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2 CORPO, CUIDADO DE SI, VELHICE E CONSUMO

2.1 O CORPO VELHO NA SOCIEDADE ATUAL

O corpo humano foi primeiro analisado sob o paradigma positivista, no qual era visualizado como uma máquina, de acordo com a perspectiva mecanicista. Depois ganhou uma dimensão biológica a partir da análise organicista. O século XIX trouxe a concepção de corpo como fonte de renda que é ao mesmo tempo produtiva e consumista. No século XX, sobretudo no Brasil, o corpo passa a ter novos significados e valores, deixa de ser “máquina da sobrevivência” tornando-se objeto de conotação sexual e exposição da beleza (CHAUÍ, 2000). O corpo é o vetor semântico moldado pelo contexto social e cultural em que o ator está inserido. É através do corpo que a evidência da relação com o mundo é construída, antes de qualquer coisa a existência é corporal. É no corpo que as significações que fundamentam a existência individual e coletiva nascem e se propagam. (LE BRETON, 2007)

Le Breton (2007) explica que, embora Berthelot5 considere que já existia “uma

sociologia implícita do corpo” desde o início do pensamento sociológico, foi no final dos anos 1960 que o corpo se tornou objeto das pesquisas em Ciências Sociais. Sobre o que considera os precursores dos estudos sobre o corpo na disciplina ele afirma:

O corpo faz, assim, sua entrada triunfal na pesquisa em ciências sociais: J. Baudrillard, M. Foucault, N. Elias, P. Bourdieu, E. Goffman, M. Douglas, R. Birdwhistell, B. Turner, E. Hall, por exemplo, encontram freqüentemente, pelos caminhos que trilham, os usos físicos, a representação e a simbologia de um corpo que faz por merecer cada vez mais a atenção entusiasmada do domímo social (LE BRETON, 2007, p. 11-12).

5 Marcellin Pierre Eugène Berthelot foi um professor, químico e político francês. Filho de um médico, após estudar história e Filosofia voltou-se à ciência.

Segundo Le Breton (2007), esses autores utilizaram o corpo como objeto para compreensão de problemas mais amplos e para o isolamento dos traços evidentes da Modernidade. Ao exemplificar estudiosos do tema na França ele diz: “Outros, para citar alguns exemplos na França, como F. Loux, M. Bernar, J.-M. Berthelot, J.-M. Brohm, D. Lê Breton ou G. Vigarello, dedicam-se de modo mais sistemático a desvendar as lógicas sociais e culturais que se imbricam na corporeidade” (LE BRETON, 2007, p. 12).

Desde o início do século XX até os anos 1960, um esboço de sociologia fez diversas descobertas no que tange ao corpo. No entanto, somente nos últimos 30 anos a sociologia aplicada ao corpo se deu de forma sistemática, tendo alguns pesquisadores, dedicado de forma significativa, sua atenção a esse objeto. O corpo é “objeto concreto de investimento coletivo, suporte de ações e de significações, motivo de reunião e de distinção pelas práticas e pelos discursos que suscita” (LE BRETON, 2007, p. 77).

A aparência corporal é resposta a uma ação do ator e tem relação com a maneira como ele se apresenta e se representa. A apresentação física de si parece equivalente à apresentação moral. A aparência coloca o ator sob o olhar apreciativo do outro (LE BRETON, 2007). Esse argumento ainda afirma que:

Um mercado em pleno crescimento renova permanentemente as marcas que visam a manutenção e a valorização da aparência sob os auspícios da sedução ou da “comunicação”. Roupas, cosméticos, práticas esportivas, etc., formam uma constelação de produtos desejados destinados a fornecer a “morada” na qual o ator social toma conta do que demonstra dele mesmo como se fosse um cartão de visitas vivo (LE BRETON, 2007, p. 78).

Assim, o corpo é um objeto de constante preocupação por se tratar de um “lugar privilegiado do bem-estar e do parecer bem através da forma e da manutenção da juventude” (LE BRETON, 2007, p. 78). A preocupação com a aparência, a ostentação, o desejo de bem-estar que leva o ator a correr ou a se desgastar, a cuidar da alimentação e da saúde não modificam a ocultação do corpo no que tange a sociabilidade. O destino dado aos velhos, ao medo que temos de envelhecer, aos deficientes e aos doentes é evidência que a ocultação do corpo continua presente nas sociedades hodiernas (LE BRETON, 2007). Esse imaginário em torno do “corpo perfeito”, o corpo bom e ativo, jovem e belo, inibe e exclui a população mais velha,

uma vez que o corpo velho está fora do estereótipo de corpo perfeito, portanto, inapto a exercer as atividades corpóreas se comparado com os corpos jovens.

Costa (2001) explica que as ilusões do mercado e da indústria da beleza que se desenvolveram no século XXI trazem à tona a concepção de uma vitalidade puramente estética. E vai além ao dizer que:

Nas últimas décadas, há uma crescente difusa atenção, inclusive entre as pessoas idosas, aos tratamentos estéticos que visam rejuvenescer o corpo. A todo momento uma nova academia de ginástica é inaugurada, as novas modalidades desportivas como body kombat, body attack, body pump,

spinning, biker indoor, entre outras e ainda novas técnicas de alongamentos,

musculação, prática de saúde alternativas, estética corporal são introduzidas no mercado transformando os gestos em pura mercadoria de consumo. A corpolatria, como os autores explicam, é um processo responsável pela cisão do homem consigo mesmo, produzido pela relação homem/capital (COSTA, 2001, p. 93).

De acordo com Debert (2012) as concepções sobre corpo e saúde são reelaboradas nas sociedades ocidentais contemporâneas. Ao citar Featherstone (1995), a autora fala que a cultura do consumidor se atrela a uma:

concepção autopreservacionista do corpo que encoraja os indivíduos a adotarem estratégias instrumentais para combater a deterioração e a decadência (aplaudida pela burocracia estatal, que procura reduzir os custos com a saúde educando o público para evitar a negligência corporal) e agrega a essa concepção a noção de que o corpo é um veículo do prazer e da auto- expressão (Debert , 2012, p.170).

É através da disciplina e do hedonismo que os indivíduos são encorajados a assumir a responsabilidade pela própria aparência e as qualidades do corpo são tidas com plásticas. Diversos segmentos como a publicidade e os especialistas em saúde estão comprometidos em mostrar que as imperfeições do corpo não são naturais e podem sofrer transformações através do esforço e da disciplina em prol da aparência que se deseja ter. O chamado “hedonismo calculado” é a ideia de que para viver mais o indivíduo precisa de exercício constante, de vigilância corporal e de responsabilidade com a própria saúde. A relação entre boa aparência e bem-estar se destaca a partir do uso de dietas, exercícios e outros cuidados com o corpo que auxiliam a viver mais. A juventude deixa de ser uma etapa da vida e passa a ser um valor, um bem conquistado em qualquer idade. Para tanto, basta à adoção dos estilos de vida e formas de consumo melhor adequados (DEBERT, 2012).

Refletir sobre a velhice implica uma reflexão sobre os corpos velhos que os velhos possuem. A idade que possuímos se expressa em primeiro lugar e de forma mais evidente no corpo, e assim como as fases de vida, é uma construção social; da mesma maneira o corpo também o é e só pode ser compreendido dentro da cultura em que é produzido.

Sobre o corpo, a sociedade marca pertencimentos e exclusões; o corpo é lugar de construção da história e da identidade. A questão que se coloca é a enorme propagação discursiva sobre as necessidades de cuidado com o corpo, a ideia de que é preciso reciclar esse corpo, motivá-lo, exercitá-lo, revitalizá-lo. Todavia, as perdas e limitações do corpo também são objeto dos discursos em torno da velhice.

A velhice é uma fase em que “todas as capacidades latentes do indivíduo foram realizadas, deixando apenas potencialidades de danos de ação tardia” (STUART-HAMILTON, 2002, p. 22). O corpo que envelhece e o quadro geral em que se apresenta não é muito atraente, a pele e os músculos perdem a elasticidade, ocorre perda da eficiência mitocondrial, o sistema urinário também perde eficiência, há menor absorção do oxigênio e declínio da massa muscular, da capacidade vascular, da eficiência do funcionamento cerebral e psicológico, eis o processo de degenerescência do corpo envelhecido (STUART-HAMILTON, 2002).

De acordo com Le Breton (2012) o envelhecimento no ocidente marca a redução progressiva ao corpo e a percepção social do velho está sempre se reduzindo mais a seu corpo passando a ser objeto de seu corpo e não mais completamente sujeito. Todorov (2014), por sua vez, fala que a velhice não se refere somente à perda das forças vitais, mas também da existência. Ele explica que o ser social do idoso é progressivamente “desconectado” das diferentes redes das quais participava e que o tédio se torna sua principal experiência de vida. A seleção natural faz com que aqueles que habitualmente lhe concediam reconhecimento desapareçam um a um e a seleção voluntária faz com que as novas gerações não tenham mais nenhum interesse por eles e também não lhes interesse. O idoso não precisa dos mais jovens nem estes daqueles. O autor afirma assim que “o drama da velhice não é precisar dos outros, mas reconhecer que os outros não precisam mais de você” (TODOROV, 2014, p. 111).

Le Breton (2012) afirma que o velho escorrega lentamente para fora do campo simbólico ao transgredir os valores centrais da Modernidade que são a juventude, a

sedução, a vitalidade e o trabalho. O envelhecimento e a morte são os dois inomináveis da Modernidade que são personificados através da pessoa idosa. A velhice e a morte são, portanto, os lugares da anomalia, uma vez que escapam do campo simbólico que dá sentido e valor as ações sociais, sendo assim o irredutível do corpo. O autor afirma que “o homem da Modernidade combate permanentemente todos os traços de sua idade e teme envelhecer, com medo de perder sua posição profissional e de não mais encontrar emprego ou perder seu lugar no campo da comunicação” (LE BRETON, 2012, p. 227). No entanto, a senescência não é uma ruptura brutal, mas um processo lento e insensível, em qualquer idade o trajeto a cumprir rumo à velhice parece longo e inesgotável. A saúde e as performances não se alteram de um dia para o outro, mas de forma imperceptível, a imagem corporal se remodela incessantemente e a impressão de envelhecer é quase nula (LE BRETON, 2012). “A imagem do corpo é a representação que o sujeito se faz do seu corpo, a maneira pela qual ele aparece mais ou menos conscientemente a partir de um contexto social e cultural particularizado por sua história pessoal” (LE BRETON, 2012, p. 230). A imagem do corpo não é um dado objetivo, trata-se de um valor resultado fundamental da influência do ambiente e da história pessoal do sujeito.

O sentimento de velhice seria, então, a combinação da consciência de si, da consciência de um corpo em mudança e da apreciação social e cultural. Sua origem está no olhar do outro, é a marca em si da interiorização do olhar do outro. A velhice, na concepção de Le Breton (2012), é um sentimento. Esse sentimento, contudo, varia conforme o curso de vida de cada um, a importância que damos ao olhar do outro e como nos olhamos ao longo das diferentes etapas de vida.

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