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O interior e o exterior da caverna de Platão separam a “imagem-ilusão” da “imagem do pensamento ou imagem moral”, definida por Deleuze como aquela que subjaz ao pensamento filosófico e é o seu pressuposto. Deleuze constata que a filosofia parte de uma «(…) matéria pura, um elemento.»97 que é o pressuposto da existência de um pensamento natural orientado para o que é Verdadeiro; e, seguindo Nietzsche, declara que acreditar na boa natureza do pensamento, encaminhado para o Verdadeiro e, logo, para o Bem, é um desígnio moral. Assim, «(…) o pensamento conceptual filosófico tem como pressuposto implícito uma imagem do pensamento pré-filosófica e natural, tirada do elemento puro do senso comum. »98 e é esta imagem que classifica de dogmática, ortodoxa ou moral. A imagem, que Deleuze crê emergir simultaneamente na criação de conceitos, foi transformada em derivação dos conceitos99, como as sombras da caverna são derivações dos objectos e, finalmente, da luz do Sol: para lá da superfície da imagem existem os conceitos, ou a imagem-moral.

Este para lá encontra-se, também, na “pintura como janela” e no entendimento tradicional que faz coincidir o espaço sugerido para lá da janela com conceitos de origem platónica, uma «(…) verdade ou significado interior no qual o intérprete pode penetrar.»100 e que Rosalind Krauss (ao analisar a obra de Cindy Sherman) identifica com a Verdade, o Ideal ou a Mente, ou seja, assume-se que a imagem é um contentor de essências, ou um “cofre onde se deposita o visível”101.

A relação “corpo-superfície”/“essência” existe na própria definição de imagem: ela é qualquer coisa que existe sem se fixar (“an image”), por contraste com a fixação num suporte (“a picture”): de um lado, o acto deliberado de representar e utilizar meios actuantes sobre um suporte concreto e, do outro, um acto menos determinado, muitas vezes passivo ou automático, que origina um fenómeno de aparição virtual, onde se

97

DELEUZE, Gilles – Diferença e Repetição. p.226. 98

Op cit. 99

Cf. RAJCHMAN, John – As Ligações de Deleuze. p.40. 100

«(…) inner truth or meaning to wich the interpreter might penetrate.» KRAUSS, Rosalind – History Portraits. In CINDY SHERMAN.p.174. 101

«(…) o seu modelo [o da pintura a óleo] não é tanto o da janela aberta para o mundo como o cofre-forte inserido na parede – um cofre onde está depositado o visível.»

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incluem as imagens verbais, acústicas e mentais102. O carácter potencial da “ideia” e da “imagem” determina a confusão entre ambas, caso promovido pela estratégia platónica que separou a “ideia” da sua raiz epistemológica, “ver”. Assim, encontra-se a situação recorrente de confundir a “ideia” com a “imagem”, no sentido em que a “imagem” seria a essência, ou a “ideia” de qualquer suporte imagético:

Any attempt to grasp the “idea of imagery” is fated to wrestle with the problem of recursive thinking, for the very “idea” of an “idea” is bound up with the notion of imagery. “Idea” comes from the Greek verb “to see”, and is frequently linked with the notion of “eidolon”, the “visible image” that is fundamental to ancient optics and perception. A sensible way to avoid the temptation of thinking about images in terms of images would be to replace the term “idea” in discussions of imagery with some other term like “concept” or “notion”, or to stipulate at the outset that the term “idea” is to be understood as something quite different from imagery or pictures. This is the strategy of Platonic tradition, which disguises the eidos from the eidolon by conceiving of the former as a “suprasensible reality” of “forms, types, or species”, the latter a sensible impression that provides a mere “likeness” (eikon) or “semblance” (phantasma) of the eidos.103

Podemos pensar que a tradição platónica convidou os espectadores a pensar no “por detrás da imagem”, ou na realidade pura de que a imagem tende a ser o fantasma mas, na relação entre a “image” e a “picture”, podemos inferir uma relação analógica: numa “picture” existirá a apresentação de uma image, do que não é «(…) uma apresentação material, mas uma “semelhança” abstracta, geral e espiritual.»104. Como exemplo, pode pensar-se nas aguarelas que Dürer realizou a partir de um sonho (O Sonho, 1525), ou na apropriação mental realizada por um espectador a partir do contacto com uma pintura. A sequência circunda, então, a “picture” que cobre “an image” e “an image” que, tradicionalmente, cobre uma Verdade.

102

Cf. MITCHELL, W. J. T. – Picture Theory. p.4.; MITCHELL, W. J. T. – What do Pictures Want? The Lives and Loves of Images. p.84-85.

103

MITCHELL, W. J. T. – Iconology. Image, Text, Ideology. p.5. 104

«(…) a material picture, but an abstract, general, spiritual “likeness”.» Op cit, p.31.

Figura 50

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A função da imagem como véu que protege os sujeitos do encontro com um real traumático é enfatizada por Freud quando descreve o fetiche: em Fetichism105, exemplifica a estrutura do fetiche através da explanação do caso de um homem cujo gozo advinha da existência de um “brilho do nariz”. A fetichização da imagem do “brilho do nariz” é, aí, um substituto que protege o indivíduo de uma verdade recalcada e traumática, a saber, a inexistência do falo materno e o consequente medo da castração. Este entendimento da imagem como substituto e o privilégio do modelo linguístico (a procura do significante, pois «(…) o sujeito é o sujeito significante – determinado por ele (…)»106) leva Mitchell a observar uma «(…) hostilidade estrutural da psicanálise em relação às imagens e representações visuais.»107, fazendo das imagens um sintoma, o substituto de um desejo impossível e da análise a forma de descodificação do seu conteúdo manifesto para encontrar o conteúdo latente que se expressa na linguagem. Deleuze afirma que a vontade de encontrar o “definido para lá do indefinido” leva a psicanálise a ignorar o contexto e a prescindir do referente para colocar no lugar do desejo o código e se reger pela verdade do “significante-mestre”108.

105

Cf. FREUD, Sigmund – Fetichism. In PHILLIPS, Adam (ed.) – The Penguin Freud Reader. 106

LACAN, Jacques – O Seminário. Livro 11. Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise. p.69. 107

«(…) structural hostility of psychoanalysis toward images and visual representations.» . MITCHELL, W. J. T. – What do Pictures Want? The Lives and Loves of Images. p.69. 108

Cf. DELEUZE, Gilles – Psychoanalysis and Desire. In BOUNDAS, Constantin (ed.) - The Deleuze Reader.

Figura 51 Cindy Sherman, Untitled # 225, 1990

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Georges Didi-Huberman109 complexifica esta estrutura e distingue a «imagem- fetiche» da «imagem-dilaceramento». A «imagem-fetiche» relaciona-se com a «imagem-véu» – que existe como conceito desde Platão – enquanto imagem que esconde qualquer coisa e persegue uma ilusão, uma vez que o fetiche procura manter a teoria apesar da realidade: manter a teoria de que existe um falo materno através do desvio da atenção para um objecto sucedâneo, mesmo sabendo não existir tal coisa como um falo materno. A «imagem-dilaceramento», por seu turno, concilia a beleza com o insustentável e remete para os escritos de Lacan (que fala das imagens dos sonhos) em que, através da imagem, o olhar do nada actua sobre um sujeito: para lá da imagem existiria a revelação de um fragmento do real, perante o qual as palavras e categorias falham e onde se mostra o objecto da angústia por excelência, «(…) a própria imagem da deslocação, do dilaceramento essencial do sujeito.»110.

A Verdade dos conceitos universais e a Verdade de cada indivíduo estaria para lá da imagem, nesse espaço do «(…) significado ou verdade interior (…)»111. Ao desfiar o figurino, Aurélia Thierrée não encontra o corpo mas, antes, o negro de uma cortina e, de forma análoga, quando analisa a série History Portraits (1989-1990), Krauss chama a atenção para a evidência da falsidade das próteses e adereços aplicados por Shermam: esses elementos artificiais funcionariam como véus ou máscaras e a falsidade óbvia indicaria a possibilidade da sua remoção de forma a aceder ao que se encontra “por detrás” da superfície; contudo, a imediata percepção das próteses como exteriores ao corpo, nega a possibilidade de existir realmente uma Verdade escondida, acessível através da remoção da superfície112.

A aceitação tradicional da Verdade para lá da janela e a sua negação, o facto de não existir qualquer totalidade para lá da superfície, juntamente com a liberdade humana em decidir ser iludido (ou “tocado”), cria as condições para fazer da profundidade associada à imagem um espaço de projecção que tanto diz respeito à relação entre referente e imagem, como a uma ficção que não é já (ou apenas) a da crença numa Verdade, é a projecção dos desejos particulares. É isto que mostra o amor do soldadinho

109

Cf. DIDI-HUBERMAN, Georges – Imagens Apesar de Tudo. p. 98-109. 110

LACAN, Jacques – Le Séminaire 11, p.209, cit. por Op cit., p.108. 111

«(…) inner truth or meaning (…)» .

KRAUSS, Rosalind – History Portraits. In CINDY SHERMAN. p.174. 112

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pela bailarina e, também, o episódio do Banquete113 de Platão quando, a propósito do amor que Alcibíades dedica a Sócrates, Alcibíades compara o segundo a um sileno, armários e arcas onde se guardavam obras preciosas. Quando Alcibíades fala de Sócrates, refere que essas obras seriam estátuas de deuses, ou seja, para lá do sileno estaria uma outra imagem. O amor, deste ponto de vista, é sempre o amor a uma imagem – pois não é possível aceder a nada mais que a uma imagem –, mas a uma imagem particular modelada segundo uma projecção (talvez por isso, nos beijos, se fechem os olhos: para recordar o amado apenas como imagem ou para encontrar um estado de cegueira114).

A relação entre a projecção de desejos e a imagem está traçada, não só porque se desejam certas coisas através das imagens, como porque se desejam outras que são imagens. No primeiro caso, remete-se para The Power of Images115, onde David Freedman relata vários casos em que a imagem foi utilizada para promover a ascese, edificar, dar graças ou encontrar o perdão – neste contexto, toma-se o exemplo dos ex- votos ou das alminhas portuguesas em que uma imagem é oferecida como meio de pagamento de uma promessa e como forma de agradecer ou selar um contrato de fé. No segundo caso, o do desejo de coisas que são apenas imagens, volta-se à ideia de que existe um vazio para lá da superfície, lugar onde se projecta o desejo dos indivíduos que, por isso, ama as imagens:

Sancho Pança entra num cinema de uma cidade de província. Está à procura de D. Quixote e encontra-o sentado a um canto, de olhos postos no écran. A sala está quase cheia, a galeria – que é uma espécie de varanda – está inteiramente ocupada por crianças barulhentas. Depois de algumas tentativas inúteis de ir ter com D. Quixote, Sancho senta-se contrariado na plateia, junto de uma menina (Dulcineia?) que lhe oferece um chupa-chupa. A projecção começou, é um filme de época, no écran correm cavaleiros armados, a certa altura aparece uma dama em perigo. De repente, D. Quixote levanta-se, desembainha a espada, precipita-se contra o écran e os seus golpes começam a

113

Cf. PLATÃO – O Banquete. 215 b. p.114.

114

A cegueira é tida como condição do amor e da existência da imagem quando Jacques Derrida, a propósito do gesto de desenhar, convoca o episódio de Butades e afirma que a mulher e o amado nunca se vêem, seja porque estão de costas voltadas ou porque os olhares simplesmente não se encontram *. Derrida continua afirmando que a sombra que a jovem regista é já uma memória e Mirzoeff reforça confirmando que a representação depende sempre da memória pois, enquanto o amado estava junto dela, a mulher não tinha necessidade de o representar mas, quando o fez, precisou de afastar os olhos do seu corpo para poder ver a imagem do desenho**. Quando representa - e re-presenta para tornar presente uma ausência -, a filha de Butades tenta aprisionar a sombra como entidade que “representa a alma ela mesma”, mas essa sombra depende e é já uma memória e, desse ponto de vista, uma construção daquela que a representa.

*Cf. DERRIDA, Jacques – Memoirs of the Blind. Self-Portrait and Other Ruins. p.49-51. **MIRZOEFF, Nicholas – Bodyscape. Art, Modernity and the Ideal Figure. p.36-37. 115

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rasgar a tela. No écran ainda se vêem os cavaleiros e a dama, mas o rasgão negro, aberto pela espada de D. Quixote, vai-se alargando cada vez mais, devora implacavelmente as imagens. No fim, do écran já quase nada resta, vê-se apenas a estrutura de madeira que o sustentava. O público, indignado, abandona a sala mas, na galeria, as crianças não param de encorajar freneticamente D. Quixote. Só a menina da plateia o contempla com ar de censura.

Que devemos fazer com as nossas imaginações? Amá-las, acreditar nelas, a tal ponto que temos de as destruir, falsificar (…). Mas quando, no fim, elas se revelam ocas, inatingíveis, quando mostram o nada de que são feitas, só então podemos descontar o preço da sua verdade, compreender que a Dulcineia – que salvámos – não pode amar-nos.116

Agamben fala de “imaginações”, aquilo que se descreve como uma «(…) faculdade de inventar, de conceber (…), fantasia (…), devaneio (…)»117 , quando se refere à acção em que D. Quixote tenta salvar Dulcineia; no entanto, a Dulcineia é ela mesma uma ficção criada por Quixote a partir de personagens de romances de cavalaria, que lhe forneceram as características da mulher ideal. A Dulcineia, como a tela do cinema, existe como imagem e Agamben torna clara esta relação: «O corpo dos desejos é uma imagem. E aquilo que é inconfessável no desejo é a imagem que fazemos dele.»118. O autor nega a possibilidade de a palavra (o significante) conter o desejo, uma vez que o último coincide com a imaginação e a imagem e, posteriormente, assume que «(…) aquele desejo inconfessável somos nós próprios (…)»119. Desejar uma imagem será, então, desejar-se a si, pois como Roland Barthes sintetiza, «(…) é o meu desejo que desejo e o ser amado mais não é do que seu subordinado.»120, um objecto mudo que existe diante do sujeito do enunciado e que funciona como um lugar semi-vazio, que aceita a projecção121.

Quando se refere à obscenidade com que o real é posto a nu em determinadas imagens (a pornografia em particular), Baudrillard esclarece que, sem ilusão, não existe nada para ver, pois é necessário que o objecto apareça e se esconda para que olhemos verdadeiramente para ele122 – deste jogo resulta a fenda semi-vazia essencial à projecção e ao ver como actividade de procura activa para lá da ilusão123.

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AGAMBEN, Giorgio – Profanações. p.135-36. 117

COSTA, J. Almeida ; MELO, A. Sampaio – Dicionário da língua Portuguesa. p.900. 118

AGAMBEN, Giorgio – Profanações. p.73. 119

Op cit. 120

BARTHES, Roland – Fragmentos de um Discurso Amoroso. p.40. 121

Cf. Op cit., p.11-13. 122

Cf. BAUDRILLARD, Jean – The Ecstasy of Communication. p.31-32, 45-56.

123

Walter Benjamin sublinha a necessidade de um véu à existência de beleza: o belo não é o véu ou o objecto velado, mas sim o «(…) objeto en su velo.»*. É o mistério e a necessidade de desvelar que constrói a beleza.

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2.2.3. ESTAR ALI

Em 1995 o artista Ugo Rondinone iniciou a série I Don’t Live Here Anymore, fotografias de pequeno formato (cerca de 150 x 100 cm) trabalhadas digitalmente. Em cada uma, Rondinone adiciona a sua face à imagem de corpos de modelos, imagens coleccionadas em revistas de moda representando corpos de jovens ou de adolescentes em poses sensuais. O vínculo que o título e a utilização da sua face estabelece com o “eu” remete para a ligação directa entre “quem eu sou”, “qual a minha identidade” e a imagem, como se em cada fotografia se procurasse aceder a uma identidade particular, obtida na experimentação de um corpo. O corpo assume um carácter determinante na construção efectiva da identidade que se estabelece nesta deriva pela imagem, dando forma material à metáfora que Bauman124 utiliza ao identificar a identidade contemporânea com a figura do peregrino. Bauman alerta para a dificuldade na construção de um projecto coerente quando é necessária a adaptação permanente à reflexividade contemporânea. Neste contexto, Giddens distingue a monitorização reflexiva da acção, inerente a qualquer actividade humana, da reflexividade moderna que deriva da rapidez e constância do fluxo de informação e que substitui as certezas fundacionais pré-modernas pelo critério da dúvida, obrigando a que os sujeitos adaptem as suas acções constantemente125, o que obriga à reformulação periódica da identidade. Neste contexto, a escolha de imagens de corpos adolescentes sublinha o carácter provisório da identidade, assinalando-se a adolescência como época de alterações constantes, decisivas e rápidas.

124

Cf. BAUMAN, Zygmunt – Life in Fragments – Essays in Postmodern Morality. p.88. 125

Cf. GIDDENS, Anthony – Modernidade e a Identidade Pessoal. p.16-17.

Figura 52, 53, 54 Ugo Rondinone, I Don’t Live Here Anymore, 1995-2012

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O trabalho sobre o corpo coincide, aqui, com o trabalho sobre a identidade mas releva-se o facto de os corpos seleccionados não serem quaisquer uns, são antes retirados do conjunto das “celebridades” que, como visto, são assinaladas como caso em que a aparência se separa do “verdadeiro eu”, que passa a estar concentrado num comportamento público ou abreviado numa função. A publicidade faz sobressair esta operação de redução quando relaciona o produto, o corpo do modelo que o publicita e a qualidade associada a ambos: x utiliza o champô y e é atraente, logo, o champô y torna os utilizadores atraentes, logo, semelhantes a x. Na moda, o processo é semelhante, podendo a colecção do costureiro e a aparência dos modelos que a promovem ser associada a irreverência, glamour, determinação, sucesso, etc. No limite, um objecto e o modelo podem surgir associados a qualquer significado, processo que Baudrillard descreve ao analisar a complexificação da estrutura do signo, tornando polivalente a relação entre significante (Ste) e significado (Sdo) – a estrutura do signo é arbitrária pois a relação entre significante e significado é uma convenção que, em princípio, é de tipo exclusivo; é a substituição da univocidade pela multiplicidade que caracteriza a transformação da arbitrariedade do signo:

A racionalidade do signo funda-se na exclusão, na aniquilação de toda a ambivalência simbólica, em proveito de uma estrutura fixa e equacional. O signo é um discriminante: estrutura-se por exclusão. (…) Esta consignação do Ste e do Sdo termo a termo pode muito bem complexificar-se numa relação equívoca, multívoca, sem infringir a lógica do signo. Um Ste pode remeter para vários Sdo, ou inversamente: o princípio de equivalência, portanto de exclusão e de redução sobre o qual se funda o arbitrário, permanece o mesmo. A equivalência tornou-se simplesmente polivalência. 126

Colocar o “eu”, metaforicamente condensado no rosto, no interior de um corpo corresponderia, então, a procurar traduzir o “eu” pelas qualidades apresentadas. A identificação entre o “eu” como interioridade subjectiva e a qualidade publicitada pela imagem mantém a estrutura tradicional que associa o interior ou a alma e o Bem pois, ainda que a actualidade reforce a necessidade de expressar na imagem a personalidade de cada indivíduo, parte do princípio que esta personalidade é “boa”, por isso digna de ser mostrada. Nesta equação tradicional falta a beleza como condição de transporte até ao Bem, sendo conhecida a justificação neo-platónica utilizada desde a Renascença para a representação do corpo nu, a de que a beleza divina se expressa na harmonia do corpo

126

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e do mundo. Esse meio de transporte continua a ser o do corpo: um indivíduo adquire um produto (o mesmo champô que usa um modelo, por exemplo), para ser atraente, mas ser atraente à semelhança do modelo, ser atraente tal como aquele corpo belo o é. O lugar onde a imagem se abre à projecção por parte do espectador é o do corpo do modelo pois, como é sabido e James Elkins reforça, o olho humano está desenhado para ver corpos uma vez que, em cada imagem, se procura o que é semelhante a si próprio, um doppelgänger ou um gémeo127.

Em I Don’t Live Here Anymore, Rondinone projecta-se e concretiza a projecção, colando o seu rosto ao corpo dos modelos. No entanto, assinala a impossibilidade do encontro ao deixar clara a montagem: ao invés de utilizar os softwares de manipulação de imagem para iludir a junção, deixa em todas as imagens da sua face sombras (sombras de fim-de-tarde128) que ameaçam a coerência interna da fotografia e denunciam a sua “falsidade”. A falha no encontro entre Rondinone e a imagem ideal também existe na própria duração da obra (iniciada em 1995 e com fotografias de 2011), prolongamento que atesta a recorrente insatisfação e o carácter provisório e precário de cada investida. Destes (des)encontros resulta uma dúvida acerca da identificação entre interior e exterior, bem como uma paródia à tradição ocidental segundo a qual a imagem reflecte a substância.

Para além das propriedades da imagem, o título argumenta a favor deste questionamento pois, ao contradizer a imagem (onde Rondinone efectivamente está representado), explora a fenda que existe entre imagem e linguagem, num processo de negação (isto não é aquilo) que recorda Ceci n'est pas une Pipe (1928-29) de René Magritte. Aqui – e de acordo com Foucault129 – a legenda afirma o óbvio, não é um cachimbo mas a representação de um cachimbo mas, ao fazê-lo, põe em causa uma

127

Cf. ELKINS, James – The Object Stares Back. On the ature of Seeing. p.120. 128

V. JANUS, Elizabeth – Ugo Rondinone. «Artforum». 129

Em Ceci n'est pas une Pipe, Magritte utiliza “Isto” para apontar a imagem, interpelando o espectador - “Isto” não é “aquilo”. Neste caso, «Magritte liga os signos verbais e os elementos plásticos, mas sem se