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Mésalliances carnavalescas em O Dia das moscas: romance de maus

Para cumprir o prometido, a índia Anunciada resolve corresponder às investidas do tabelião Honório, um homem citado na narrativa como formalíssimo. Mais adiante falaremos especificamente sobre essa personagem.

Honório ajudou a esposa a cumprir sua promessa, tanto que no romance é organizado um abecedário, que vai de (A)uxiliadora a (Z)aqueu, a fim de ligar as caras aos nomes dos filhos do casal e suas respectivas histórias.

Entre tantos herdeiros, interessa-nos agora a 18ª letra da prole alfabética: Rizete. Ela é descrita pelo narrador como “A mais despachada e a mais bonita da família. A menos índia nas feições e no comportamento” (CASTRO, 2008). A primeira descrição que se dá à menina no romance, se refere à sua estética, elogiada pelo narrador e considerada diferenciada em meio a tantos irmãos, seguida então das suas características de personalidade. Ainda sobre as descrições primeiras, elas apontam para certa superioridade em relação aos demais membros da família (aparência e comportamento). Porém, mais adiante o que veremos são que essas diferenças físicas e comportamentais são usadas como artifícios para confrontar a figura de autoridade maior do romance, Honório.

Antes de ampliarmos a lente para Rizete, cabe ressaltar que a natureza carnavalesca do romance é demonstrada também através das datas que marcam festividades. Essas são apresentadas em seu caráter oficial, para mais adiante serem atravessadas pelos imprevistos e desobediências que configuram a vida não oficial. Tomamos como exemplo o pastoril, citado pelo narrador como um acontecimento anual/tradicional organizado pelo provedor da família, Honório.

Dois meses antes do Natal, o velho Honório começava a ensaiar o pastoril. Pegava as meninas pobres do bairro e formava dois cordões: o azul e o encarnado, a quem ensinava, com impaciência infinita, os versos de saudação ao menino Deus (CASTRO, 2008, p. 21).

No discurso da oficialidade, o pastoril, de acordo com as pesquisas de Vieira (2012, p. 13) “[...] tem sua origem vinculada ao teatro religioso semipopular ibérico, pois, na Espanha e Portugal, as datas católicas se transformaram em festas eclesiásticas e, ao mesmo tempo em festas populares [...]”, ou seja, é um festejo em

que se tem a conexão da instituição representativa da ordem, a Igreja, ligada à esfera pertencente à “injúria”, o povo. No romance de Nei Leandro, o narrador segue sobre a descrição do pastoril e sua configuração, que segundo ele, costuma ter como algumas de suas personagens principais, a mestra, a contramestra, Diana, a camponesa, a borboleta, o pastor e o palhaço, este último já tinha “religiosamente” como intérprete, Rizete.

No ano de sua estreia, logo que entrou em cena, levantou a perna e fez a imitação mais perfeita de um peido altissonante. Ao palhaço era permitido tudo, por isso o velho Honório controlou sua estupefação. Mas a cólera lhe subiu à cabeça, deixou-lhe o rosto magro, escalavrado pelo tempo, com manchas vermelhas de ira. A sua volta, todo mundo ria sem controle. Rizete apalpou o fundo das calças folgadas, fez uma careta inimitável e gritou: - ih, me borrei. [...]. A contramestra, num frouxo de riso, empapou de mijo o vestidinho azul e nessa noite o seu cordão dançou desfalcado (CASTRO, 2008, p. 22).

A figura do palhaço, conhecida popularmente por seu viés cômico, autorizava Rizete, dentro daquela esfera, a desviar a ordem e viver um mundo paralelo, onde a vida real era experimentada efetivamente, numa moldura totalmente oposta ao que propõe o regime oficial. Para Rizete, não se tratava apenas de uma nova roupa ou uma representação qualquer de uma personagem, era a própria vida dando aval as suas vontades e possibilitando-a ser quem realmente era na frente de todos (ainda que temporariamente), dentro da visão carnavalesca, um momento de metaforização do cotidiano e de crítica.

A menina aproveitava a liberdade que a personagem lhe dava, para pintar o rosto, vestir as roupas dos irmãos e ultrapassar as barreiras impostas dentro da família com brincadeiras e atitudes que em dias considerados “comuns” seriam terminantemente proibidas ou ignoradas. A cena é tomada por momentos que conduzem a aproximação. Paralelamente, vemos figuras e situações que tratam da seriedade do mundo e ações que se regozijam diante de um riso carnavalesco, dentro de uma espécie de mundo ao contrário, ou seja, antagonicamente, os diferentes não se distanciam, mas se aproximam. “Há dois anos que o palhaço incontestável era Rizete. Pintava o rosto com cortiça queimada [...] vestia roupas dos irmãos mais velhos, umas botinas reiúnas e fazia o diabo” (CASTRO, 2008, p. 22). O humor contido rir-se da imperfeição, da subversão da ordem, do mundo imperfeito, por isso

diferencia-se do humor que trabalha apenas com amenidades, que se atem somente a rir e fazer piadas, representando o sorriso equilibrado da sociedade.

Em se tratando das figuras que impunham seriedade, a primeira é a do pai, que desde seu surgimento no romance é pleiteado como um homem sério, distinto e de linguajar extremamente rebuscado, cujo narrador chama de “linguagem tabelioa”. O segundo é o evento do pastoril, entremeado na tradição cristã e na tradição da família dos Cançado, as duas figuras carregam em seus discursos um forte apelo a ordem.

Paralelamente, outra imagem é alçada pelo narrador como uma oposição explícita ao sério e ao controle exercido pelo mundo oficial, nesta, encontramos imagens representativas do realismo grotesco, que para a sociedade regular são totalmente negativas, tendo em vista a ideia de corpo expurgado, individual e maquinário disseminada culturalmente. “No ano de sua estreia, logo que entrou em cena, levantou a perna e fez a imitação mais perfeita de um peido altissonante”.

A representação inicial de Rizete coloca em evidência o riso e o baixo corporal. Por meio da imitação de um peido altissonante (com som exagerado, estridente, indiscreto) faz emergir e transformar um acontecimento considerado da esfera privada e individual, realizado essencialmente por meio do baixo corporal e que solicita o máximo de descrição, tendo em vista o desconforto e o constrangimento que essa ação gera socialmente, em um momento de destaque na comemoração. A ação de rebaixamento negada na vida ordinária de um mundo dito civilizado, ganha visibilidade e é evidenciada como um ponto alto da peça causando comoção através de um riso coletivo: “A sua volta, todo mundo ria sem controle [...] em volta do palco armado para o pastoril, com exceção do velho Honório, todo mundo gargalhava”.

Seguida dela, outras duas situações, também consideradas íntimas aparecem, todas ligadas ao riso e no sentido do baixo corporal e de seus excrementos. Ao apalpar as calças, Rizete se dá conta de uma incontinência que a leva a defecar: “Rizete apalpou o fundo das calças folgadas, fez uma careta inimitável e gritou: — ih, me borrei”. Depois vem a colega, a contramestra, que não conseguiu segurar o riso e urinou no vestido da apresentação: “A contramestra, num frouxo de riso, empapou de mijo o vestidinho azul e nessa noite o seu cordão dançou desfalcado”.

As imagens corporais ligadas ao riso, através daquilo que o corpo descarta, apontam para o rebaixamento, que enviesado pelo humor causam a dessacralização de uma norma (uma ação da esfera privada acontece na esfera pública) e a deformação do discurso de ordem de Honório e do evento do pastoril. As fezes e a

urina, elementos representativos daquilo que o corpo rejeita por não servi-lo mais, aparecem num contexto de celebração, como representação da liberdade das personagens, em devir. Se na sociedade sisuda as necessidades fisiológicas são comumente tratadas como tabu, cumpre destacar que no realismo grotesco, o comer e o beber, a defecação e a urina se manifestam como forças renovadoras, num corpo que assume um lugar de centralidade, principalmente através de seus orifícios, considerados locais de contato entre o mundo interior e o exterior.

No capítulo sexto de seu livro A cultura popular na idade média e no

renascentismo, o contexto de François Rabelais, Bakhtin cita as palavras do oráculo

da Dive Bouteille (a Divina Garrafa), que fala do poderoso movimento para baixo, que o centro de todos os interesses se transfere para baixo, para as profundezas, para o fundo da terra. Em seguida o autor conclui que as verdadeiras riquezas e abundâncias não são encontradas na esfera superior ou mediana, mas unicamente no baixo, e que também as coisas escondidas na terra são superiores às do céu. O autor russo endossa.

A orientação para baixo é própria de todas as formas da alegria popular e do realismo grotesco. Em baixo, do avesso, de trás para a frente: tal é o movimento que marca todas essas formas. Elas se precipitam todas para baixo, viram-se e colocam-se sobre a cabeça, pondo o alto no lugar do baixo, o traseiro no da frente, tanto do espaço real, quanto na metáfora (BAKHTIN, 2008, p. 325).

As imagens apontadas para baixo estão ligadas intimamente à cena. É notório que o grotesco degrada o sublime, o ideal, o oficial, achincalhando o evento o qual Honório se arroga.

Ainda sobre o pastoril, mais adiante o narrador fala de sua culminância e dos atravessamentos até a chegada dela. Por meio de Anunciada, os discursos considerados oficiais e não oficiais são mais uma vez confrontados, agora em torno da fé. Prestes ao acontecimento do evento, a índia pressentiu através de uma dor característica no joelho, que algo de ruim estava para acontecer. Essa dor a acompanhava sempre que houvera alguma premonição de que algum mal facejo estava por acontecer.

Desde cedo ela sentiu uma dor aguda no joelho esquerdo, como se um nervo lá dentro estivesse sendo extirpado. Não deu o alarme. Ficou em seu silêncio índio em cima da cama, pensando, juntando o anúncio daquela dor as mortes

de sua família. Fora assim um dia antes de seu pai ser abatido com um tiro de espingarda (CASTRO, 2008, p. 23).

O narrador segue a contar que Anunciada, que ainda estava de resguarde de seu 26º filho, passou o dia deprimida, receosa com o anúncio que sua dor no joelho lhe dava. Honório, vendo a esposa num recolhimento maior que o habitual a questionou:

—Sofres? — perguntou Honório, sentando-se ao seu lado. Quando pôde falar, Anunciada disse ao marido:

— Hoje vai acontecer alguma coisa.

— Sem dúvida. O pastoril é logo mais a noute. — Nório, não faça pastoril.

— Por que não haveria de fazê-lo? — Por que não.

— Oh, então é isto? Caprichos feminis? — levantou-se e saiu do quarto (CASTRO, 2008, p. 24).

A provável incredulidade do marido ao sentimento que alertava a índia, a fez encolher qualquer explicação, o raciocínio lógico do escrivão, não tornar-se-ia subserviente aos presságios de sua esposa, que conforme o narrador, continuou a meditar sobre o que sentia e fazer suas preces:

Às quatro da tarde, soprou um vento de levantar as telhas. Anunciada tinha pedido aquele vento em silêncio, numa língua em que ela nunca se expressava, mas que estava preservada em algum lugar do seu cérebro. Ela queria um vento que quebrasse o palanque armado no quintal [...] queria um vento solto, valente, furioso e mau [...]. E o vento veio, um vento tupã que assombrou meninos, fez os cães uivarem como lobos, transformou o palanque numa ruma de tábuas. A família numerosa se trancou nos quartos, todos rezavam e tentavam acender as velas, mas o vento soprava e apagava qualquer chama que ousasse se levantar. Honório quis enfrentar o vento, foi para o quintal, empurrou a bengala e desafiou o vendaval à sua maneira: — Sacripanta! Safardana! Sevandija! Então por que não açoitas a mim? Como se ouvisse a provocação, uma lufada em redemoinho levantou o desafiante, fê-lo girar no seu próprio eixo umas quatro vezes e jogou-o ao chão. O velho estatelou-se, acudiram três cavalheiros, todos três com o coração na mão. Só então Anunciada pediu ao pai vento, ao deus vento, que fosse embora, que ele tinha sido bruto machucando seu marido (CASTRO, 2008, p. 24-25).

Na cena deparamo-nos com dois discursos e suas oposições de vozes: o primeiro advém do misticismo, presente na personagem de Anunciada, que clama

pelo auxílio de tupã, considerado um deus da mitologia indígena brasileira, conhecido como “O Espírito do Trovão”, criador dos céus, da terra e dos mares. O outro discurso, considerado da razão é citado por Honório, que por não ver rastros que comprovem logicamente o motivo do pedido de sua mulher, simplesmente ignora-o e mantém de pé o compromisso, datado como um evento cristão.

A noite de 24 de dezembro do velho Honório caiu num sábado, 12 de fevereiro [...] o galego Assis, de roupa nova, passou pelo velho Honório e comentou enxerido: — Seu Honório, com sua licença, eu vi. Eu vi aquele vento brabo judiando com o senhor. O velho Honório lhe jogou um olhar de reprovação capaz de desarmar qualquer um, menos o galego Assis, que continuou: — Ventinho safado, hem? — bagatelas, disse o velho Honório, voltando-lhes as costas e se dirigindo para a cadeira de palha, de onde assistiria ao espetáculo. [...]

— Senhoras e senhores, peço vossa atenção para o folguedo popular que se inicia. Música, por favor. Ao som da melodia simples, as meninas de azul e encarnado começaram a cantar:

Meu São José, dai-me licência para o pastoril dançar. Viemos para adorarar...

— Parai, parai, alimárias! — gritou o velho Honório, pulando da cadeira, a voz esganiçada, o rosto magro mais velho do que nunca. E não pôde dizer mais nada. Bombardeado por três solecismos pesados, teve um derrame cerebral (CASTRO, 2008, p. 31-32).

Durante toda a cena as inversões sociais são carnavalizadas. Primeiro Nei Leandro coloca em oposição duas situações. A primeira, tida como não oficial, advinda da tradição indígena, relacionada à personagem Anunciada, considerada no romance uma índia sem instruções.

Os filhos homens de Hosana tinham desaparecido pelo mundo à procura da antiga tribo em alguma mata. E as mulheres ficaram por aí mesmo, não tendo no cú o que o periquito roesse. Todas parideiras, mas miseráveis, menos a índia Anunciada, diabo de riqueza muito da mal empregada, pelo visto ela nem conhecia o dinheiro. Não saía de casa, não tinha amigas, não visitava ninguém. O divertimento era emprenhar, parir, emprenhar. Um bicho do mato. Diziam que tinha bom coração, que ajudava as irmãs pobres, mandando cestas de comida e roupas usadas para todas. Du-vi-de-o-dó, dizia o povo (CASTRO, 2008, p. 34-35).

E a segunda, um evento tradicional cristão/católico, encabeçado por Honório, tido como um homem respeitado e letrado.

O autor, ao nos mostrar a eficácia do pressentimento de Anunciada, inverte a perspectiva socialmente criada em torno da religião oficial católica, frequentemente

acatada como propagadora de um discurso de fé disseminado e autorizado pela maioria dos cristãos em nosso país.

Ao colocar em evidência, não a ciência, que é fruto da lógica e dos estudos acadêmicos/religiosos, mas a sabedoria da índia, adquirida através de sua criação, fruto de tradições populares, ele eleva a credibilidade da crença não oficial, inaceitável ao mundo racional.

O próprio nome da índia, Anunciada, nome cristão, que também se relaciona ao ato de comunicar-se, carrega consigo uma forte inversão carnavalesca. É do silêncio de Anunciada e do misticismo que ela carrega, frutos de um mundo não oficial ao qual a índia faz parte desde a sua concepção (até a escrita de seu sobrenome Cançado é uma afronte ao formalismo acadêmico), que se obtém a sabedoria assertiva daquilo que iria acontecer. Sabedoria essa não considerada pelos discursos de ordem.

Nei Leandro também ironiza por meio da personagem de Honório o excesso de formalidade aplicado à vida cotidiana, pois mesmo o escrivão estando ali a serviço de um evento popular cristão, com direito a trilha sonora que até por santo chamava, este não foi “abençoado”, como se espera na tradição cristã que aconteça aos que servem a Deus. O que se vê é o completo oposto, pois quando a formalidade de Honório é quebrada pelas pastoras, devido ao mau uso das regras gramaticais (o que suscita na narrativa uma crítica através da negação-celebração de uma norma linguística não- padrão e uma quebra com o discurso oficial de pureza e correção gramatical), o escrivão fica enfurecido e é “castigado” por um derrame cerebral, ou seja, o excesso de ciência e rigidez, desta vez, encoberto pelo discurso cristão, o castigou, lhe tirou a saúde.

Assim, mais uma alteração é inserida ao romance, o marido que antes era considerado o mandante da família, com seu dialeto incompreensível, porém de extrema autoridade, agora requeria cuidados de pessoas com saberes cientificamente rasos, para os afazeres básicos do dia a dia.

Vendo o marido inválido, alimentando-se pelo lado esquerdo da boca com colheradas de papa, teve ímpetos de destruir a martelo ou cortar com uma faca aquela imprestável fonte de coisas ruins (CASTRO, 2008, p. 35).

Mais uma vez a figura que representa a hierarquia é rebaixada e subvertida pelo autor, para conferir a mulher um papel de protagonismo dentro da família, pois é

a partir desse momento que a índia toma as “rédeas” dos Cançado e transita do papel de comandada para comandante.

Nota-se que Anunciada e Honório, devido à própria descrição dada pelo narrador, se demonstram como verdadeiras antíteses que andavam paralelamente em dois mundos: o oficial e o não oficial. Sobre esses mundos, as características já haviam sido citadas por Bakhtin ao falar do caráter cômico dos ritos e espetáculos na idade média.

Ofereciam uma visão de mundo, do homem e das relações humanas totalmente diferente, deliberadamente não- oficial, um segundo mundo e uma

segunda vida [...] isso criava uma espécie de dualidade do mundo, e cremos

que, sem leva-la em consideração, não se poderia compreender nem a consciência cultural da idade média nem a civilização renascentista (2008, p. 5).

E é nesse mundo desmecanizado e às avessas, que o narrador nos mostra Anunciada. A personagem traz em si o sentido da ambivalência cravada em seu próprio nome. Se no termo “anunciada”, temos aquilo que se diz, se anuncia ou se expressa, no nome da personagem – “Anunciada” – vemos que ela se expressa pelo revés do que indica seu nome, agindo silenciosamenteem meio a tumultuada família.

Nesse sentido, a validação de seus pressentimentos indígenas, sem a necessidade de comprovação científica ou ortografia adequada para descrevê-los, colidem com a ordem discursiva imposta imperativamente pela fala de Honório. Ao velho controlador era possível exercer a ordem, redefinir datas, impor medo e respeito aos que o cercavam, exercer o poder e o mistério através de sua fala formal, enfim, colocar na linha aquilo que considerava não estar de acordo. Só que ao seu lado, havia um mundo paralelo vivenciado por Anunciada Cançado, munido de sua sabedoria índia, silêncio e olhar observador.

Outro momento no romance em que é evidenciada a cosmovisão carnavalesca é o aparecimento do personagem Volté, este é sobrinho de Anunciada, que por sugestão de Cleonice, a terceira na ordem cronológica dos filhos de Anunciada e Honório, indica que o primo, que tem a fala bastante semelhante a do pai doente o acompanhe. Volté nos é apresentado pelo narrador da seguinte maneira:

Aos 28 anos de idade, Volté era uma criança. Fazia ruídos com a boca, brincando de caminhão pelo corredor, pelos quartos, pelo quintal cheio de árvores. [...]. Os moleques lhe atiravam pedras, cuspiam no seu rosto, e Volté

tinha reações imprevisíveis. [...]. Normalmente, era meigo com os oito irmãos, cheio de carinho com a mãe, que parecia desprezá-lo, mais por medo que por desamor (CASTRO, 2008, p. 39).

O rapaz era o filho mais velho de Dr. Hermida e Justina Cançado (irmã de Anunciada Cançado), as confusões e desajustes em torno de sua infância já se iniciaram a partir do registro de seu nome. Volté, na verdade é Voltaire. Quando Dr. Hermida foi registrar o filho, o nome escolhido fora estranhado pelo escrivão tanto na escrita, quanto na pronúncia:

— Voltaire Cançado da Cruz — declinou ele ao escrivão.

— Como?

— Voltaire Cançado da Cruz.

— Por favor, só o primeiro nome: como se escreve?

— Como se pronuncia: Vol-tér.

O escrivão começou a escrever o nome, o dr. Hermida percebeu o erro:

— Como se pronuncia à francesa, faça o favor. Só estou estranhando o senhor desconhecer Voltaire, o gênio Voltaire.

— Quem diabo é Volté? — perguntou ingenuamente o escrivão. (CASTRO, 2008, p. 37).

E é desse modo que ocorre o primeiro passo de Volté para o pleno exercício da cidadania.

Colocar o nome do filósofo francês no menino, exigindo a escrita e a pronúncia, tais quais à francesa, associado ao exercício de um ar pedante em relação ao escrivão, por este não saber quem se tratava ser o filósofo, Voltaire, são as primeiras impressões que o narrador nos dá a respeito do pai de Volté, exibido como um homem de muitas palavras e pouco conhecimento, mas que mesmo esse pouco

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