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2.1 A MAÇÃ ENVENENADA: GESTOS DE AUTOR, CORPO E OBRA ENTRE HERBERTO HELDER E KURT COBAIN

2.1.4 Corpos em deslize

Sobre as questões lançadas por Laub (e reescritas acima), ao contrapor as figuras de Kurt Cobain e Immaculée Ilibagiza, não aponto respostas. Porém, tomando uma porta tangencial, gostaria de pensar sobre o título que a tradução para o português propõe à obra de Ilibagiza. Em português, o livro se chama Sobrevivi para contar: o poder da fé que me salvou. Chamo atenção para os termos “poder” e “fé”. Curioso que se instaure através da tradução, e certamente também por razões comerciais, um discurso tão fortemente ideológico. Em inglês, o livro tem o título Left to tell: Discovering God Amidst the Rwandan Holocaust. Chamo atenção, como recorte, para as palavras “poder” e “fé”, pois elas surgem curiosamente na tradução e parecem reforçar certo direcionamento mercadológico e ideológico, que diz respeito à projeção da imagem autoral e ao público que está sendo objetivado por essa estratégia de publicação. Nesse sentido, é pertinente dizer que Ilibagiza trabalha também como treinadora motivacional.

André Lefevere em Tradução, reescrita e manipulação da fama literária (2007) se debruça exatamente sobre esse aspecto ideológico presente no fenômeno tradutório. A abordagem que Lefevere traz aos estudos da tradução se pauta por focar a questão da reescrita tradutória como uma potente ferramenta ideológica, necessariamente político-estética, capaz de criar ou recriar autoridade e fama literária nos sistemas de chegada e partida que entram em contato através do gesto da tradução, influenciando a percepção de dada obra (e, por extensão, de dada cultura) naqueles sistemas. Lefevere se esforça, pois, em enxergar as razões políticas e ideológicas que permeiam as escolhas estéticas feitas na tradução.

Ilibagiza é uma figura que remete a uma forma de poder estabelecida, a fé, que sinaliza esperança de transcendência. Por outro lado, a figura de Cobain, também prontamente vendável, remete a outro tipo de afeição e culto. Não tenho certeza se ao medo. Possivelmente, ela esteja mais próxima da desesperança ou do desamparo irremediável, o que nos propõe muito mais à imanência do que ao seu contraponto transcendental. Remete-nos muito mais ao corpo e ao material, qual o Eros de Platão, descalço, rude, astuto e desejoso do que lhe falta; corpo nesse caso aniquilado por um último gesto crítico fatal.

A certa altura do diálogo de O Banquete surge a seguinte descrição de Eros:

Na qualidade de filho de Poros e Penia, coube-lhe uma sorte semelhante a deles. Em primeiro lugar, está sempre na penúria e está longe de ser, como a maioria o imagina belo e delicado: pelo contrário, é rude e enrugado, ainda descalço e não tem lar; deita-se constantemente sobre a terra nua, pois não

dispõe de um leito, descansando junto às soleiras das portas e às margens das estradas ao ar livre; coadunando-se com a natureza de sua mãe, permanece convivendo sempre com as privações. Entretanto, assemelha-se a seu pai, é um planejador que visa a tudo que é belo e bom e, de fato, ele é corajoso, impetuoso e intenso, um admirável caçador, o tempo todo urdindo estratagemas; desejoso e amante da sabedoria [...] Não sendo por nascimento nem imortal nem mortal, num mesmo dia, estando repleto de recursos, viceja e pulsa de vida, para depois, num outro momento, ficar moribundo e morrer (PLATÃO, 2010, p. 79).

Nos diálogos, já havia a sugestão de que Eros seria uma busca do humano em se tornar completo novamente, recuperar seu corpo uno primevo, destroçado pelos deuses frente à insubmissão dos homens. É notável, contudo, que Sócrates construa seu argumento final a partir do relato de uma conversa sua com uma mulher estrangeira, Diotima da Mantineia, que o teria educado nos assuntos eróticos. Diotima, pois, constitui Eros não como um Deus, mas como um dáimon, que é diferente de um “demônio”, embora a etimologia esteja próxima. Dáimon não carrega a conotação necessária de maldade, é um intermediário entre o mortal e o imortal, entre o humano e o divino. Ambos, Sócrates e Diotima (esta, sempre por intermédio da voz de Sócrates) estabelecem que o desejo fundamental de Eros é a geração, a criação, a poiesis, ou, em suas palavras “É do gerar e dar à luz no belo” (2010, p. 84). Isso se dá exatamente porque a geração ou a procriação é aquilo que permite a imortalidade aos mortais, de modo que o desejo fundamental dos homens, Eros, seja buscar aquilo que lhes falta.

Embora dificilmente possamos pensar em Cobain (jovem, branco, americano, originário da classe trabalhadora, drogado e finalmente rico) como muçulmano, talvez neste último gesto ele tenha sido; ou através de uma série de gestos de sua vida tenha se tornado. 92

Deixe-se notar, afinal, o caso particular de Cobain que tinha uma relação idiossincrática com a fama e a fortuna, como descreve por diversas vezes Charles R. Cross, em Mais pesado que o céu, biografia do músico: “Apesar do seu disco de ouro, Kurt ainda era um sem-teto” (CROSS, 2002, p. 248). Na época descrita por Cross, Cobain morava no mesmo carro que dirigia em Olympia, antes da fama. Mais tarde, também devido a seu vício narcótico, Cross nota que Cobain era visto pedindo grana emprestada a amigos (p. 378) ou, graças a certo fascínio pela cultura marginal, que o levava a assinar cartas como seu alter-ego “Kurdt Kobain [sic], músico profissional. Marginal.” (p. 289), sabia-se dele roubando carros

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Não postulo com isso que Ilibalgiza seja qualquer outra coisa oposta a isso, “menor” ou “maior”. Mais do que pólos opostos, ambas as figuras são complementares ou mesmo coincidentes, a depender da perspectiva subjetiva com que se encara a questão.

com amigos (p. 379) e perambulando semiconsciente pelas ruas de Seattle, qual personagem do “Howl” [Uivo] de Allen Ginsberg (2009), em busca de picos de heroína.

Há uma incongruência no fato de que o corpo de Ilibagiza ainda está em jogo, aberto à experiência e à história. O corpo de Cobain, inexistente, está talvez dissipado, eternizado, transcendental, por um gesto de morte de suas próprias mãos. Transcendental e eternizado, pois foi o suicídio também que marcou sua biografia e o tornou mítico, lenda. Nesse sentido, já não poderíamos pensar seu gesto como muçulmano, mas sigamos essa linha de raciocínio ainda um pouco mais.

O escritor sobrevivente do Holocausto Primo Levi nos diz – e é citado por Agamben – em É isto um homem? (1988), que, “se eu pudesse concentrar numa imagem todo o mal do nosso tempo escolheria essa imagem que me é familiar: um homem macilento, cabisbaixo, de ombros curvados,93 em cujo rosto, em cujo olhar, não se possa ler o menor pensamento” (LEVI, 1988, p. 132). O que há de mais mítico do que a corporificação de todo o mal? E, ainda assim, não há corpo ali, há apenas uma imagem criada por Levi e recriada por nós através de uma memória ou acordo coletivo que parte de construções historiográficas e midiáticas; novamente, obra. Ou, como nos alterna Rosa Maria Martelo, é ali, afinal, corpo em obra, o corpo dessa construção muçulmana: tal qual um rabisco espiral na areia, num contexto rito-poético, nos abre uma brecha, nos abre, corpo, uma fratura, e não seja um símbolo do sol, nem o sol absoluto e irremediável, mas o corpo do sol também implicado lá através do ruído que o suporte lhe impõe, assim, muito mais material. O ruído, nesse contexto, se faz presente também na dificuldade que temos de entender em termos positivos essa linguagem não translúcida, mas múltipla do gesto poético. Falarei mais pausadamente disso na próxima seção.

Ademais, a tradução do título da autora ruandesa anuncia outra questão, o sobreviver para contar. A explicatividade do gesto primevo. Em sua releitura da experiência vivida, Ilibagiza pôde se explicar, racionalizar, dar uma lógica póstuma a um momento ido. Já o suicídio é, em última instância, a negação da explicação subjetiva futura que alienaria o passado em seu próprio nome, é a negação da possibilidade de auto-afeição e, portanto, da subjetividade que se deixa revelar. Quanto ao suicídio, não há sujeito que se construa no

93 Em minha leitura, a imagem descrita por Levi remete ao retrato feito de Cobain na obra de Gus Van Sant, Last

Days, lançado em 2005. Na obra, Van Sant repete sua famosa estética de acompanhamento, em planos

longuíssimos que não se distanciam dos personagens retratados e os forçam a, se querem ir do ponto A ao ponto B, necessariamente andar até lá, fazendo uso de seus corpos e funções motoras. Voltarei a destacar essa associação.

tempo de modo suficientemente fixo para dar um testemunho. O que resta da ação de Cobain é apenas o traço muçulmano que reside no gesto de autosacrifício, exceto pela carta, que se torna obra. Nessa perspectiva, o pharmakós em autosacrifício seria tanto o expurgo quanto o próprio corpo ateniense, agora são, que o expulsou; restando, portanto, igualmente dentro e fora da comunidade.

Era inevitável pensar que poderia mudar de endereço e de emprego e passar anos incógnito, e só voltariam a ouvir meu nome se eu morresse e encontrassem o passaporte e a embaixada localizasse a minha família. Não há frase na agenda sobre a sensação quase absoluta, que às vezes me assustava porque é só entender a liberdade e de um instante para o outro você não tem mais passado, nem sente falta de nada porque é como se nada tivesse acontecido, ou só as coisas que você escolheu, as lembranças boas e inofensivas, e nada do que você disse ou fez a uma pessoa tem consequência porque nunca mais precisará encontrá-la, nem pensar nela, nem imaginar e confrontar o que foi feito dela em outro tempo e outro continente numa vida que às vezes nem parece ter sido a sua. (LAUB, 2013, p. 24-25)

O trecho se refere ao período pós-acidente, em que o personagem-narrador de Laub se “exila” em Londres. Confundem-se aí traços de uma possível muçulmanidade e de uma liberdade somente tornada possível graças a um acúmulo material e uma posição social favorável. Quantos brasileiros podem, voluntariamente, se “exilar” em Londres por um ano? A agenda mencionada se refere ao diário que o personagem mantinha durante seu autoexílio londrino.

Carolina Pina Rodrigues Maciel discute várias das obras mencionadas até aqui em artigo publicado na revista Opiniões, em 2016. Sobre o texto de Laub e Ilibagiza, ela nos diz que “Immaculée Ilibagiza apegou-se a sua fé para não ceder ao desespero, já que tinha perdido sua família, seus amigos e sua identidade. Independentemente de tudo o que vivenciou, Immaculée não conseguia ater-se em nada senão sua própria sobrevivência.” (MACIEL, 2016, p. 78). Talvez seja, afinal, esse gesto de apegar-se à identidade e à sobrevivência que não romantize Immaculée Ilibagiza, não a crie em imagem de potência midiática tão vasta: sua falta de desespero. 94 Quem sabe, apegar-se a sua fé seja, nesse caso, definir-se e exaurir-se. Contrariamente, aniquilar-se, desesperar-se é liberar-se de um corpo

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Voltando à teoria de Freud, noto a seguinte frase: “É fácil apreciar, seguindo o modelo do tema do duplo, os outros distúrbios do Eu explorados por Hoffmann. São um recuo a determinadas fases da evolução do sentimento do Eu, uma regressão a um tempo em que o Eu ainda não se delimitava nitidamente em relação ao mundo externo e aos outros.” (FREUD, 2010, p. 264). É exatamente essa diferenciação do Eu em relação ao mundo que parece tomar forma nos gestos de Ilibalgiza, segundo Maciel, em torno da fé. Gestos similiares não foram possíveis a Cobain, que se entregou, pois, ao desespero, restando somente nessa fase primal e muçulmana (para usar o termo de Agamben), entregue ao ruído incessante do mundo.

pregresso, tomar rédeas sobre a apropriação de si no agora, porém, paradoxalmente, dissipar- se e alienar-se como imagem de mídia futura, como obra interminavelmente reproduzida. Contudo, também é importante mencionar que há um peso mercadológico muito diverso na comercialização e comodificação de um corpo branco masculino americano e um corpo feminino negro ruandense. E o corpo de Cobain também se aproveita desse privilégio de corpo, gênero e nacionalidade para se perpetuar.

Voltando a Agamben, agora em Profanações (2007), o direito de propriedade é a impossibilidade de profanar. E profanar é um ato realizado naquilo que é mítico e ritualístico, próprio da religião, do divino, ou seja, desligado do uso cotidiano. Agamben advoga exatamente as profanações que retornariam certos itens atualmente sacralizados ao uso cotidiano desmistificado. Na contemporaneidade, cuja religião seria o capital (a propriedade privada, nesse contexto, portanto, seria sacra), explica-se porque, dentro de nossa discussão, a imagem de Cobain ganha, por vezes, auras de improfanável, 95 porque é rentável. Já a obra de Ilibagiza, por mais testemunhal que seja, é, ainda, além de negra e feminina, memória ligada a um corpo vivente, ainda cotidiano. Cobain, porque inexiste, é, hoje, apenas obra.

Num último trecho que trarei abaixo, Agamben discute o duplo composto da poesia, a tensão operante e irremediável de som e sentido, que tende em dupla intensidade tanto para a prosa quanto para a própria poesia, uma vez que, a cada fim de verso, arrisca-se tanto o abismo final, capaz de forçar o discurso de volta à prosaística do mundo, quanto a continuidade poética do verso seguinte. A possibilidade do enjambement, constitutiva da poesia para Agamben, é exatamente a representação nervral dessa tensão. Agamben, então, se questiona: o que acontece quando o poema acaba e a tensão, a dupla intensidade, o jogo do poema com seu duplo deixa de existir?

Se a poesia não vive senão na inexaurível tensão entre a série semiótica e a série semântica, o que acontece no momento do fim, quando a oposição das duas séries não é mais possível? Teríamos aí, finalmente, um ponto de coincidência, no qual o poema, enquanto "seio de todo o sentido", ajusta as contas com seu elemento métrico para transitar definitivamente para a prosa? As bodas místicas do som e do sentido poderiam, então, ter lugar. Ou, pelo contrário, o som e o sentido estariam agora para sempre separados [...] A dupla intensidade que anima a língua não se aplaca numa compreensão última, mas se abisma, por assim dizer, no silêncio numa queda sem fim. Deste modo o poema desvela o escopo da sua orgulhosa estratégia: que a língua consiga no fim comunicar ela própria, sem restar não dita naquilo que diz. (AGAMBEN, 2002, p. 146-148)

Suscito, então, a analogia dessa tensão operante na poesia, entre som e sentido, corpo e imagem, com o binômio vida/obra em rasura. A sugestão é a de que, exatamente porque Ilibagiza nos oferece ainda seu corpo, retém sua identidade, seu aparte do mundo, enquanto o aspecto muçulmano de seu registro foi deixado para trás e explicado, assim, essa tensão não se recria em torno de sua imagem de modo rompante. Cobain, qual Helder fez até certo ponto de sua carreira, nos negou seu corpo como ferramenta cotidiana de mídia massiva e, mais do que isso, se nos ofereceu seu corpo orgânico imolado: abismo ou bodas místicas. 96

A questão do que acontece ao fim de um poema é assim extrapolada para contemplar também a morte do indivíduo. Analogamente, então, outra maneira de propor a questão do suicídio de Cobain seria: o que acontece quando o poema – vida – acaba?

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Sobre o corpo do superastro em sacrifício, Cruz comenta o elemento erótico da arte pop relacionando o culto ao corpo com a violência e a carnavalização da linguagem inscrita nos corpos, tanto como representação quanto como mídia. Ele diz “o corpo torna-se o próprio objeto artístico, oferecendo-se como criação, numa integração arte-vida, arte-corpo, arte-cidade [...]”. Sobre Andy Warhol, por exemplo, quando este começa a realizar autorretratos a partir de 1967, Cruz comenta que Warhol “lançou o seu próprio corpo como objeto artístico e se auto-transformou em celebridade, uma estrela. Todos os astros e superastros oferecem seus corpos como objetos de consumo. O corpo transforma-se em veículo de liberação [...]” (CRUZ, 2013, p. 154).

“Mostrar, também do verso, sua duplicidade, o anverso e o reverso, de modo que tudo no excesso ruidoso da forma leve à sua destruição”.

(Alberto Pucheu)

O que dizer do artista que não produz? Pode-se dizer algo sobre um escritor que não escreve, ou que escreve e guarda sua produção, sem jamais publicá-la? Como saberíamos dele, sequer de sua existência? E como o autorizaríamos com as alcunhas de escritor ou autor? A escritura é talvez diferente da dança neste aspecto: não se pode pensar num dançarino que não pratica a dança, mas a guarda num baú. Contudo, pode-se pensar num dançarino que dança, solitariamente, na privacidade de qualquer recôndito espaço e nunca se sabe dançarino por nome, sequer nomeia-se. A diferença reside, talvez, no fato de que o escritor, se realiza sua performance corporal em forma de escritura, se efetua o gesto de escrever, deixa, produz, faz restar (a não ser que o queime, destrua ou, enfim, delete) um documento material histórico e grafado; ainda possivelmente historiográfico.

É possível que o verbo emitido em excessivo desdobramento acima – produzir – aproxime a lógica literária aqui de uma lógica capitalista. Ora, é preciso que o artista deixe um excedente, uma marca no mundo. Algo tátil, material, que autorize seu reconhecimento e que comprove seu status. Algo que ganhe, enfim, valor. Poderíamos, então, pensar o gesto de não produzir, não publicar, como gesto de resistência?

Essa lógica diferencial aplicada à literatura permite, por exemplo, que um Fernando Pessoa (res)surja das cinzas da obscuridade. Um poeta pouco publicado em vida é então reconstituído através do desassossego de sua obra deixada guardada na gaveta ou, no caso, no baú pessoano. Seria esse gesto um gesto de resistência? Se considerarmos o fascínio moderno com a figura do autor e seu desdobramento mais recente na forma de fama midiática, podemos certamente cogitar essa possibilidade de resistência. Invisibilizar-se seria uma estratégia, uma recusa, que pode ser relacionada, por exemplo, à figura do escriturário Bartleby, de Herman Melville.

No conto, o advogado, chefe de Bartleby e narrador da história, contrata o personagem-título como escrivão em seu escritório para produzir cópias de documentos legais, hipotecas e escrituras. Inicialmente, Bartleby cumpre suas funções diligentemente, mas pouco a pouco ele passa a se recusar a cumprí-las. Daí surge seu bordão “I would prefer not to” [Eu preferiria não], celebrado lema de desobediência civil frente a um sistema que

interrompe os desejos e vivências individuais em cumprimento das demandas mais amplas da sociedade e do mercado.

A recusa de Bartleby se inflama até o ponto em que ele se recusa a comer. “Inflama” talvez não seja a palavra apropriada, uma vez que essa recusa tem muito mais a ver com uma passividade terminal do que com a paixão que a chama suscita. Nesse ponto, ele já se encontra preso por se recusar a sair dos aposentos em que estavam os escritórios do advogado, mesmo depois que este já o demitira e já mudara seu estabelecimento para outro ponto comercial em Wall Street. Bartleby morre na cadeia, de inanição, e o narrador termina o conto com o lamento “Ah Bartleby! Ah a humanidade!” (MELVILLE, 2014, p. 80).

Antes, contudo, ele descobre algo ainda mais enigmático sobre o passado de Bartleby (até isso o escriturário havia se recusado a compartilhar, seu passado, sua vida). Seu emprego anterior era no Dead Letter Office [Escritório de Cartas Perdidas] dos correios americanos, setor responsável por lidar com as correspondências que não eram capazes de atingir seus destinatários, por qualquer que fosse a razão. Esse detalhe abre espaço para especulações sobre o progressivo recolhimento de Bartleby, relacionado possivelmente a seu emprego junto ao advogado e à necessidade do cumprimento de seus deveres como copista, mas também com o emprego anterior, simbolicamente, denunciante da incapacidade fundamental da comunicação humana e da futilidade de seus esforços práticos frente à natureza inescapavelmente mortal do ser.

Voltando à questão do baú pessoano, penso que deixar restar aqueles documentos potencialmente alienáveis seja talvez abrir mão de uma construção crítica de si ou abrir mão de controle sobre sua imagem projetada. Lega-se, assim, não uma obra cujo autor desaparece completamente, nas linhas do que Roland Barthes propôs em “A morte do autor” (2004), mas, alternativamente, a possibilidade de construção de uma imagem de autor, alheia à subjetividade deste e para além do corpo biológico ou literário deixado por ele. Por outro lado, aniquilado o corpo orgânico, o autor pode ter afinal “controle” sobre seu corpo restante na forma legada da obra que ele enfim produziu e que está finalizada. Há de se pensar o