideário de arte tomado para o período, as imagens disformes traziam estruturas e elementos ainda não explorados na época.

Esta escavação representou um dos mais importantes e controvertidos resgates da cultura romana na Itália renascentista porque o que ali se encontrou era quase irreconhecível: uma série de estranhos e misteriosos desenhos, em que vegetais e partes do corpo humano e de animais se combinam em formas intricadas, mescladas e fantásticas (RUSSO, 2000, p. 15).

As formas incomuns das imagens impossibilitavam decifrá-las. O inacabamento das figuras animais e humanas confundiam-se, formando um movimento de (in)completude, e, desse modo, desmanchavam-se as barreiras que delimitavam e categorizavam o que é início e fim, animais e humanos, entre outros. Ainda sobre a descoberta.

Surpreendeu os contemporâneos pelo jogo insólito, fantástico e livre das formas vegetais, animais e humanas que se confundiam e transformavam entre si. Não se distinguiam as fronteiras claras e inertes que dividem esses “reinos naturais” no quadro habitual do mundo: no grotesco, essas fronteiras são audaciosamente superadas. Tampouco se percebe a imobilidade habitual típica da pintura da realidade: o movimento deixa de ser formas completamente acabadas – vegetais e animais 0 num universo também totalmente acabado e estável; metamorfoseia-se em movimento interno da própria existência e exprime-se na transmutação de certas formas em outras, no eterno inacabamento da existência (BAKHTIN, 2008, p. 28).

Bakhtin endossa que essa fantasia artística, tida por meio da fusão dos elementos, possibilitava uma sensação de liberdade e leveza.

Nos séculos seguintes a palavra grotesco passa a assumir novas roupagens, tornando-se adjetivo para aquilo que é disforme ou pertencente à esfera onírica. O termo passa também a transitar entre vários expoentes, como na vida social, referente a comportamentos, a discursos e também na arte. No século XVII passa a ser amplamente utilizado como definidor daquilo que era considerado bizarro e extravagante. Nesse momento, o uso da palavra torna-se sinônimo de cômico. Sodré e Paiva (2002) nos dizem que:

Em fins do século dezessete, o dicionário de Richelet registra o adjetivo “grotesco”, definindo-o como “aquilo que tem algo de agradavelmente ridículo”, donde “homem grotesco”, “moça grotesca”, “jeito grotesco”, “rosto grotesco”, “ação grotesca”. Na mesma época, o dicionário da Academia Francesa explica o grotesco como o que é “ridículo, bizarro, extravagante” (SODRÉ; PAIVA, 2002, p. 30).

Apenas no século XIX, o grotesco passa a ser apresentado como categoria artística e o primeiro a teorizar sobre o tema foi Victor Hugo. Para o escritor francês, o grotesco estava relacionado com a comédia. Através do prefácio de Cromwell, presente em Do Grotesco e do Sublime (1827), o autor enfatiza a importância do fenômeno no drama e acentua fortemente as críticas às idealizações artísticas. A nova perspectiva trazida por ele abriu espaço para o extravagante, o feio e o desproporcional. Na perspectiva do grotesco hugoliano, era possível que os contrários andassem lado a lado harmonicamente (feio e bonito, bem e mal). Nesse sentido, o francês conduz o grotesco para o campo da estética.

Em A cultura popular no contexto da idade média e do renascimento, Bakhtin (2008) destina o capítulo quinto para falar da imagem grotesca do corpo em Rabelais

e suas fontes. O filósofo da linguagem abre o capítulo falando da tentativa do

pesquisador alemão Shneegans em fornecer uma teoria sobre o assunto. Segundo Bakhtin, a visão de Shneegans sobre o grotesco era extremamente reduzida. Nas artes plásticas, por exemplo, seria o grotesco relativo apenas a uma caricatura levada até os extremos do fantástico.

Para o alemão, o exagero do negativo levado até os limites do monstruoso era o que configurava essencialmente o grotesco. Outro ponto defendido por ele é que o grotesco só existiria caso houvesse obrigatoriamente alguma intenção satírica por trás

dele. Ainda sobre a teoria do pesquisador alemão, o escritor russo é pontual em sua crítica ao nos dizer que:

A concepção de Shneegans é fundamentalmente errônea. Ela baseia-se numa total ignorância de aspectos numerosos e essenciais do grotesco e, antes de mais nada, da sua ambivalência. Além disso Shneegans ignora inteiramente as suas origens folclóricas. Ele é aliás forçado a reconhecer que não é possível reconhecer os fins satíricos de todas as exagerações

Rabelaisianas, mesmo com o maior esforço (BAKHTIN, 2008, p. 268).

Não é nosso intuito discorrermos aqui minuciosamente sobre os equívocos do estudioso alemão em seu percurso sobre a teorização do grotesco, mas acreditamos ser importante a crítica de Bakhtin em relação ao autor sobre os riscos de encaixarmos o grotesco numa teoria simplista. Ao contrário de Shneegans, Bakhtin evidencia o caráter ambivalente do grotesco e ressalta que um olhar pouco atento para essa importante categoria pode acarretar a uma visão limitada na interpretação da imagem do grotesco e resumir sua finalidade, assim como fez Shneegans, a algo puramente satírico. O filósofo da linguagem ainda afirma:

A imagem grotesca caracteriza um fenômeno em estado de transformação, de metamorfose ainda incompleta, no estágio da morte e do nascimento, do crescimento e da evolução. A atitude em relação ao tempo, à evolução, é um traço construtivo (determinante) indispensável da imagem grotesca. Seu segundo traço indispensável, que decorre do primeiro, é sua ambivalência: os dois pólos da mudança – o antigo e o novo, o que morre e o que nasce, o princípio e o fim da metamorfose – são expressos (ou esboçados) em uma ou outra forma (BAKHTIN, 2008, p. 21-22).

É graças a essa associação de opostos que o estilo grotesco desorganiza o olhar do espectador, estimulando-o a uma percepção ativa. Bakhtin vê o percurso do grotesco a partir da idade média, aproximando-o de um sentido carnavalesco. Ele compreenderá o grotesco como uma estrutura oposta ao tradicional e, nessa configuração, estaria o homem livre das amarras sociais, tendo no riso uma poderosa arma contra as perspectivas unilaterais.

O corpo grotesco para Bakhtin não é sinônimo de algo fechado ou individual, ele é, antes de tudo, um corpo social, inclusive esse termo é usado pelo autor em oposição ao esquema do corpo clássico, que tem como reflexo o sublime e o monumental.

Tudo que era terrível e espantoso no mundo habitual transforma-se no mundo carnavalesco em alegres “espantalhos cósmicos”. O medo é a expressão externa de uma seriedade unilateral e estúpida que no carnaval é vencida pelo riso... A liberdade absoluta que caracteriza o grotesco, não seria possível num mundo dominado pelo medo (BAKHTIN, 1987, p. 41).

Também para o pensador russo, o grotesco é pertencente à linguagem não oficial dos povos, e isso se dá principalmente se as imagens forem ligadas à esfera da injúria e do riso.

4 O DIA DAS MOSCAS – ANÁLISES

Nessa perspectiva, integrados à cosmovisão carnavalesca estão elementos, dentre os quais cito: o grotesco, o baixo corporal, a relação morte/vida, a ambivalência e a paródia . Nesta seção realizamos a análise de trechos do livro O dia das moscas:

romance de maus costumes, do escritor potiguar Nei Leandro de Castro, romance

esse que se constitui objeto de estudo de nossa pesquisa. Reiteramos que nossa dissertação tem a carnavalização como analítica, segundo a sistematização teórica de Bakhtin (1981; 2010a; 2008; 2010b). Sendo assim, o olhar projetado ao romance considera a influência do caráter histórico, social e individual no qual está inserido.

Acreditamos que o romance em questão tem essencialmente impregnado, em sua linguagem literária, elementos da cosmovisão carnavalesca, e, quando aludimos a carnaval, frisamos que não se trata da festividade em si, mas da sensação fermentosa e revigorante que ele causa nos que o vivenciam. Nesse sentido, Bakhtin (2008, p. 184) assim o define.

O carnaval é uma grandiosa cosmovisão universalmente popular dos milênios passados. Essa cosmovisão, que liberta do medo, aproxima ao máximo o mundo do homem e o homem do homem (tudo é trazido para a zona do contato familiar livre), com o seu contentamento com as mudanças e com a alegre relatividade, opõe-se somente a seriedade oficial e unilateral e sombria, gerada pelo medo, dogmática, hostil aos processos de formação e à mudança, tendente a absolutizar um dado estado da existência e do sistema social. Era precisamente dessa seriedade que a cosmovisão carnavalesca libertava.

O filósofo da linguagem pensou o carnaval de maneira ideológica, compreendida, segundo Volochínov/Bakhtin (2006) como signo ideológico que reflete e refrata, através de uma visão de mundo que observa os lugares de fala dos sujeitos

e considera a historicidade desses indivíduos e também da cosmovisão carnavalesca, que questiona a sociedade e coloca ao avesso as convenções estabelecidas pelo mundo oficial, com o intuito de fazer emergir uma visão diferente das relações entre os homens e do próprio mundo, não prevista pelos discursos de ordem (da igreja, do Estado, da instituição familiar, dos ambientes acadêmicos, entre outros).

E é a essa contramão a um sistema estático e a transposição do carnaval para a linguagem literária que Bakhtin (1981) chama de carnavalização da literatura. Trata- se de um modo particular de linguagem capaz de se opor “à seriedade oficial”, ao mundo e aos homens e capaz de desmistificar qualquer forma rematada, seja em torno do “estado da existência”, seja no entorno do “sistema social”.

A partir desse ponto de vista, nosso interesse é analisar as transposições do carnaval presentes na obra de Nei Leandro, que através de seu modo singular de escrita, associado a uma lente rabelaisiana, metamorfoseou a formação do povo brasileiro, oriundo, segundo o autor, em terras potiguares.

Para as análises, lançaremos mão de algumas categorias advindas da cosmovisão carnavalesca, a saber:

 Paródia/ negação e inversão carnavalesca do discurso canônico  O corpo carnavalizado – baixo corporal

 Morte e renovação  Ambivalência

As análises são norteadas da seguinte maneira: de início apresentamos as personagens, juntamente aos seus contextos de inserção no romance. Em seguida as análises dos trechos a partir das categorias selecionadas.

Entendemos que a literatura é feita a partir da associação de imagens e linguagens, ou seja, mais que a representação das personagens nos textos literários, o que temos são as imagens desses se fazendo presentes durante todo o percurso das narrativas. Acreditamos também que, embora a literatura não tenha como finalidade primeira o ensinamento, sua escrita acaba ensinando aos leitores devido às identificações geradas no contato com as obras. Nessa perspectiva, conforme afirma Antoine Compagnon (2009, p. 31), sendo um “[...] exercício de reflexão e experiência de escrita, a literatura responde a um projeto de conhecimento do homem e do mundo”.

Em se tratando da visão carnavalesca na literatura, esse tipo de texto tem por característica histórias intercaladas. O entremeado dos causos vai sendo contado e costurado até desembocar numa tensão dramática desfeita mais adiante dentro do próprio texto.

O romance O dia das moscas carrega, em sua narrativa características de um discurso humorístico debochado, devasso, brincalhão e atrevido, de cunho fescenino. Ele carrega consigo meios que o possibilitam sobressaltar diversos elementos importantes da carnavalização, como por exemplo, a paródia, o grotesco, a profanação, inclusive é por meio dessas categorias que somos brindados com as mais diversas e irreverentes inconveniências, na medida em que também tais categorias contribuem para questionamentos e desconstruções da ordem moral e social vigente numa sociedade.

No que se refere à cultura potiguar, consideramos pertinente o pensamento de Tarcísio Gurgel, compartilhado na obra intitulada de Nei Leandro de Castro: 50 anos

de atividades literárias 1961-2011. Sobre a obra de Nei Leandro, o autor nos diz

O Dia das Moscas, romance tido “de Maus costumes”, é uma carnavalização da nossa formação cultural [...] o enredo, aparente brincadeira, privilegiando

causos e ditos populares, se tem na paródia o procedimento narrativo, deve

ser tomado no sentido que adquire, como uma alegre metáfora, da formação cultural do país, mesmo que pontualmente queira satirizar a cultura potiguar (GURGEL, 2012, p. 47).

Trata-se de uma escrita potente e ácida, que não se curva diante da majestosa escrita canônica e tem por intuito carnavalizar o discurso oficial sobre a nossa formação cultural. A escrita parodística de Nei Leandro de Castro subverte a concepção de alto e baixo de nossa cultura. Nesse manejo, o autor nos apresenta uma espécie de “nova verdade” sobre a história do descobrimento e o contato do índio com o homem branco.

Em O dia das moscas, as personagens multiplicam-se, e por isso, é preciso ficar atento para que não haja confusão entre os familiares dos Cançado. Seus personagens assumem as vezes de protagonistas de suas histórias. Portanto, não se pode dizer que o romance é dotado de apenas uma personagem principal. Inicialmente apresentamos brevemente aqueles considerados por nós como os procriadores do romance. Neste caso, literalmente os que pariram a maioria das personagens.

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