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O reality show The Biggest Loser230, produzido pela NBC e com início em 2004 nos E.U.A., coloca os participantes numa quinta fechada, sem contacto com o exterior, ao cuidado de uma equipa médica e de dois personal trainers, Jillian Michaels e Bob Harper. O critério de selecção tem em conta o peso (e índices associados: índice de massa corporal, doenças como diabetes, apneia do sono, colesterol, etc.) que varia entre os 100Kg e os 200 Kg (Shay, na oitava temporada, começou com 216Kg). Ao longo de cada semana, os concorrentes seguem uma dieta rígida, praticam exercício físico durante várias horas e enfrentam “desafios”, provas onde se testam limites físicos mas, também, de coragem, capacidade de resistência intelectual e emocional e espírito de camaradagem. No final de cada semana são pesados e os dois concorrentes com menor percentagem de peso perdido enfrentam a eliminação e um deles, mediante a votação dos colegas, é expulso da quinta. Todos os concorrentes voltam a encontrar-se na “grande final” onde concorrem para um prémio monetário.

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«If you want to be like Barbie you´ve got to get yourself done.»

http://www.youtube.com/watch?v=aqYjcijOTFY. (09:58 min). (2011.11.15). 230

Actualmente, o concurso existe em inúmeros países – Alemanha, México, Israel, Austrália, Portugal, etc. Nos E.U.A., em Março de 2011, decorre a décima primeira temporada.

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Para além do intenso treino físico, Bob e Jillian apostam numa espécie de reabilitação psíquica, procurando desvendar as causas que levaram ao aumento de peso e argumentando que é necessário curar o “interior” para melhorar o “exterior” e trabalhar para deixar que o mesmo “interior”, agora sarado, se possa reflectir na aparência. A experiência no The Biggest Loser pretende marcar a ruptura com antigos hábitos e ser o início de uma alteração profunda no estilo de vida, auxiliando os concorrentes a adquirirem auto-estima e auto-confiança, o “it” a que Danny, vencedor da oitava temporada, se refere na grande final: «Sempre soube que tinha algo [it] dentro de mim.»231. O que se procura é potenciar sentimentos positivos capazes de auxiliar e manter as alterações no corpo que se traduzem numa melhoria significativa da qualidade de vida, não só porque promovem a saúde mas, também, porque alteram a aparência. No início, muitos concorrentes testemunham o seu afastamento da vida social e/ou amorosa, por terem vergonha de aparecer publicamente; findo o processo, atestam sentir-se mais felizes, corresponder mais adequadamente a papéis ou tarefas sociais (no emprego, parentalidade ou relação conjugal) e, ainda, terem recomeçado a viver. É para este sucesso particular que Jillian aponta no cartaz que publicita a abertura de castings para uma nova temporada: «Estás pronto para a tua própria história de sucesso?»232 enquanto, à semelhança da pose adoptada pelo “Tio Sam”, aponta o dedo a todos os que desejam um “corpo de sucesso”, próximo da definição muscular e elegância daquele que exibe. O desafio que Jillian propõe pretende angariar concorrentes mas remete, também, para a integração na “família”, ou no “movimento” The Biggest Loser: o reality show criou uma comunidade virtual que disponibiliza dietas e programas de exercício para auxiliar os americanos que desejem perder peso em casa; por cada kilograma perdido é doada comida ao programa Feeding America, um banco alimentar da comunidade próxima. Paralelamente, são comercializados produtos do programa (como tabelas para contagem de calorias, t-shirts, DVDs com programas de exercícios, etc.) e, em cada episódio, realizada publicidade a produtos alimentares, acessórios de ginásio ou outros, de marcas patrocinadoras do concurso. Outro dos apelos prende-se com a substituição da utilização de água engarrafada pelas garrafas de marca Brita (com

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«I always knew I’ve had it inside of me.».

Disponível em http://www.nbc.com/the-biggest-loser/video/categories/season-8-finale/1186424/. (2011.11.12).

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sistema associado de purificação) no programa FilterForGood, com objectivos ecológicos. Neste contexto, a “família americana” constitui-se de uma intrincada rede onde a perda de peso se associa a causas humanitárias e ecológicas e, enquanto harmoniza o sucesso pessoal com o activismo social, cada indivíduo torna-se parte, também, de um público televisivo e de um grupo de consumidores, alvo das estratégias do mercado. Aqui, verifica-se a colagem a um Bem tornado particular e determinado a partir do que “é bom” para um dado indivíduo e comunidade próxima, procurando-se agir localmente.

No início de cada temporada os concorrentes ostentam um peso excessivo e apresentam-se, em cada pesagem, com um vestuário mínimo (calções para os homens, calções e top para as mulheres), colocando a nu a quase totalidade do corpo. A diferença relativamente a anteriores comportamentos (como a vergonha de aparecer em público) é enorme, passando a existir uma disponibilidade quase total para revelar o corpo, ainda que essa apresentação não se faça de modo confiante mas, ao contrário, de forma pesarosa e não isenta de lágrimas. Esta atitude parece próxima de uma assunção da culpa diante da comunidade; a culpa e a vergonha que, historicamente, caminham a par e se fixam num corpo onde a carne se torna visível.

Figura 36, 37 The Biggest Loser

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Do ponto de vista do espectador – e para além de todos os motivos voyeuristas – existe o confronto com corpos habitualmente escondidos pela roupa e com a plasticidade e limite do corpo como forma: o excesso de carne provoca a deformação da forma imortalizada na imagem do cânone do Homem de Vitrúvio, que segue a estrutura óssea. A emergência da carne no primeiro plano debilita a função de protecção associada ao corpo, que tanto se verifica na edificação de um homem livre de pecado como na do homem moderno, que faz coincidir status e saúde e afasta-se da dupla função do corpo enquanto objecto de consumo: ser símbolo ocioso e valor de trabalho233.

É o corpo como contorno, limite ou moldura que ameaça ruir, fazendo crer que o interior é maior que o exterior, situação que Mark Cousins234 diz ser percebida como “repelente” por contrariar a crença na relação isomórfica entre a representação do objecto e o espaço que ele ocupa ou, mais concretamente, entre exterior e interior do corpo humano.

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Jean Baudrillard refere a ligação entre o estatuto da aristocracia e a função ociosa dos objectos e a relação entre os valores protestantes – que estiveram na origem do capitalismo – e a funcionalidade*. Esta dupla função transita para o corpo através do que podemos considerar ser o valor de exposição e o de trabalho. A visibilidade total do corpo foi uma conquista do final do século XIX, como mostra a introdução dos espelhos de corpo inteiro no mobiliário das classes burguesas quando, até à data, apenas existiam (e raramente) nos salões, reservando-se para uso privado os pequenos espelhos de rosto. Ainda assim, no século XIX, os grandes espelhos continuam a ser um artigo de luxo que as classes operárias não podem pagar, situação que indica que a função do corpo operário é ser força de trabalho e não objecto de prazer visual **.

*Cf. BAUDRILLARD, Jean – Para uma Crítica da Economia Política do Signo. p.14-15. **Cf. VIGARELLO, Georges – História da Beleza. p.200-01.

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Cf. COUSINS, Mark – The Ugly. In BEECH, Dave (ed.) - Beauty. p.146.

Figura 38 Cindy Sherman, Untitled # 175, 1987

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É o colapso entre estes dois espaços – interior e exterior – que Laura Mulvey identifica nas Disgust Pictures (1987-1991) de Cindy Sherman quando as descreve como «(…) detritos sexuais, comida em decomposição, vómito, lodo, sangue da menstruação, cabelos.»235, substâncias que levam a pensar na anorexia e bulimia236. De acordo com a autora, o corpo desaparece e denota a exaustão das categorias interior e exterior que implicam a dissolução do corpo como fachada ou mascarada cosmética, tal como configurado pela sociedade patriarcal. Filiada na crítica feminista, Mulvey fala especificamente da construção do corpo feminino enquanto fetiche masculino mas, ao assumir a possibilidade desse corpo-fetiche ou aparência se esfumar e se transformar num corpo sem significação, abre caminho à consideração da dissolução do corpo como construção, independentemente do género. Deste ponto de vista, a ameaça à integridade do corpo como imagem ou aparência – o véu que cobre a carne – coincide com um ataque a todas as construções acerca do que é o humano, nomeadamente as modernas, que desejam um sujeito capaz de controlar o destino, a vida e a morte. A visibilidade da carne implica, então, uma dupla destruição: a do corpo simbólico (a representação) e a do corpo que contém a carne (o limite formal), configurando a última a destruição da primeira.

O grau de obesidade dos concorrentes do The Biggest Loser aponta a evidência de uma falha no controlo: a emergência da carne gera indivíduos doentes e faz prever a morte («E a carne, não é o que designa em todo o caso o sangue absoluto, o informe, o interior dos corpos, por oposição à branca superfície?»)237. Prova-se que, apesar de dominarem o corpo, os indivíduos não controlam de forma total a carne pois, «Quando

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«(…) sexual detritus, decaying food, vomit, slime, menstrual blood, hair.».

MULVEY, Laura – A Phantasmagoria of the Female Body: The Work of Cindy Sherman. p.144.

Mulvey descreve a obra como abjecta que, como Julia Kristeva considerou em The Powers of Horror. An Essay on Abjection (1980), traduz um sentimento de atracção e repulsa e se relaciona com o momento do nascimento. Por esse motivo, apesar dos dois sexos poderem ser abjectos, a liquidificação e decadência do termo tem sido conotada com o feminino. Historicamente, a gravidez tem justificado a associação entre o feminino e o monstruoso e grotesco, exactamente por ser um corpo elástico, capaz de gerar outro corpo: de acordo com Mikhail Bakhtin*, a imagem da mulher a amamentar sintetiza o erótico e o grotesco, ambos associados ao feminino, pois o grotesco diz respeito a um corpo cuja fronteira de separação com o mundo é móvel, a um corpo em criação, inacabado; por oposição, o “corpo clássico” é homogéneo, harmonioso, monumental e fechado.

*Cf. BAKHTIN, Mikhail - Rabelais and His World. p.24-25. 236

V. KRAUSS, Rosalind – The Destiny of the Informe. In BOIS, Yve-Alain ; KRAUSS, Rosalind - Formless. A User´s Guide. p.238, 240.

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«Et la carne, la chair, n´est-ce pas ce qui désigne en tout cas le sanglant absolu, l´informe, l´intérieur du corps, par opposition à la blanche surface?»

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a carne reemerge, na sua presença absoluta, através da doença, por exemplo, o corpo desaparece subitamente.»238. O corpo torna-se «viscoso», estado de transição entre o líquido e o sólido239 ou, nas palavras de Didi-Huberman, na fronteira entre a forma e o informe240. A rejeição social desta decomposição da forma sob o excesso da carne é sintoma de uma sociedade bulímica, que despreza as marcas do seu próprio excesso, produzido numa sociedade do consumo que é também a do desperdício. A bulimia social transforma-se, a nível particular, no paradigma do corpo anoréctico, aquele que monitoriza as quantidades ingeridas numa forma patológica de controlo sobre si – é este o modelo proposto por Jillian e Bob no The Biggest Loser como forma de evitar a degradação do corpo. Na modernidade, a tentativa de controlo pretendia defender a sociedade enquanto todo; actualmente e à medida que os desafios de uma era se transformam em pandemias e catástrofes ecológicas globais que escapam ao controlo das nações, aumenta uma consciência particular do risco – a defesa torna-se privada e passa pelo cuidado com a saúde e com o corpo241, na tentativa de transpor para o corpo a imortalidade da alma. Valoriza-se o corpo saudável, atlético e vigoroso, capaz de responder por si e de agir sobre o mundo.

A estratégia do The Biggest Loser produz efeitos e os concorrentes emagrecem de facto. Paralelamente, eliminam ou melhoram as patologias associadas à obesidade e,

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MIRANDA, José A. Bragança de – Corpo e Imagem. p.102. 239

SARTRE, cit. por KRAUSS, Rosalind – The Destiny of the Informe. In BOIS, Yve-Alain ; KRAUSS, Rosalind - Formless. A User´s Guide. p.238.

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Didi-Huberman utiliza o termo «viscoso» num ensaio a propósito da escultura de cera e, no texto, define a viscosidade como «(…) a sort of activity and intrinsic force, which is a force of metamorphism, polymorphism, imperviouness to contradiction (especially the abstract contradiction between form and formless).»*. Yves-Alain Bois afirma que o informe de Didi-Huberman, tal como considerado em La Ressemblance de l’informe, ou le gai savoir visuel selon Georges Bataille (1995), é tido como decomposição ou deformação da figura humana e que essa acepção contraria os propósitos de Georges Bataille para quem o informe é uma operação e não remete para qualquer forma. Ao falar em deformação, Didi-Huberman domestica o informe e trá-lo de volta ao campo da semelhança quando, para Bois, o informe pretende transgredir os limites da forma e da significação, bem como de qualquer norma ou espaço homogéneo**.

*DIDI_HUBERMAN, Georges – Viscosities and Survivals. Art History Put to the Test by the Material. In DIDI-HUBERMAN, Georges ; DAVIS, Whitney; HECKER, Sharon ; KORNMEIER, Uta – Ephemeral Bodies: Wax Sculpture and the Human Figure. p.155.

**V. BOIS, Yves-Alain – Figure. In BOIS, Yve-Alain ; KRAUSS, Rosalind - Formless. A User´s Guide. p.80-81.

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Arthur e Marilouise Kroker falam da passagem do medo do pecado para o pânico face às epidemias (como a SIDA) e da eleição da vigilância da dieta e saúde como forma particular de resposta a ansiedades globais. O corpo isento de marcas de degradação e fluidos corporais, bem como o modelo do corpo atlético, é sinal de resistência ao pânico da morte e, igualmente, a um suposto desaparecimento do corpo sob a égide de um mundo cibernético.

V. KROKER, Arthur ; KROKER, Marilouise – Panic Sex in America. In KROKER, Arthur ; KROKER, Marilouise (ed.) – Body Invadors. Panic Sex in America.

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do ponto de vista médico, dá-se uma regressão etária (por exemplo, os níveis de colesterol passam a estar de acordo com os considerados normais para a idade do concorrente) que se torna visível numa aparência musculada e vigorosa. Elegância e juventude são conseguidas a partir da utilização do argumento da saúde (o que faz bem e faz sentir-se bem) que, como nos séculos XVIII e XIX, é uma estratégia de responsabilização do indivíduo sobre si e, no caso, auxilia a vitória sobre a carne. Em cada temporada, o melhoramento físico é acompanhado de uma mudança na aparência, gerida por personalidades ligadas à indústria da moda, como Tyra Banks (sexta temporada) ou o consultor de imagem Tim Gunn (de forma recorrente) e onde se altera o cabelo, maquilhagem e vestuário, actualizando e rejuvenescendo o “estilo”. Posteriormente, os concorrentes desfilam numa passerelle e são aplaudidos pela família chegando a aparecer publicamente no Tyra Banks Show. Da “vergonha em aparecer” passa-se a um estatuto que, embora de forma efémera, é muito próximo do das “celebridades” e que é cultivado pelos próprios concorrentes que afirmam ambicionar ser exemplos a seguir e tornar-se numa “inspiração” para todos os americanos que desejam perder peso. A passagem do vergonhoso para o exemplar coincide, no concurso, com a forma como é tratada a exibição do corpo: no início, em cada pesagem, o corpo é exposto na sua quase totalidade mas, à medida que o emagrecimento se verifica, os concorrentes passam a utilizar uma t-shirt. Para além das especulações possíveis acerca da necessidade de esconder as marcas de um emagrecimento tão rápido, pode-se imaginar que esta epopeia de libertação da carne permite aos indivíduos abandonar uma exposição pública onde são apresentados como bizarrias (que recordam o palco dos freak-shows)242 e caminhar para a sua dignificação. O corpo veste-se e prepara-se para a exposição, revertendo a nudez simbólica enquanto perda (das «vestes de graça») e assumindo a cruzada da construção do corpo que quer ser “nu”. Nesta última acepção, o nu distancia-se da interpretação de Agamben para se transformar no nu (o nude oposto a naked) de Kenneth Clark: o nude que é uma invenção grega que se refere a um real constantemente aperfeiçoado e fixado como ideal de perfeição, operando a passagem da matéria à forma243.

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De forma mais óbvia, o reality show Little People Big World acompanha o dia-a-dia de uma família de anões.

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Como valor de exposição, o nu é uma conquista e, também, uma rectificação, situação que é enfatizada num outro concurso, How to Look Good aked, produzido pelo British Channel 4 desde 2006 e apresentado pelo consultor de moda Gok Wan. A particularidade deste concurso é que, presumivelmente, aposta em fazer os concorrentes, homens e mulheres com excesso de peso, sentirem-se bem com os seus corpos. No início, os participantes comparam o seu corpo com o de figurantes e, apesar de inicialmente se considerarem mais pesados que todos os outros, são levados a constatar existirem exemplos cujo grau de excesso de peso é maior. Seguem-se as alterações ao cabelo, maquilhagem e vestuário dos concorrentes e a prova final é serem fotografados nus para um outdoor e ouvirem as críticas (normalmente positivas) dos espectadores. Para além dos cuidados que precedem a sessão fotográfica ao nível da maquilhagem e cabeleireiro, existe uma encenação do corpo que visa melhorá-lo – o corpo não aparece simplesmente despido, é preparado para, apesar de nu, ser um melhoramento de si mesmo. Assim, o cenário escolhido favorece o modelo e o corpo é sempre parcialmente coberto, seja com a água de uma piscina, um lenço ou com os jogos de luz e sombra, enfatizando o que é fotogénico e deixando na penumbra o restante. A reconciliação com o próprio corpo é atingida, mesmo que realizada tendo por base uma ficção desse corpo.

É o corpo como ficção que não deixa de ser questionado na peça Drains (1990), um dos muitos ralos que fazem parte da obra de Robert Gober. Os ralos remetem imediatamente para o domínio privado dos indivíduos e a acção a que se associam depende do contexto de exposição – na série de pinturas Slides of a Changing Painting (1982-83) aparecem acoplados a uma chávena; na série de fotografias Untitled (1998) surgem abandonados num ambiente exterior e assiste-se à sua transformação sob efeito dos agentes naturais. Num dos casos, o artista deslocou o objecto do seu uso quotidiano e colocou-o numa parede branca, ao nível do olhar do espectador. Quando isolada de qualquer outra referência e colocada ao nível do olhar, a peça funciona como um espelho que obriga os espectadores a encontrarem-se com a sua imagem. No entanto, este espelho não fixa o rosto mas o corpo, uma vez que remete para a situação do banho, um dos poucos momentos onde os indivíduos se confrontam com o corpo que não se encontra preparado para ser mostrado. O banho pode ser encarado como o momento em que o corpo se separa das marcas da animalidade e o ralo o local onde se encerram os

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vestígios da qualidade animal – e por isso mortal – do ser humano. Noutra peça, os torsos que juntam o corpo feminino e o masculino, produzem um desconforto semelhante ao decorrente do confronto com os ralos – quando, em Untitled (1999), coloca um torso privado de braços (de acção) num caixote de plástico semelhante aos utilizados no transporte de alimentos, reduz o corpo humano ao estatuto de matéria e reverte a imposição da forma. O facto de não existir diferenciação de géneros remete para a não existência de individuação (biológica e cultural), no sentido de a carne não estar protegida pelo corpo, o que atribui sentido e garante a identidade dos indivíduos. Encontramo-nos, mais uma vez, na presença da carne, factor sublinhado pela colocação de pêlos e pela utilização do caixote plástico que remete para a horizontalidade dos ritos fúnebres, agora sem a dignidade do caixão, objecto que garante a individuação do corpo na morte e que retoma, de acordo com Rosalind Krauss, um estatuto anterior ao da imagem vertical, correspondente ao sujeito intelectual (partindo do exemplo de Narciso, Rosalind Krauss associa a horizontalidade da imagem a uma visão que se funde com o sentido do tacto. É a verticalização inerente à pintura que produz a separação entre o sujeito e o objecto visual e que denota a distância entre o animal e o indivíduo intelectual)244.

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Cf. KRAUSS, Rosalind – Gestalt. In BOIS, Yve-Alain ; KRAUSS, Rosalind - Formless. A User´s Guide. p.90.

Figura 40

Robert Gober, Untitled, 1999 Figura 39

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Juventude, elegância e saúde conspiram para afastar a carne do corpo, de tal forma que, para além dos critérios tradicionais de harmonia e proporção, se pode considerar belo o acometimento da carne e o adiamento ou a reversão do carácter efémero ligado à “beleza natural”. Susan Sontag245 sugere que esta beleza em permanente falência impôs a invenção de uma beleza transcendental, profunda e não superficial, escondida e não óbvia, incorruptível (como na arte). A associação entre a beleza da superfície e a “interior” acompanhou a História e a sua intersecção existe sempre no corpo, na bela imagem que é sempre «(…) um ideal, uma perfeição.»246.