• Nenhum resultado encontrado

Em A Story About a Story (1995) o fotógrafo Duane Michals apresenta um espaço em abismo onde se adivinha a existência de um espelho que capta, simultaneamente, o referente e o reflexo. Indivíduo e reflexo são repetidos e sucedem-se num corredor potencialmente infinito e a relação que os une não se altera, vêem-se vendo numa cena capaz de ilustrar a relação entre o que nós vemos e o que nos olha197. O espelho tem a capacidade de, como a água de Narciso, fazer prever um interior que se estende fisicamente para lá de uma superfície e é esse o lugar onde o indivíduo de pode ver e poder estar, de uma forma utópica mas efectiva. Por este motivo, Foucault toma o espelho como exemplo paradigmático de uma heteropia, espaços próximos das utopias mas que existem, integram o espaço social e são geograficamente determináveis. Ainda assim, excluem-se de todos os outros espaços por serem sítios sem lugar algum, como os espelhos:

O espelho é, afinal de contas, uma utopia, uma vez que é um lugar sem lugar algum. No espelho, vejo-me ali onde não estou, num espaço irreal, virtual, que está aberto do lado de lá da superfície; estou além, ali onde não estou, sou uma sombra que me dá visibilidade de mim mesmo, que me permite ver-me ali onde sou ausente. Assim é a utopia do espelho. Mas é também uma heterotopia, uma vez que o espelho existe na realidade, e exerce um tipo de contra-acção à posição que eu ocupo. Do sítio em que me encontro no espelho apercebo-me da ausência no sítio onde estou, uma vez que eu posso ver-me ali. A partir deste olhar dirigido a mim próprio, da base desse espaço

197

166

virtual que se encontra do outro lado do espelho, eu volto a mim mesmo: dirijo o olhar a mim mesmo e começo a reconstituir-me a mim próprio ali onde estou. O espelho funciona como uma heterotopia neste momentum: transforma este lugar, o que ocupo no momento em que me vejo no espelho, num espaço a um só tempo absolutamente real, associado a todo o espaço que o circunda, e absolutamente irreal, uma vez que para nos apercebermos desse espaço real, tem de se atravessar esse ponto virtual que está do lado de lá.198

A “contra-acção” que o espelho exerce baseia-se no facto de ser possível o reflexo olhar o referente, fazendo-o ver-se a si. Tomando como constitutiva da relação entre espectador e imagem a reversibilidade do olhar, pode considerar-se que qualquer imagem pode ser, desde que actue sobre o espectador e num sentido figurado, uma heteropia, uma vez que se organiza como um lugar com o qual o indivíduo se identifica e onde se projecta e, daí, se olha, definindo-se e construindo-se a partir dessa tomada de consciência. Neste sentido, e nos termos da comparação de Mitchell, a imagem é «(…) uma espécie de espelho para o espectador (…)»199.

A leitura da história do espelho identifica duas posições hegemónicas sobre o objecto: a que o relaciona com a possibilidade de cada sujeito se conhecer e a que o conota com a frivolidade e superficialidade do cuidado da aparência, vectores que já se encontravam nas apreciações acerca do olho e da visão que, ora o tomam como o sentido mais próximo da alma (na procura de conhecimento e do divino), ora reconhecem a sua aproximação ao prazer e pecado carnal. Estes enquadramentos antagónicos existem, igualmente, no mito de Narciso onde, ao ver-se, Narciso se conhece e, como dita o oráculo, morre; mas ao amar a sua beleza, abre caminho às interpretações que relacionam Narciso com uma espécie de frivolidade e individualismo, ou ao privilégio do pessoal sobre o universal, do hedonismo sobre o esforço e o trabalho, como acontece em A Era do Vazio de Gilles Lipovetsky200.

198

FOUCAULT, Michel – De Outros Espaços.

199

«(…) kind of mirror for the beholder (…)» MITCHELL, W J. T. – Picture Theory. p.48. 200

LIPOVETSKY, Gilles – A Era do Vazio.

Figura 59

Duane Michals, A Story About a Story,1995

167

Em A República, Platão aproxima o espelho de um fazedor de ilusões, dando seguimento à condenação das imagens: «(…) se quiseres pegar num espelho e apresentá-lo de todos os lados; farás imediatamente o Sol e os astros do céu, a Terra, tu mesmo e os outros seres vivos, e os móveis e as plantas e tudo aquilo de que falávamos há instantes. – Sim, mas serão aparências e não realidades.»201. No entanto, no diálogo Alcibiades, o reflexo surge como mecanismo que gera a possibilidade do sujeito se conhecer:

SOCRATES: (…) If the inscription took our eyes to be men and advised them, “See thyself”, how would we understand such advice? Shouldn’t the eye be looking at something in which it could see itself?

ALCIBIADES: Obviously.

SOCRATES: Then let’s think of something that allows us to see both in and ourselves when we look at it.

ALCIBIADES: Obviously, Socrates, you mean mirrors and that sort of thing.

SOCRATES: Quite right. And isn’t there something like that in the eye, which wee see with? ALCIBADES: Certainly.

SOCRATES: I’m sure you’ve noticed that when a man looks into an eye his face appears in it, like in a mirror. We call this the “pupil”, for it’s a sort of miniature of the man who’s looking.

(…)

So, if an eye is to see itself, it must look at an eye, and at that region of it in which the good activity of an eye actually occurs, and this, I presume, is seeing.

ALCIBIADES: That’s right.

SOCRATES: Then if the soul, Alcibiades, is to know itself, it must look at a soul (…).202

Quem deseje conhecer-se deve olhar-se utilizando um espelho especial, aquele que, juntamente com a água, terá sido um dos primeiros a ser utilizado pela humanidade, o olho. No entanto e contrariamente à água, o olho pertence a um sujeito e é, de acordo com a tradição, o órgão que dá acesso à alma e é por isso que este espelho pode ser mais fiável, porque implica que ao ver-se reflectido no olho do próximo, o indivíduo “olhe uma alma” e deixe que a sua alma seja vista. Ao analisar este episódio, Sabine Melchior-Bonnet constata que o verdadeiro espelho será o olho humano exactamente porque nele se encerra uma alma e atribui a Sócrates a reconciliação com o reflexo que serve, agora, como meio de auto-conhecimento, contribuindo para que cada indivíduo se possa melhorar tendo por base o que vê e o que conhece de si203. Melchior- Bonnet revê esta concepção nos textos de Santo Agostinho que, ao considerar que o humano é feito à semelhança de Deus, acredita ser-lhe possível receber a luz divina caso

201

PLATÃO – A República. Livro VII. p.347-48. 202

PLATÃO – Alcibiades. In COOPER, J. M. (ed.) - Plato. Complete Works. p.591-92. 203

168

não se perca na ilusão da imagem dos espelhos materiais. O verdadeiro espelho é a Bíblia, que realiza o esplendor divino e onde o crente pode conhecer-se e melhorar através do encontro com o modelo divino204.

A água de Narciso instaura a utilização do espelho como ferramenta de auto- conhecimento, sendo conhecida a prática dos pintores se verem e, em muitas circunstâncias, pintarem o espelho nos auto-retratos, género associado ao olhar sobre si. Antagonicamente, é possível encontrar espelhos em alegorias sobre o orgulho, como na ilustração do Livro das Horas de Robinet Testard (c.1475) ou nos Sete Pecados Capitais de Hieronymus Bosch (c. 1490), que associam a vaidade à beleza. A superstição popular que prevê azar nos espelhos quebrados enquadra-se, por um lado, no “perigo que decorre do olhar” como meio de encontro com uma suposta verdade ou terror, ideia presente nos mitos de Narciso e Medusa mas pode, igualmente, fazer referência ao perigo da aparência e da “coqueteria” e aqui, pode pensar-se que, talvez, Medusa tenha morrido simplesmente por não suportar a fealdade do seu rosto, outrora belo. Uma revisão pragmática do mito mostra o percurso de uma mulher bela que, em consequência de um acto cuja responsabilidade não lhe pertence totalmente (afinal, foi seduzida por um deus), foi transformada num monstro. No conto de Charles Perrault, O Espelho ou a Metamorfose de Orante205, Calista trespassa Orante com um alfinete por não suportar ver reflectida a sua fealdade e, de forma similar, Medusa sofre quando aqueles que a olham se transformam em estátuas e lhe recordam, nesse momento, a sua monstruosidade. Medusa é feia, ainda, porque, como refere Mark Cousins, faz prever um interior maior que o exterior e remete para o grotesco que se associa à gravidez, sendo a própria Medusa uma criatura grávida206. Ao contrário de Merrick, o Homem Elefante, para quem a passagem do monstro à humanidade se faz, também, com a aceitação do reflexo e com o prazer no cuidado com a aparência, Medusa mantém a condição de monstro e a impossibilidade de olhar para si, prerrogativa eminentemente humana.

204

Op cit., p.110-11. 205

Cf. PERRAULT, Charles – O Espelho ou a Metamorfose de Orante. In Contos e Fábulas.

Orante ama Calista, em grego “a mais bela” e não se cansa de reproduzir a sua beleza. Quando o rosto de Calista fica deformado e embora todos o escondam, Orante não pode deixar de lho dizer. Furiosa, Calista trespassa Orante com um alfinete, provocando-lhe uma lesão fatal. O deus do amor, amigo de Orante, não consegue evitar a sua morte mas torna o seu corpo incorruptível e transforma-o num espelho veneziano, objecto que mantém as qualidades de Orante: não ter memória e não deixar de reproduzir a verdade. 206

169

Melchior-Bonnet traça a história do espelho e nota a raridade da sua utilização. Primeiro e como indicam os mitos, os espelhos eram superfícies reflectoras, como a água ou o bronze e os primeiros espelhos de vidro terão sido encontrados no século III a.C.; no entanto, as dimensões eram muito reduzidas e, já no século XVI, ainda se preferiam espelhos de metal aos de vidro, demasiado pequenos e com imagens pouco nítidas. A dificuldade em produzir espelhos de qualidade e de grandes formatos popularizou espelhos de pequenas dimensões, utilizados para o rosto que, juntamente com o que se designa de “partes altas” (cabeça, tronco e mãos), era o motivo de atenção na construção da beleza da aparência; ainda assim, estes pequenos espelhos eram apenas acessíveis às classes economicamente favorecidas. No século XVII eram ainda raros os espelhos de meio corpo, que apenas se popularizaram no século XVIII, juntamente com o nascimento da casa-de-banho que continha como mobiliário pequenas bancadas com gavetas e espelhos reclináveis, as coiffeuses207. Nestes espaços, dedicados ao cuidado com a aparência, comparados a laboratórios e confessionários, o indivíduo – particularmente a mulher – «(…) não deve ter medo de fazer gestos ridículos. Quando se está só, nunca se deve ter vergonha em frente do espelho»208. Só no século XIX se introduzem os espelhos de corpo inteiro e o crescimento do tamanho dos espelhos segue paralelo à integração da totalidade do corpo na construção da beleza, tal como a difusão dos espelhos à maioria (ou quase totalidade) dos cidadãos demonstra o alargamento do cuidado da aparência a todos os indivíduos e, consequentemente, a massificação do mercado da beleza.

Para além de hierarquizarem as partes do corpo – e como regalia social – os espelhos distinguem nobres e burgueses do proletariado, bem como os cidadãos urbanos dos rurais. Ter um espelho era sinónimo de disponibilidade económica para a sua aquisição e, também, da existência de um corpo que não é, ou não se esgota, na função de ser valor trabalho. O corpo que se mira no espelho tem um valor de exposição, uma função ociosa e é por esse motivo que Baudrillard o associa à ascensão burguesa, a quem é permitido o privilégio de reproduzir a sua imagem209. O corpo nobre e burguês

207

Cf. MELCHIOR-BONNET, Sabine – The Mirror: A History. p.80. 208

«(…) a woman shouldn’t be afraid of making ridiculous gestures. When one is alone, one never has to be shy in front of a mirror!»

COMTESSE DE GENCÉ – Le Cabinet de Toilette. 1870, cit. por Op cit., p.96. 209

«(…) the mirror is an opulent object which affords the self indulgent bourgeois individual the opportunity to exercise his privilege – to reproduce his own image and revel his possessions.»

170

deve ser visto, enquanto o do proletariado não comporta essa dimensão, uma vez que lhe escapam os meios necessários à passagem da necessidade à estetização, questão que se mantém contemporaneamente nas diferenças no acesso aos bens e capitais necessários à construção de estilos de vida ditos de sucesso. Este tipo de distinção existe, também, relativamente aos cidadãos rurais e é apenas na segunda metade do século XVIII que se encontram espelhos nas suas casas, exactamente porque o corpo era uma ferramenta de trabalho e se encontrava generalizada a suspeição relativamente à “coqueteria”210. Por oposição, o corpo nobre constrói-se a partir da visibilidade e o espelho é o instrumento que permite a cada indivíduo tomar consciência de si de forma a poder modificar-se, de acordo com as directivas sociais.

Seguindo Melchior-Bonnet, a corte de Versalhes é o paradigma da construção de indivíduos públicos, criados através da aparência e da aprovação pública. O jogo de olhares existente na corte, onde todos são voyeurs e vistos, transforma as qualidades da nobreza em qualidades sociais, possíveis de treinar individualmente com o auxílio do espelho: «Beleza, graça e charme – essas qualidades naturais da nobreza – eram qualidades sociais que o espelho encorajava e mantinha ao ajudar o cortesão a regular os seus instintos e emoções.»211.Courtine e Haroche falam da sociedade da corte como uma sociedade da máscara em que o cortesão é um “homem duplo”, no qual ser e parecer são distintos; uma sociedade que privilegia a aparência e se oferece ao olhar dos pares, que controla os sentimentos, emoções e demais comportamentos em função da relação que estabelece com os outros212.

No exemplo de Versalhes, é notória a forma como o sujeito se vê a partir do olhar do outro e o espelho funciona como o lugar onde esse olhar social se inscreve; para além de se ver ali, no reflexo e de, desde esse lugar se ver, o olhar que retorna ao indivíduo é atravessado por juízos sociais que, obviamente, se encontram subjacentes ao olhar do sujeito como ser social. A afirmação de Warhol – «As pessoas não deixam de me chamar de espelho. E se um espelho olhar para outro espelho, o que é que encontra

BAUDRILLARD, Jean – The System of Objects. p.21.

210

Cf. MELCHIOR-BONNET, Sabine – The Mirror: A History. p.90-93. 211

«Beauty, grace, and charm – these natural qualities of nobility – were social qualities that the mirror encouraged and maintained by helping the courtier regulate his instincts and his emotions.»

Op cit., p.138. 212

171

quando olha?»213 – dá conta do permanente jogo de reflexos em que ver é uma questão de aparência. No entanto, no argumento de Sócrates, o olho como espelho implica que as almas se vejam e que o olho do outro inclua um sujeito que avalia e, por isso, funcione como um juiz daquilo que é entendido como a substância, a alma. Mas, num e noutro caso – e também na acepção da Bíblia como espelho – ver-se implica sempre o encontro com uma avaliação socialmente construída.

No espelho, então, «(…) estou além, ali onde não estou, sou uma sombra que me dá visibilidade de mim mesmo, que me permite ver-me ali onde sou ausente.»214 e admitindo que certas imagens se comportam como espelhos, permitindo ao espectador projectar-se ou identificar-se e, a partir da imagem, construir um olhar sobre si, pode aceitar-se que esse olhar virtual integra o eu e o outro, na medida em que os indivíduos são seres sociais e que existe uma possibilidade de ver significar construir uma imagem ideal, como já acusa o “ego ideal” de que fala Lacan a propósito da designada “fase do espelho”215.