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O CUIDADO DE SI E BIOPOLÍTICA NA VELHICE

2 CORPO, CUIDADO DE SI, VELHICE E CONSUMO

2.2 O CUIDADO DE SI E BIOPOLÍTICA NA VELHICE

Foucault (2006a) desenvolve a noção de “cuidado de si mesmo” em seu livro “A hermenêutica do sujeito”, esse conceito é considerado um princípio norteador da sua ideia de sujeito6, tema central de sua obra. A expressão “cuidado de si” tem sua

6 Em sua obra Foucalt enxerga o sujeito no interior das relações de pode e saber que perpassam todas as relações sociais. Em seu entendimento o sujeito se produz em sua relação consigo mesmo, ou seja, constrói-se a si mesmo, como também é constituído historicamente, dependendo do contexto em que está inserido.

origem na noção grega de epiméleia heautou, que os latinos traduziram como cura sua. Epiméleia heautou “é o cuidado de si mesmo, o fato de ocupar-se consigo, de preocupar-se consigo” (FOUCAULT, 2006a, p.4). Para o autor, o cuidado de si é considerado o momento do primeiro despertar, é a ideia do sujeito consciente da necessidade de se ocupar consigo mesmo.

A prática do cuidado de si é milenar e está presente no mundo desde Sócrates, apesar de ter sido de certa forma negligenciada na Modernidade. O cuidado de si consiste na reflexão sobre si mesmo, no conhecimento de si mesmo. É uma forma de posicionamento crítico no mundo e de consciência sobre o mundo e faz parte da perspectiva da emancipação do sujeito. Ao traçar uma relação entre sujeito e verdade Foucault (2006a) desenvolve seus estudos sobre o cuidado de si e mostra a evolução do conceito que vai desde a Filosofia grega, romana, helenística até a moral cristã, para explicar que o cuidado de si não é uma prática egoísta ou individualista. Trata-se antes de uma ideia positiva do indivíduo sobre a sua vida, sobre como se deve viver e sobre as questões com as quais se deve preocupar.

A partir da consciência do cuidado consigo mesmo, o homem emerge como sujeito participante da comunidade. O indivíduo que pratica o cuidado de si se diferencia perante seus pares, uma vez que é mais bem preparado para o enfrentamento das dificuldades, para o auxílio e desenvolvimento da cidade ou do meio no qual está inserido. Se em um primeiro momento o cuidado de si teve como objetivo preparar jovens aristocratas para o governo, para exercer o poder, seu princípio evoluiu e se desdobrou tornando seu fim não mais o governo, mas o próprio eu, de modo que seja possível o conhecimento de si. Com a evolução do conceito, essa passa a ser uma prática que se impõe a todos, durante todo o tempo e independente do status. Uma prática autônoma, autofinalizada e plural nas suas formas. O cuidado de si é uma obrigação permanente que deve durar a vida toda. O conhece-te a ti mesmo também evolui e ganha novo sentido para além da atividade do conhecer a si mesmo. Não remete meramente a dimensão da atitude de espírito, formas de atenção e memorização, refere-se agora a uma forma de atividade vigilante, contínua, aplicada e regrada. Assim a prática do cuidado de si, o ocupar-se de si mesmo como uma prática de vida se revela de maneira crítica e inventiva sobre si mesmo, passando a ser uma prática de liberdade sobre si mesmo (FOUCAULT, 2006a).

Foucault (2006a) relaciona corpo e cuidado de si a partir da unidade corpo- alma, compreendida de forma integral, uma vez que corpo e alma estão intrinsecamente conectados um ao outro. Na tradição grega, o cuidado de si tem uma estreita relação entre o pensamento e a prática médica, tanto a Filosofia quanto a Medicina tratam do conceito de pathos. O termo pathos designa tanto a paixão da alma quanto a doença física. Na cultura de si, o cuidado médico diz respeito à atenção e ao cuidado com o corpo. Esse cuidado deve se ater ao mal-estar e a perturbação do corpo e da alma, é importante o equilíbrio entre as coisas da alma e do corpo e é importante que se perceba que o corpo não está a serviço da alma e nem vice-versa. A relação entre corpo e alma é complementar, ambos possuem uma integração recíproca e devem receber cuidados especiais. As doenças do corpo e da alma são curadas através da prática médica. Ocorre assim, a institucionalização da medicalização e a pedagogização da rotina de vida diária através de dietas, exercícios, controle da sexualidade, abstinências e essas práticas são tanto individuais quanto sociais (FOUCAULT, 2006b).

Baseado na obra dos epicuristas, Foucault (2006a) diz que o pleno desenvolvimento intelectual e humano do sujeito é o que origina a ideia de que a prática do cuidado de si deve ser exercitada em toda a vida. Utilizando-se de textos da Filosofia estoica, afirma que há um deslocamento do êxito do cuidado de si da juventude para idade adulta e posteriormente para a velhice. A importância da velhice com relação ao cuidado de si está no fato de a velhice ser entendida como a meta do sujeito, a conclusão de um percurso, o momento da recompensa. Assim escreve que:

Ora, a partir do momento em que o cuidado de si precisa ser praticado durante a vida, principalmente na idade adulta, e em que se assume todas as suas dimensões e efeitos durante o período da plena idade adulta, compreende-se bem que o coroamento, a mais alta forma do cuidado de si, o momento da sua recompensa, estará precisamente na velhice (FOUCAULT, 2010, p. 98).

De acordo com o autor, na cultura antiga a velhice possuía um valor tradicional e reconhecido, porém limitado, restrito e parcial. Por um lado a velhice está associada à sabedoria, experiência adquirida, capacidade de dar conselhos e honra, por outro está relacionada à fraqueza, incapacidade de estar ativo na vida de todos os dias, dependência, uma condição que, apesar de honrosa, não é desejável. Foucault (2006a) afirma então:

Que é a velhice que constituirá o momento positivo, o momento de completude, o cume desta longa prática que acompanhou o indivíduo ou à qual ele teve que submeter-se durante toda sua vida. Liberado de todos os desejos físicos, livre de todas as ambições políticas a que agora renunciou, tendo adquirido toda experiência possível, o idoso será soberano de si mesmo e pode satisfazer-se inteiramente consigo. Nesta história e nesta forma da prática de si, o idoso tem uma definição: aquele que pode enfim ter prazer consigo, depositar em si toda alegria e satisfação, sem esperar qualquer prazer, qualquer alegria, qualquer satisfação em mais nada, nem nos prazeres físicos de que não é mais capaz, nem nos prazeres da ambição aos quais renunciou. O idoso é, portanto, aquele que se apraz consigo e a velhice quando bem preparada por uma longa prática de si, é o ponto em que o eu, como diz Sêneca, finalmente atingiu a si mesmo, reencontrou-se, e em que tem para consigo uma relação acabada e completa, de domínio e de satisfação ao mesmo tempo (FOUCAULT, 2006a, p. 135).

Nesse contexto, a velhice deve ser considerada como a meta positiva da existência, deve-se tender a velhice e não se resignar por alcançá-la, ou seja, “deve- se viver para ser velho, pois é então que se encontrará tranquilidade, o abrigo, o gozo de si” (FOUCAULT, 2006a, p. 136). O sujeito deve então se preparar para a velhice, esse momento privilegiado e especial da existência, no qual será possível o exercício do cuidado de si com maior maturidade e consciência. Assim, o velho passa a ser uma figura importante dentro da cultura do cuidado e conhecimento de si.

O cuidado de si se torna um princípio universal que pode e deve ser exercitado por todos, a partir da religiosidade, organização e institucionalização de grupos. O cuidado de si orienta uma preocupação contínua que proporciona o desenvolvimento intelectual, a capacidade crítica e a inserção adequada ao meio social, sobretudo, uma possibilidade de emancipação das redes de controle da sociedade (FOUCAULT, 2006a).

Foucault (2006a) utiliza Cícero para demonstrar que, embora a memória do idoso diminua, se o idoso se mantiver ativo em suas relações, praticar o cuidado de si a todo o tempo, principalmente na velhice, sua capacidade e dignidade podem ser preservadas; a velhice passa a ser vista como uma condição privilegiada. Se o sujeito se prepara para envelhecer por meio do cuidado de si, da ocupação consigo, a velhice passa a ser um momento de realização, positivo e de recompensa de tudo aquilo que conseguiu realizar ao longo da vida. Desse modo, Foucault (2006a) afirma que se deve viver para ser velho e o cuidado de si se constitui como prática de preparação para velhice e concomitantemente como realização da própria velhice, uma forma de encontrar a plenitude através da libertação das obrigações e ocupações. A velhice, de

acordo com essa perspectiva, não se relaciona apenas à idade cronológica, mas, principalmente, a um estado de espírito construído ao longo de toda a vida em que é possível dar-se um tempo, cultivar bons hábitos e praticar o cuidado de si, a consumação da vida antes da morte.

Foucault (1999) afirma que desde o século XIX uma nova tecnologia de poder funciona tomando posse da vida do orgânico ao biológico. Essa nova tecnologia, denominada biopolítica, é exercida tendo a população como alvo de regulamentação e cuidado. Trata-se de um exercício de poder que não se faz de fora dos processos, mas em meio a eles. O biopoder incita, conjuga, modula equilíbrios e médias, visando otimizar os estados de vida que ele submete. A ideia já não é mais fazer uso do corpo para individualizar, docilizar e disciplinar, mas o tomar para operar uma individualização que recoloca os corpos nos “processos biológicos de conjunto” como fenômenos coletivos que só ganham pertinência no nível das massas. Ainda que funcione de modo inverso às antigas tecnologias de poder da soberania, com a premissa de “fazer morrer e deixar viver” e da disciplina, que rege a multiplicidade dos homens para torná-los individualidades controladas, treinadas e vigiadas, o biopoder não as apaga. Ele as conjuga, penetrando-as, perpassando-as e modificando-as, no seu exercício de “fazer viver e deixar morrer” toma a vida do homem como ser vivo, como espécie (FOUCAULT, 1999). A lógica biopolítica é a de promover a vida da população. Essa promoção deseja garantir a eficiência do capitalismo mediante a multiplicação das disciplinas – com o objetivo de adestrar os corpos individuais – e da proliferação dos mecanismos de incitação à intensificação da vida produtiva, ou seja, promover a “otimização das forças” submetidas pelo capitalismo, produzindo-as e fazendo-as crescer ordenadamente (PELBART, 2003).

Para Foucault (2002), a Medicina moderna está diretamente ligada à economia capitalista. De modo que o primeiro objeto de socialização do capitalismo é o corpo e a própria vida. Para alcançar um envelhecimento bem-sucedido, o corpo torna-se lugar privilegiado para gerir a vida. A Medicina é, então, uma estratégia do biopoder. O envelhecimento bem-sucedido é efeito do investimento de uma tecnologia capitalista na saúde dos corpos que penetrou no interior das relações de mercado. Assim temos que:

O velho, nesta relação de poder e de saber, dispõe de um corpo alvo de controle de uma ciência à qual se atribui a meta de prolongar a vida, evitando a morte. Os profissionais do saber arvoram-se, muitas vezes, em condutores do modo de se viver, instituindo nos viventes a cultura pelos malefícios que venham a sofrer. Na pretensão de dirigir a vida, controlando o seu processo, com o intuito de melhorá-la, multiplicam-se as prescrições a serem seguidas como modelos gerais (TÓTORA, 2006, p. 37).

As reflexões aqui presentes permitem enxergar que a condução para a terceira idade certamente tem gerado interesses políticos e mercadológicos acerca do novo velho no Brasil, o que se justifica pela constatação da existência de alguns movimentos na História do país e da própria criação do Estatuto do Idoso. Os dados demográficos que projetam a aceleração do envelhecimento da população, prevendo trágicas consequências no setor econômico, são responsáveis por despertar um novo interesse da sociedade brasileira para com as condições de vida dos idosos e de seus lugares. O surgimento de um novo mercado de consumo emergente, voltado para esse grupo populacional, que se prepara para atender suas necessidades e criar novas demandas, sobretudo com atividades ligadas à saúde e ao lazer. Se os idosos já não são mais produtores por meio do trabalho, passam a ser inseridos no mercado através do mundo do consumo, o que os torna novamente úteis à sociedade e implica numa maior importância da manutenção dos seus corpos saudáveis. Há uma grande variedade de produtos que volta sua atenção para esse mercado consumidor, são grupos de atividade física, turismo, universidades da terceira idade, moda, cirurgias plásticas, cosméticos. Busca-se “[…] conceder a cada um uma espécie de espaço econômico dentro do qual podem assumir e enfrentar os riscos” (FOUCAULT, 1998, p. 198).

Os serviços, ações e produtos foram criados para atender esta população em crescimento, fazendo-os viver com mais qualidade após os 60 anos. A biopolítica norteia tais ações e as subjetividades estão conectadas ao biopoder, é o poder sobre a vida humana. Biopoder diz respeito a gerir a vida, ao direito de intervir para fazer viver, na maneira de viver, estabelecendo padrões de bom e ruim, certo e errado, estabelecendo formas para viver. Esse poder age sobre a multiplicidade dos homens. Foucault (2006b) amplia:

Creio que vemos se desenvolver, nas sociedades ocidentais – aliás, ao mesmo tempo que o capitalismo - toda uma série de procedimentos, toda uma série de técnicas para vigiar, controlar, se encarregar do comportamento dos indivíduos, dos seus atos, de sua maneira de fazer, de sua localização, de sua residência, de suas aptidões, mas esses mecanismos não tinham

como função essencial proibir. Certamente, eles interditavam e puniam, mas o objetivo essencial dessas formas de poder – o que constituía sua eficácia e solidez – era permitir. Obrigar os indivíduos a aumentar sua eficácia, suas forças, suas aptidões, em suma, tudo aquilo que possibilitasse utilizá-los no aparelho de produção da sociedade: investir nos indivíduos, situá-los onde eles são mais úteis, formá-los para que tenham esta ou aquela capacidade (FOUCAULT, 2006b, p. 74-75).

A construção do novo velho seria então, a de um sujeito constituído através de políticas de liberdade, acompanhadas por certo estilo de vida, regras, formas de agir presentes no meio cultural. São práticas biopolíticas que se destinam ao controle e à preservação da vida em sua coletividade, a população. Todavia, essa conceituação do novo velho de Foucault (2006b) descarta a condição econômica da população uma vez que, as experiências atuais, governamentais ou privadas, têm como centro as camadas médias e altas, não considerando as experiências mais próximas a realidade do grande contingente de idosos, que não pode ter acesso aos serviços que a sociedade de consumo disponibiliza.

Outro ponto a ser refletido, é o uso discursivo de fragmentos de sua reflexão sobre o cuidado de si na sociedade atual, para difundir as perspectivas de terceira idade, boa velhice, envelhecimento ativo e a aparente valorização da figura do velho e da velhice em si, o que na verdade culmina com um processo de valorização da juventude. O que se quer, se precisa, é de velhos com “espírito jovem”. Não queremos a morte, mas ao mesmo tempo negamos a velhice a todo o tempo. O envelhecimento ativo se caracteriza pela luta sem fim para não envelhecer.

A intenção não é fazer a crítica pela crítica, uma vez que o trabalho aqui construído pretende mostrar pessoas que vivem bem com a velhice, com as limitações e mudanças do corpo, com a saída do mundo do trabalho, no contexto das diferentes gerações. Mas é preciso que se faça uma reflexão crítica dos discursos que valorizam a velhice e do que está em jogo por trás disso. Desse modo, viver em busca de mais qualidade de vida pode não estar associado somente a questão de viver bem a velhice, ter uma bela velhice – conceito que utilizaremos mais adiante – mas de uma associação à lógica da produção, da biopolítica dos corpos, do manter-se ativo do ponto de vista do consumo, socialmente, culturalmente, manter o corpo liso, jovem. Visto que é constante a desqualificação do velho que aparenta ter a idade que tem e que se assume como velho.

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