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Na obra Space, Time and Perversion2, Elizabeth Grosz isola duas perspectivas de análise do corpo: a que denomina de «inscrição» (inscription) – e que relaciona com um corpo público, social, que funciona como superfície de inscrição da moralidade e da lei social – e a perspectiva do «corpo vivo» (lived body), adida da fenomenologia e psicanálise e que se debruça sobre a esquematização de uma anatomia imaginária. Embora duvide da possibilidade de síntese entre as duas, situa o corpo no limbo entre uma interioridade física e viva e um exterior condicionado sócio-politicamente que, por sua vez, determina o interior através da inscrição. O “modelo inscritivo” traduz-se na transformação do corpo pelos regimes institucionais e sociais (discursivos ou não) de

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CALVINO, Italo – A Aventura de um Fotógrafo. In Amores Difíceis. p.54. 2

Cf. GROSZ, Elizabeth – Space Time and Perversion. Essays on the Politics of Bodies. p.33-35. 2.1. O CORPO COMO IMAGEM, A IMAGEM COMO MODELO

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poder que, em todas as culturas, codificam o corpo – as práticas associadas à ritualização através de cicatrizes, tatuagens, circuncisão, deformação de membros, cirurgia estética, adorno, entre outros, servem a integração social. Ao marcar, a inscrição distingue a superfície do corpo, dividindo-a em zonas mais ou menos intensas – avaliação muitas vezes dependente de critérios eróticos – e fazendo do corpo uma superfície receptiva constituída por elementos intercambiáveis e substituíveis (a autora dá o exemplo do sistema oral constituído pelos lábios e seios, eventualmente associado ao ouvido e à mão) que se articulam como um código. No ocidente, o corpo encontra-se determinado pela distinção entre exterior e interior, em que o exterior é uma superfície onde se expressa a interioridade ou subjectividade e pode, por isso, ser lido e decifrado como um texto – à medida que a lei social é incarnada, o corpo é textualizado e os movimentos gerados pela relação exterior/ interior classificados de comportamentos (“behavior”). É sobre este exterior que actua a normalização que Foucault disseca e que sustenta as estratégias do «biopoder», onde o controlo do corpo nas variáveis dos nascimentos, morte, saúde ou sexualidade, o sujeitam à regulação institucional e à hierarquização social. Como superfícies, «Os corpos comunicam sem falarem, porque se encontram codificados com e como sinais. Eles comunicam códigos sociais. Tornam- se textualizados, narrativizados; encarnam, simultaneamente, códigos sociais, leis, normas e ideais.»3.

A divisão a que Grosz se refere distingue o corpo enquanto superfície pública – que, no ocidente, espelha o produto que resulta da relação entre constrangimentos sociais e um interior subjectivo – do interior, conceito que abarca designações como alma, “eu” ou consciência. Distinção semelhante é feita por Mike Featherstone4 que fala de um «inner body» e de um «outer body» mas, se o segundo parece conciliar-se com o “exterior” de Grosz, agora definido através da aparência e da forma como o corpo se move e controla no espaço social, o «inner body» associa-se ao funcionamento dos órgãos e à saúde do corpo. Três entidades emergem: o corpo público, onde motivações sociais e privadas se tornam visíveis; o interior subjectivo e o organismo biológico.

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«Bodies speak without necessarily talking, because they become coded with and as signs. They speak social codes. They become intextuated, narrativized; simultaneously, social codes, laws, norms, and ideals become incarnated.» .

Op cit., p.35. 4

Cf. FEAHERSTONE, Mike – The Body in Consumer Culture. In FEATHERSTONE, Michael ; HEPWORTH, Mike ; TURNER, Bryan S. (ed.) – The Body: Social Process and Cultural Theory. p.171.

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Apesar de todas as discussões teológicas que percorrem o tema, uma dissociação semelhante já se encontrava na separação católica entre alma, corpo e carne, separação onde o corpo se isola e, simultaneamente, permanece em contacto com a alma e a carne. O exemplo paradigmático é o do corpo de Cristo, onde se cruza o mortal e o imortal e sobre o qual, a propósito das discussões levantadas no século IV, se afirmou ser uma pura imagem, material mas dotada de substância5. Ao investigar a possibilidade de representação da imagem de Cristo, Hans Belting faz radicar o problema nesta dupla natureza, onde o irrepresentável assume um corpo físico através da encarnação, dogma que leva à condição particular do corpo no catolicismo e instaura Cristo como “verdadeira imagem”, único elemento representável da Santíssima Trindade. Foi este corpo duplo que teve que ser inventado como representação e cujo percurso Belting segue desde o sudário (como registo de prova do corpo ressurrecto) para a criação de uma imagem do sudário, onde as marcas do corpo se transformam na imagem de um rosto: o rosto de Cristo, modelo da humanidade. O rosto no véu que surge nas representações do mito de Verónica (a vera ícone, a “verdadeira imagem”) testemunha as duas naturezas de Cristo, em que uma se torna visível na outra e que, «Segundo a lenda, eram moldagens do seu rosto, que ele deixara na terra.»6. Nestas imagens, Cristo torna-se visível e Belting não deixa de enfatizar a “existência medial da imagem”, que condensa a prova ou o registo mecânico do corpo no sudário com a emergência do rosto como imagem:

As imagens deste tipo prestavam-se a uma dupla visão: à visão como prova e à visão como rosto. No primeiro caso, dependiam de um meio de contacto, no outro de um meio portador, embora se tratasse, das duas vezes, do mesmo lençol: o meio de contacto atestava a existência de um corpo verdadeiro, e o meio portador fazia aparecer uma imagem. Todas as imagens tornadas visíveis se formam em meios nos quais se podem, antes de mais, tornar visíveis para nós.7

Noutra passagem8, Belting detém-se na dificuldade que parece ter existido na representação primitiva de Cristo na cruz, que oscila entre uma imagem de Cristo de

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«(…) “inteiramente incorpóreo”, como “uma imagem incompreensível, viva, do Deus vivo”, portanto, de todo diversa das “imagens terrenas”, às quais falta sempre a substância do que representam. Mas Cristo possuía, ao mesmo tempo, um verdadeiro corpo (…). Este corpo era uma «pura imagem» (…).». BELTING, Hans – A Verdadeira Imagem. p.63.

Hans Belting refere-se aos escritos do teólogo e bispo palestinense da cidade de Cesareia que, no século IV, publicou a História Eclesiástica.

6 Cf. Op cit., p.94. 7 Op cit. 8 Op cit., p.111-13.

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olhos abertos ou outra com os olhos fechados; na Idade Média tardia resolveu-se a questão com a representação paradoxal de um cadáver vivo que, ao dirigir o olhar para o observador, atesta a coexistência de uma natureza mortal e de outra imortal num mesmo corpo. Como consequência desta dualidade, o autor considera que o corpo ocidental radica num modelo inalcançável que, como a sua representação, tenta conciliar uma natureza mortal – que é a da carne, ou o «inner body» de Featherstone – com a alma ou interior imortal.

A aproximação entre corpo e imagem decorre da “existência medial” pois ambos tornam visível, para o espectador, qualquer coisa que se encontra entre uma natureza material e uma outra, imaterial e fazem-no através de um suporte. É como suporte, ainda, que o corpo impõe um limite formal sobre uma matéria potencialmente disforme (ou informe) que é a da carne e, especialmente, torna visível a representação de um “interior” e de um “exterior” abstractos, cuja existência depende da sua estruturação visual e visível. No catolicismo, as virtudes da alma individual deviam coincidir com as manifestadas nos Mandamentos e espelhar-se de forma codificada no corpo, através do que se considerava uma aparência bela quando, em simultâneo, a aparência podia denotar a conspurcação da alma pela carne; actualmente, o corpo é o território de intersecção entre a norma social e o “eu” e a estruturação do “eu” depende da sua visibilidade.

Figura 41

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Ao analisar a forma de existência do corpo, José Gil define-o em termos de uma superfície que alberga uma profundidade, um exterior que remete para um interior, em que o interior é esquematizado pelo exterior. O autor avança o exemplo da forma como um “nariz arrebitado” traduz uma determinada impertinência – que não seria igual sem o tal “nariz arrebitado” – e afirma que, de certo modo, o exterior (especialmente o rosto) traduz um determinado interior; as duas geografias – interior e exterior – são autónomas mas «(…) é verdade que cada exterior o é de um interior (e reciprocamente).»9. Gil reconhece que, quotidianamente, os indivíduos assumem a existência destas duas regiões e tal é visível quando, por exemplo, um indivíduo tenta comunicar com outro: ao fazê-lo, procura dirigir a sua voz aos ouvidos do interlocutor, ou procura os seus olhos; nos momentos de intimidade, abraça o outro e toca-lhe a pele («(…) não vimos que um abraço pode ser um meio de ir na direcção da alma?»10); na relação sexual a intimidade afectiva implica a abertura e partilha de um espaço interno. A relação entre indivíduos sugere que ambos queiram a aproximação entre os seus interiores e tal é possível através da passagem realizada através dos orifícios – ouvidos, boca, pele, etc. – que servem de permeio entre exterior e interior, superfície e profundidade: «(…) não é na superfície do corpo próprio mas em profundidade, para lá desses orifícios, que se situa eventualmente a alma.»11. Aceitando-se ou não a existência desta separação (Daniel Dennett, por exemplo, defende que interior e exterior se encontram fundidos no corpo12), observa-se que ela é reconhecida ordinariamente, na relação entre indivíduos. No mesmo texto, Gil distingue aquilo que designa de profundidade de um outro interior, o dos órgãos. Neste contexto, afirma claramente que o espaço interior não deve ser confundido com os órgãos e associa a consciência da carne a mal-estar – quando um indivíduo sente a presença dos órgãos, fá-lo através da dor ou desconforto e essa sensação de mal-estar obriga a que a carne seja sentida como “estando a mais” ou sendo estranha ao sujeito13.

Estas considerações reafirmam a distinção entre três elementos: o exterior, a alma e os órgãos, entidades passíveis de fazer corresponder à alma, carne e corpo, desde

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GIL, José – Metamorfoses do Corpo. p.150. 10 Op cit., p.153. 11 Op cit. 12 V. supra p.196. 13

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que se atente no facto do corpo estar ligado e se confundir com a alma e com a carne (Gil não deixa de nomear o desconforto provocado pela consciência dos órgãos ao «viver do corpo»14). No entanto, ao definir a carne como um elemento estranho ao indivíduo, Gil atribui à alma e ao corpo o papel determinante na definição do que o indivíduo é, visão que concorda com as acepções ocidentais tradicionais que excluem a carne. Em simultâneo, falar do corpo em termos de superfície e profundidade é estabelecer um paralelo entre corpo e imagem uma vez que, também a imagem, se define precisamente assim, como superfície e como profundidade.